“A vida é uma gota de creolina”

Luzilá Gonçalves Ferreira é grande professora, brilhante escritora e, chegada ao poema, soube fazer um surrupio das obras de Daniel dos Santos Lima. Ela foi a responsável por trazer até nós a obra do poeta. “Ele foi meu professor durante muito tempo. Era ciumento, não queria publicar seus escritos. Então, consegui ‘roubar’ seus textos. Pedi emprestado e não devolvi. Mostrei a ele apenas quando o livro estava quase pronto”, disse ela para a reportagem da Folha de Pernambuco, sobre o surgimento da obra Poemas (Companhia Editora de Pernambuco, 416 páginas, 2010), vencedor do Prêmio Alphonsus de Guimaraens de Poesia, em 2011, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional.

O pernambucano Daniel dos Santos Lima foi um grande poeta escondido em suas folhas, um mágico, um fermentador de palavras, um bruxo silábico, um garçom dos verbos, das aberrações do ser, da narração do insuportável e que nos dá, como disse Lourival Holanda, a poesia entre o silêncio e o gesto. Esse simples poético que volteia o mundo dos homens dizendo-os, desdizendo-os, tecendo-os em filigranas mansamente, em uma plenitude plumática de saber o que não se sabe, mas se balbucia. Isso é o poeta da creolina e da vida, dos janeiros, fevereiros e marços, como em Zodíaco: “A felicidade é fruta/que tem sabor e cica/Março é fruta e é feliz”.

Ou em outro momento:
“Minha alma é periódica
funciona algumas vezes na semana
e é palúdica, tem febre
às quintas-feiras.
Tenho também um corpo que coitado,
a hospeda por dever, mas constrangido.”

Daniel dos Santos Lima era padre e foi também pastor de palavras. Pastorava a ironia com humor: “O intelectual é um urubu/que se julga vestido,/mas que está nu/com uma pena de pavão/enfiada/no cu”.

E mais, aos 8 anos, ele disse: “A vida/bem compreendida é uma gota de creolina/caída/numa latrina”.

Daniel mostra seu ofício de pescador e pedreiro da palavra: “Tortura-se o poeta/em busca da palavra exata/Só que a palavra exata não há para a poesia…/A palavra aproxima/não chega”.

Ora, o poeta tange seu terço em Ladainha Invocada: “Nossa Senhora dos ricos/Nossa Senhora dos fortes e dos poderosos/rogai por eles! (…)/Nossa Senhora dos amarelos/dos sem camisa, dos sem cuecas/Nossa Senhora dos remelentos/Nossa Senhora dos miseráveis/dos fedorentos/rogai por mim!”.

Ou ele espoca e canta em Aconteço de Mais e Sou de Menos:
“Viver, mais que fazer, é ver
Pois é vendo que a vida se navega,
e dança do ser
se revela e se dá
na exata hora em que vai passando.
(E se perdendo).
Em pedaços, rasguei o calendário,
na tentativa de impedir
o avanço do tempo.
Parei o relógio: seu tic-tac
Me envelhece e faz medo.
Mas o tédio que senti à parada do tempo
me consumiu a alma
e extinguiu-me os desejos.
Morri assim com o tempo assassinado”.

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).


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