A vida dupla de Carlos Knapp

Que empresários ajudaram a financiar o centro de torturas conhecido como Operação Bandeirantes (OBAN) todo mundo sabe. Nos anos de chumbo, o inusitado foi a atuação do dono de uma das agências de propaganda mais promissoras de São Paulo, Carlos Henrique Knapp, que alternou o papel de publicitário bem-sucedido com o de apoio à resistência armada ao regime militar. Entre outras atividades, Knapp escondeu em casa o líder guerrilheiro Carlos Marighella, considerado o inimigo público número 1 pelos órgãos de repressão. Detalhe crucial: a casa de Knapp ficava na rua Sofia, no aristocrático Jardim Europa, a 300 m da residência do comandante do II Exército. No mesmo bairro, um casarão de arquitetura germânica abrigava a sede da agência de Knapp, a Oficina de Propaganda. A Mercedes-Benz cinza na qual o publicitário circulava por ambientes elegantes também foi colocada a serviço de operações clandestinas. Com Knapp ao volante, o automóvel transportou até cargas de dinamite roubadas de uma fábrica de explosivos. Quando o publicitário ajudou no socorro a um guerrilheiro baleado, a face oculta de seu cotidiano foi revelada à repressão. Com o retrato estampado em cartazes de terroristas procurados pela polícia, ele fugiu do Brasil para escapar da prisão e de uma provável passagem pela OBAN, criada no período em que seu vizinho de alta patente, o general José Canavarro Pereira, comandava o II Exército.

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Hoje com 83 anos, o publicitário ainda teve em seu encalço o delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979), o policial conhecido por massacrar militantes políticos e também comandar o Esquadrão da Morte, especializado no extermínio de presos comuns. “Eu sou a única pessoa que lamenta a morte do delegado Fleury”, afirma Knapp.

“Se ele estivesse vivo, eu poderia processá-lo por apropriação indébita.” A queixa de Knapp se deve ao fato de ter perdido todos os bens, incluindo sua coleção de ilustrações pops, criadas por artistas como Tomi Ungerer, quando policiais comandados por Fleury invadiram a casa da rua Sofia. As obras, ele soube no exílio, foram cortadas a canivetadas. Apropriada pelo delegado, a Mercedes continuou em circulação. Era usada por Fleury tanto em operações policiais quanto em momentos de lazer. O escritor Tom Figueiredo está entre aqueles que viram o delegado desfilando com o carrão pelas ruas de São Paulo. “A Mercedes do Knapp era muito conhecida e aquilo chamava a atenção”, diz Figueiredo. “Eu não era amigo do Knapp, trabalhava como publicitário em outra agência, a Standard, mas sabia que era a Mercedes dele.”

Daqueles tempos, Figueiredo ainda se recorda com nitidez de uma peça  publicitária criada por Knapp a partir da visita da rainha Elizabeth II ao Brasil. “Ele soube que a rainha passaria em carro aberto em frente à agência dele e preparou o cenário”, conta Figueiredo. “Colocou o seu pessoal na calçada, nas sacadas, e um fotógrafo para registrar a cena. A rainha, é claro, contemplou a Oficina de Propaganda.” A peça foi divulgada no final daquele ano – 1968. Nela, Knapp escreveu que às 13h05 do dia 7 de novembro sua equipe teve a honra de saudar a rainha do escritório. Na sequência, desejou um augusto Natal e um majestoso Ano Novo, na condição de única agência brasileira contemplada por Elizabeth II. No mundo da publicidade, uma agência é contemplada por um cliente quando tem a conta dele. A rainha, na verdade, apenas olhou para a sede da agência, enfeitada naquele dia com a bandeira britânica.

Uma cópia da peça está entre os trabalhos que amigos e familiares de Knapp conseguiram salvar da devastação provocada pela polícia. Quando Elizabeth II contemplou a Oficina de Propaganda, Knapp integrava há mais de um ano a rede de apoio da Ação Libertadora Nacional (ALN), a organização que tinha como líder o ex-deputado Carlos Marighella. “Eu não era exatamente envolvido com política, mas sentia que precisava fazer alguma coisa”, conta. “Como tinha um carro possante e me vangloriava de dirigir bem, servia de motorista.” No período em que a guerrilha urbana tinha uma série de militantes na clandestinidade e era fundamental garantir-lhes locomoção segura, um motorista em carro que não despertasse suspeitas na polícia vinha a calhar. Aos poucos, assim como ocorreu com outros integrantes da rede de apoio da organização, tarefas mais complexas foram surgindo.

No final de 1968, enquanto a mensagem com a imagem da rainha era divulgada, Knapp foi convocado para “retirar uma carga” em Mogi das Cruzes. Ao estacionar, soube que fazia parte do comboio que transportaria o produto de um assalto às Indústrias de Explosivos Rochester. Então universitário, Vinícius Caldevilla também participou da “ação de saída” do assalto, com o Fusca azul de sua mãe, dona Célia. “No meio de um monte de Fusquinha, estava a Mercedes do Knapp”, diz. Quando operários da Rochester –  sob a pressão de armas – começaram a carregar os carros com caixas de dinamite, Caldevilla ficou preocupado: “Eu sabia que aquilo era perigoso, até porque estava me formando em engenharia”. Knapp também se preocupou com as falhas da ação e chegou a comentar com o guerrilheiro responsável pelo assalto: “Observei que, se tivesse sido avisado, eu teria usado o meu jipão, onde caberiam todas aquelas caixas, dispensando tamanha caravana”.

Apesar da restrição ao amadorismo, Knapp manteve sua vida dupla. No começo de 1969, ele foi buscar um casal no Rio de Janeiro. Percebeu que a missão era mais delicada ao receber o casal das mãos de um dos dirigentes da ALN, o Toledo, nome de guerra usado por Joaquim Câmara Ferreira. Antes mesmo de entrar na Dutra, a rodovia que liga o Rio a São Paulo, Knapp percebeu também que os dois eram afáveis, mas de poucas palavras. “Como havia bastante tráfego, aproveitei para mostrar os meus ‘ofúsculos’, um invento que estava desenvolvendo para dirigir à noite”, conta. “Eu sempre tinha um protótipo de cartolina no porta-luvas.” Era similar a uma armação de óculos, sem lentes, com um anteparo projetado para frente, do lado esquerdo de cada olho. “Com um leve movimento de cabeça, o motorista podia evitar que a luz dos faróis de carros que vinham em direção oposta ofuscasse a sua visão.”

O passageiro, que havia sido apresentado como Preto, se interessou pelos “ofúsculos” de Knapp, fez alguns comentários e a viagem terminou sem grandes novidades. Ao chegar a São Paulo, o casal aceitou o convite do publicitário para ficar hospedado na casa da rua Sofia. Embora tenha voltado no dia seguinte aos compromissos profissionais, Knapp não demorou a se dar conta que estava abrigando Carlos Marighella e sua companheira, Clara Charf. Na vizinhança do comandante do II Exército, o líder da ALN logo começou a promover reuniões na sala de jantar da casa. “Chegavam pessoas convocadas não sei como e se fechavam com ele para discutir não sei o quê”, recorda Knapp. O visitante que mais o surpreendeu era, na realidade, famoso nos meios intelectuais e desembarcou na rua Sofia para conhecer Marighella. Tratava-se do filósofo Roland Corbisier, que na juventude defendera o integralismo de Plínio Salgado.

Quando não havia nenhuma reunião, o publicitário costumava conversar com Marighella. Durante o dia, o líder guerrilheiro passava horas seguidas escrevendo. “Eram os chamados ‘documentos’. Eu só entendia de comunicação publicitária, mas às vezes criticava a terminologia que ele usava. Tentava explicar que refrões como ‘abaixo o imperialismo’ estavam batidos, não comunicavam nada.” Ao relatar o episódio, Knapp comenta que hoje considera sua postura um atrevimento: “Imagine, eu redigia textos para vender carros, toalhas de banho, peru congelado e queria modificar o discurso de um líder do combate à ditadura!”. Mesmo assim, não resiste e conta que também se incomodava com o fato de, às vezes, Marighella sair sozinho à noite, usando “uma peruca de franjinha, muito grosseira”. Em sua opinião, um homem encorpado como Marighella, usando uma cabeleira tão engraçada, chamava mais a atenção com o disfarce do que ao natural.

Com o passar dos dias, Marighella começou a se interessar pelo clube que Knapp frequentava, o Sociedade Harmonia de Tênis, que é encravado no Jardim Europa. Primeiro, pediu detalhes sobre o sistema da bola preta – pelo qual os sócios podiam vetar de forma anônima a entrada daqueles que não se enquadravam no “figurino”. Depois, Marighella se interessou pelo carteado que acontecia em algumas noites e pela planta baixa do Harmonia. Finalmente, o líder da ALN pediu que Knapp o levasse de carro para conhecer as imediações do clube. Ainda estavam nas proximidades quando revelou que planejava um assalto aos jogadores. Apavorado com a ideia, Knapp perguntou se ele pretendia participar diretamente da ação. “Vou, e vou sem peruca, para dar um susto nesses granfinos”, respondeu Marighella.

Convencido de que os sócios do Harmonia nunca tinham muito dinheiro consigo, o publicitário conta que teve trabalho para dissuadir Marighella do plano. Ao mesmo tempo, tentava manter as aparências. No período em que escondeu o casal, ele não alterou a rotina na agência de propaganda nem deixou de cumprir os compromissos sociais. Enquanto Knapp trabalhava, quem ficava a cargo do líder da ALN era a namorada do publicitário, Eliane Zamikhowsky. “Eu ficava quase o tempo todo choferando”, lembra Eliane, que tinha na época um Fusca verde. “Minha função era levar o Marighella para os pontos que ele precisava cobrir”, explica, referindo-se aos locais de encontro entre aqueles que atuavam na clandestinidade. Embora fosse uma ativa integrante da rede de apoio da organização, Eliane jamais havia cumprido tarefas de tamanha responsabilidade. Mesmo assim, não se preocupava em demasia: “Era seguro. Ninguém imaginaria que Marighella estava sendo guardado tão perto do general”. Outra atividade de Eliane era sair com Clara em busca de alimentos, roupas, remédios, ajuda, enfim. Os recursos arrecadados se destinavam a famílias que ficaram sem fonte de renda, pois, no período, vários operários vinculados à ALN faziam treinamento em Cuba.

Aos 86 anos, Clara se emociona ao falar dos tempos na clandestinidade. “Não me lembro dos detalhes, mas, para um homem da posição dele, o Knapp foi muito corajoso”, diz. “O marido da Nair Benedicto também foi muito importante”, comenta, referindo-se ao empresário Jacques Breyton (1921-2005). Herói da resistência francesa ao nazismo, Breyton radicou-se no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, onde tornou-se um industrial de sucesso. Na época, era casado com a fotógrafa Nair Benedicto. O francês e a mulher enfrentaram a tortura e a prisão por atuarem a favor da ALN. Estavam atuantes no primeiro semestre de 1969, quando Marighella e Clara foram abrigados por Knapp e as organizações de resistência ao regime fizeram uma imersão total na luta armada.

Ambulância roubada
Fáceis no planejamento, algumas ações se revelaram desastrosas na prática. Foi o que ocorreu no dia 4 de junho de 1969, quando um comando da ALN desembarcou em frente a uma agência do Banco Tozan, na Avenida Penha de França, 634, na Zona Leste de São Paulo. Com aparência bonachona, o policial que fazia a segurança do banco carregava sempre uma submetralhadora INA e um revólver calibre 38. Um dos homens do comando guerrilheiro, Francisco Gomes da Silva, que treinava boxe, deveria derrubar o policial com uma direita no queixo e tomar a submetralhadora. A ideia era desmoralizar a polícia de São Paulo, deixando o revólver com o policial. A primeira parte do plano deu certo. Silva não teve problemas em tomar a arma. Só não contava em ser atingido perto do olho esquerdo por um projétil que  ricocheteou de uma rajada disparada contra a fachada do prédio ao lado. Nisso, o policial se levantou e, com o revólver, atirou mais quatro vezes contra Silva. No final, a ação que serviria para desmoralizar a polícia terminou com o policial morto e Silva gravemente ferido.

Eliane estava na casa onde morava com os pais, na rua Estados Unidos, quando recebeu um telefonema. Foi para o endereço de Knapp, onde o guerrilheiro baleado já esperava, dentro de um Fusca. “A situação era tão terrível que até hoje me lembro. Coloquei o rapaz numa cama. Daí a pouco, o lençol branquinho estava todo ensanguentado. Pus outro lençol, e outro. E o rapaz perdendo sangue, sangue, sangue.” O quadro não melhorou com a transfusão providenciada pelo médico Boanerges de Souza Massa, que prestava socorro à ALN. Sem outra alternativa senão a cirúrgica, o médico pediu a Knapp para levar o guerrilheiro baleado a um hospital onde ele trabalhava, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo. “Estacionei o carro afastado da entrada principal, enquanto o Boanerges foi negociar a internação. Um carro de luxo em uma região pobre chama a atenção. Uma senhora logo chegou para perguntar se eu tinha atropelado o rapaz”, recorda Knapp. No hospital, não houve acordo. A cirurgia foi realizada com parte da equipe médica sob a mira de armas. Como se não bastasse, o comando da ALN deslocado para o hospital “expropriou” uma ambulância para a retirada do paciente tão logo terminou a cirurgia.

Só restou a Knapp, a Eliane e ao médico entrarem para a clandestinidade. Enquanto a equipe de Fleury invadia a casa da rua Sofia e homens do Exército ocupavam a Oficina de Propaganda, o publicitário fez os primeiros movimentos para deixar o Brasil pela fronteira da cidade gaúcha de Santana do Livramento com o Uruguai. No final de julho de 1969, terminou o trajeto de mais de 1,6 mil km, usando uma peruca, que pregava na cabeça por meio de fitas adesivas dupla face. Nem se lembrou de que carregava sequelas de uma osteomielite sofrida na infância. “Com o disfarce, eu confiava não ser reconhecido pela polícia, esquecendo que a visão de um sujeito claudicante, com uma imensa bota ortopédica, me denunciava mais do que a semicalva que tentava ocultar”, ironiza hoje, ao relembrar a fuga. Cerca de três meses depois de Knapp chegar ao exílio, Marighella foi morto a tiros em uma emboscada preparada pelo delegado Fleury.

Autor de quatro livros, Knapp está prestes a terminar as memórias do período, cujo título deve ser Minha Vida de Terrorista. Embora ele próprio escreva sobre fatos ocorridos mais de 40 anos atrás, preocupa-se em não aparecer na Brasileiros “engessado” no passado. “Estou vivo”, diz. “Continuo fazendo coisas.” Parte de suas atividades no exílio, como o trabalho com o arquiteto Oscar Niemeyer, na Argélia, será relatada no livro. Depois que voltou ao Brasil, em 1980, Knapp ainda atuou no mercado publicitário e, mais tarde, integrou a Secretaria de Comunicação Social do governo Fernando Henrique Cardoso. No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos diretores da Radiobrás. Agora instalado em uma confortável casa no bairro paulistano de Perdizes, ele escreve sobre a mais dolorosa faceta de seu apoio à luta armada: o afastamento compulsório dos filhos Eduardo e Adriana, de seu primeiro casamento, com Arlette Pacheco. Ao mesmo tempo, planeja em detalhes a construção de uma nova casa, em um lugar ainda mais aprazível, a uma hora de carro de São Paulo: “Já não tenho compromissos diários na cidade”. Quando tiver, ele poderá chegar rapidamente, a bordo de seu carro atual, um Mitsubishi TR4 azul-marinho. A Mercedes, como se sabe, ficou com o Fleury.


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