A voz dos que não tinham voz

Davi contra Golias. Um Peter Pan idea-lista a brandir seu punhal contra o bando do Capitão Gancho. Começou assim, sob a condução vigorosa e o olhar generoso do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, a guerra de guerrilhas deflagrada no início dos anos 1970 pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJP-SP): santo guerreiro contra um ostensivo dragão da maldade; exército sem munição a combater a violência institucionalizada pela repressão.

Perante a radicalização do regime militar, em tempos de Médici, era preciso agir. E agir, na maioria das vezes, significava gritar. Divulgar prisões para evitar desaparecimentos e “suicídios”; denunciar os crimes cometidos pelos governantes, dentro e fora dos porões; representar, proteger, resistir. Espernear, se preciso, como uma Alice indomável a ouriçar o dedo na fuça da rainha. Aqui, o papel de Alice foi interpretado por advogados, jornalistas, sociólogos, estudantes e operários, arregimentados pelo arcebispo de São Paulo para formar, junto à Arquidiocese de São Paulo, um núcleo dedicado à defesa dos direitos humanos e à busca por justiça social. É a trajetória deste grupo, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo – nascida para ser “a voz de quem não tem voz” -, o tema de Fé na Luta (Editora Lettera.com), sensível documento redigido por uma de suas mais aguerridas militantes: a historiadora Maria Victoria Benevides, capa de Brasileiros da edição de março deste ano.
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Militante dos direitos humanos e professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Maria Victoria integrou a equipe da CJP-SP durante muitos anos e soube discorrer sobre a matéria com a cadência privilegiada de quem viveu as experiências narradas. Não todas, é verdade. Mas ela esteve lá, e isso faz diferença. Histórias de fé e luta, por definição, tornam-se mais belas quando o envolvimento afetivo supera o distanciamento. E é através da lupa da militância engajada que a autora elege os fatos mais contundentes desses quase 40 anos de trabalho para transformá-los em fermento de esperança. “Esta é uma história bonita. Vivida com intensidade, com coragem e com medo – mas também, e sobretudo, com a paixão da solidariedade”, explicita a historiadora logo no primeiro parágrafo da apresentação. Para nós, leitores, é bom que seja assim.

As primeiras reuniões da Comissão Justiça e Paz foram realizadas em agosto de 1972. “Quase aos sussurros”, segundo a autora, “tamanha a consciência de que tais encontros poderiam ser taxados de subversivos pela repressão”. Tramava-se, na casa de Dom Paulo, uma forma organizada de fazer frente aos “horrores” patrocinados pela polícia. Sob inspiração da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, criada no Vaticano havia pouco pelo papa Paulo VI, e regularizada como sociedade civil legalmente constituída em 1974, a CJP-SP foi presidida até 1978 pelo jurista e professor da USP Dalmo Dallari, então substituído pelo também jurista José Carlos Dias. Nessa primeira fase, os advogados da Comissão assumiram a defesa de dezenas de presos políticos, evitando mortes, denunciando outras, e trazendo a público o que o governo teimava em esconder. Sua ação contribuiu, em larga medida, para refrear a violência já a partir de 1974 e empurrar o Brasil para a distensão.

Quando, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado no DOI-Códi (centro de tortura mantido pelas Forças Armadas na Vila Mariana, em São Paulo), integrantes da CJP-SP responsabilizaram o governo e promoveram um ato público de proporções inéditas na Praça da Sé. Para desmacarar os policiais civis que mantinham, em São Paulo, milícias dedicadas a executar presos e acusados de crimes comuns, os chamados “esquadrões da morte”, a Comissão promoveu a publicação de um livro-denúncia redigido por um de seus membros, o ex-procurador Hélio Bicudo, em 1976. Três anos depois, quando o operário Santo Dias da Silva foi morto, durante uma greve de metalúrgicos em Santo Amaro, lá estavam Dom Paulo e seus correligionários para, como sempre, apoiar, denunciar, espernear. Foi ainda sob o âmbito de atuação da CJP-SP que se produziu, na primeira metade dos anos 1980, o livro Brasil: Nunca Mais, pioneiro no País a descrever em detalhes as técnicas de tortura adotados pela repressão e a listar nomes de mortos e desaparecidos, e o Tribunal Tiradentes, júri popular que, à guisa de espetáculo, “condenou” a Lei de Segurança Nacional em 1983.

Grosso modo, as 421 páginas do livro acompanham a marcha da Comissão desde sua origem até o presente – quando se dedica a um importante projeto nacional de educação em Direitos Humanos e abraça duas causas de grande repercussão: a mobilização por uma reforma política democrática e com participação popular e a campanha pelo direito à memória e à verdade, no que tange aos crimes do regime militar, defendendo a abertura de arquivos e a revisão da Lei da Anistia. Amarram-se, deste modo, as duas pontas temporais do novelo fiado por Dom Paulo e desembaraçado, 37 anos depois, pela autora. “Passadas mais de três décadas (do ‘suicídio’ de Herzog e do operário Manoel Fiel Filho), a mesma mentira nos persegue, mas agora com o sinal trocado”, escreve o jornalista Eugênio Bucci nas orelhas do livro. “Antes, ela tentava impedir as investigações futuras. Agora, volta-se contra o passado. O objetivo é sonegar à sociedade o paradeiro dos restos mortais de centenas de brasileiros que foram ‘desaparecidos’ pela ditadura.” Além das orelhas assinadas por Bucci, a edição tem texto de quarta-capa escrito pelo professor Antônio Cândido e prefácio de Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos.

“Os primeiros integrantes da Comissão referem-se aos anos iniciais de trabalho como “fase das catacumbas”, e, por isso mesmo, os mais exigentes de dedicação e coragem. As reuniões eram realizadas na própria casa de Dom Paulo, por motivo de segurança, e pautadas por toda cautela que o momento exigia. Na mesma sala, em torno de uma única mesa, se reuniam, pela primeira vez, advogado, sociólogo, jornalista, estudante e operário. Ali se relatavam inúmeros casos de violência, colhiam-se as primeiras informações que iriam criar um verdadeiro ‘banco de dados’, com fotos das vítimas do aparato repressivo, depoimentos ou uma simples palavra ouvida dentro de uma prisão. Esse método de trabalho foi fundamental e, graças a ele, muitas vidas puderam ser salvas. Houve momentos em que o volume de processos era tão grande que os advogados da Comissão não tinham como vencê-los. Alguns chegaram a ter 70 clientes presos ao mesmo tempo.”


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