“Diacho, esse cara copiou meu livro”, disse Chico Buarque ao lembrar sua surpresa após ler Os órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum. O autor do dito livro respondeu: “Mas essa história eu contei pro Chico!”. E as milhares de pessoas que cercavam a Tenda a Telão e lotavam o Centro Histórico, por onde era impossível caminhar entre as 19h e as 21h, abarrotando-se entre guarda-chuvas, paralelepípedos e câmeras digitais, deixaram-se rir com a simpatia dos dois autores. [nggallery id=14623] A mesa mais disputada da Flip – os ingressos esgotaram-se em tempo recorde no dia em foram postos no site Ingresso Rápido, em junho – começou com um mediador nervoso, Samuel Titan Jr., confessando sua vontade de sair correndo, literalmente, do palco. A tensão foi seguida por uma leitura envolvente de um trecho de Leite derramado, último livro de Chico, e de duas passagens vigorosas da novela Os órfãos do Eldorado, pelo vozeirão de Hatoum.LEIA TAMBÉM:
Era uma vez…
O amigo do rei
Manhã de Flip bem-humorada
Vida de escritor
Sermões de Richard Dawkins
O velho e a literatura
Flores de plástico e amores expressos
Um divã para a China
A comédia da vida privada
Cinema comercial
Escutando Alex Ross
Dicotomias
Relatos ficcionais
Weekend à francesa
O (re)contador de histórias
Que homem é aquele que faz sombra no mar?
O último poemaOs autores começaram a conversa abordando a concepção das respectivas obras: Hatoum revelou que Os órfãos do Eldorado foi encomendada por uma editora escocesa, e entre risos jurou nunca mais fazer nada por encomenda – nem um bilhete. Porém, a história de seu livro o perseguia há muito tempo – pelo menos 36 anos – martelando-o, intermitente, até ser escrita. Já Chico se inspirou por uma antiga música de sua própria autoria, Velho Francisco (regravada recentemente por Mônica Salmaso), por acaso, para construir o protagonista e narrador de Leite Derramado, Eulálio D’Assumpção. Ambas, compostas como memória histórica – Hatoum trata dos mitos amazônicos e Chico aborda a aristocracia cafeeira de uma família quatrocentona em plena decadência – têm como protagonistas “velhos”. A memória, como motor da narrativa, compõe os espaços e deflagra os aspectos sócio-culturais do país, revelados nas idiossincrasias dos protagonistas.Ainda que a história brasileira seja abordada pelos dois livros, os autores assumiram não se utilizar de pesquisa em seus processos criativos: “Eu me sinto mais próximo da história quanto mais velho eu fico”, disse Chico, lembrando-se de ter ouvido, graças ao pai Sérgio Buarque de Hollanda, muitas das histórias paralelas – e indiscretas – que ocorreram ao longo da trajetória brasileira, em conversas entre amigos. “Meu pai gostava de fofoca”, brincou Chico. Por sua vez, Hatoum afirmou apanhar casos ouvidos durante a infância, bem como as leituras sobre as mitologias amazônicas. “Além disso, há as referências literárias, pois as coisas não caem do céu… Em Os órfãos do Eldorado, vocês vão encontrar Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cesário Verde, Camões… e muitos outros que eu não vou contar!”, assumiu Hatoum, que completou expondo que não desejava ser fiel à tradição realista em seu romance.A criação da voz narrativa nos romances, e a possessão do personagem ao tomar o autor investindo neste uma espécie de indumentária abstrata durante o processo da escrita, que parece persegui-los mesmo após o livro acabado, num jogo de atração e repulsa, foi questionada por Samuel. Para ele – cujo personagem de Leite Derramado parece preconceituoso, mesquinho e frívolo, características distantes da figura moral e cultural de Chico Buarque -, é complexo avaliar as relações de proximidade do autor com seu protagonista. Chico, no entanto, disse que na escrita o personagem é parte de si, numa relação conjugal que, em Leite Derramado, durou um ano e meio, tornando-se difícil delatá-lo ou mesmo despir-se de suas noções, ainda que contraditórias. “Como você faz pra sair (do personagem), Hatoum?”, perguntou Chico ao assumir que ainda carregava Eulálio D’Assumpção consigo, mesmo sem querer. “Um pouco depois de escrever o livro eu quebrei a perna. Era o Eulálio querendo que eu me lembrasse dele!”, exclamou Chico. E Hatoum respondeu citando Octavio Paz: “O romancista é um biógrafo de espectros… Eu me desvencilhei porque já estou em outro personagem. Mas não posso dizer porque ainda não sei o que é!”. Hatoum explicou que o modo como lida com a obra é de substituição, pois ao terminar um livro parte imediatamente para outro projeto, evitando que o personagem lhe consuma demasiadamente.Após afirmar que escrever é uma chatice – e que prefere ler, sem dúvidas -, o espirituoso Chico tirou mais risadas do público ao revelar que pesquisou sobre o livro de Hatoum no Google, e brincou com o colega e consigo mesmo: “Imaginação não existe. Já estava tudo no Google!”.Além de acolher personagens femininas fortes e fugidias, o poder de concisão é outro ponto em comum, dos inúmeros, entre Leite derramado e Os órfãos do Eldorado. Chico aproveitou o tema para assumir a obsessão de seu personagem por algumas memórias, as quais são remoídas incessantemente. “Se o Eulálio não repetisse tanto, o livro poderia ter 20 páginas”, soltando mais um gracejo charmoso para a plateia já encantada, que escutava o debate num silêncio sepulcral – que perdurou ao longo da uma hora e meia de conversa, encerrada por Samuel Titan Jr. com um tom criminal, sabendo que privaria os ouvidos de milhares de espectadores – e os seus – de uma bela conversa.Após a mesa, Chico caminhou – em meio a uma multidão em polvorosa, câmeras, microfones – até a tenda do telão para o início de uma sessão de autógrafos “limitada”, como alertou Samuel, dividida com Hatoum para os que estivessem interessados realmente nos livros, e não na cultura das celebridades. O furor e o frenesi causados, sem igual, pareciam espetacularizar uma literatura que, se um dia foi uma atividade reclusa, de autores constrangidos em seus escritórios, com cinzeiros e manuscritos à nanquim, agora se situa no mesmo hall do star system do cinema e de seus astros.Hoje, sábado, pela manhã, Paraty parece estar de ressaca. Não é só de literatura que vive a Flip. Os bares e botecos da cidade permanecem cheios a qualquer hora do dia: não só atrás das famosas pingas locais, mas também de um papo acompanhado da boa e velha cerveja gelada – a qual não pára de chegar em carrinhos que se movem com dificuldade pelas ruas de pedras molhadas. Uma notícia triste em meio à Festa: o poeta carioca Rodrigo Souza Leão faleceu na quinta-feira (2). Rodrigo nasceu em 1965 e, além de poeta, era músico e jornalista. Com mais de dez e-books publicados, também tinha presença marcante em diversas revistas de poesia como Oroboro e Et Cetera. Alguns trabalhos de Rodrigo podem ser vistos em http://www.geocities.com/seumario/ e http://lowcura.blogspot.com/. A banda da cidade de Paraty tirou todo mundo dos restaurantes durante o almoço desta sexta-feira (3). O batuque chamou um mar de gente, que se aglomerava numa estreita rua da cidade histórica, e que acompanhou a banda e a dançarina empolgada com muita animação. Dê uma olhadinha aqui: Domingo (5) é o último dia da oficina literária. Desde a primeira Flip, em meio às dezenas de atividades, ainda se realiza uma oficina literária, pelas quais já passaram coordenadores como Milton Hatoum, Lucrecia Martel e Arthur Dapieve. A partir de um processo seletivo, 30 pessoas foram escolhidas para criar textos originais e discuti-los com Carlito Azevedo, responsável pelas atividades da oficina deste ano, que estende a homenagem a Manuel Bandeira e tem como tema a poesia. Carlito Azevedo, recentemente considerado um dos vinte maiores poetas brasileiros vivos, é editor da revista Inimigo Rumor (http://www.cosacnaify.com.br/noticias/inimigorumor/), dedicada à produção e discussão da poesia brasileira contemporânea, e autor de Collapsus Linguae (seu livro de estreia e Prêmio Jabuti 1991), As banhistas (1993), Sob a noite física (1996), Versos de circunstância (2001) e Sublunar (2001). O Fórum de Comunidades Tradicionais, espaço público constituído por representantes das comunidades quilombolas, caiçaras e índios guaranis da região de Paraty, realizou uma manifestação na sexta à tarde nas ruas da cidade. O Fórum queria chamar a atenção para os direitos das comunidades tradicionais, e fez muito barulho perto da Tenda do Telão, além de conseguir com que Chico Buarque os apoiasse repassando o recado do Fórum no fim de sua mesa, a mais assistida do evento.
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