Mulheres entram e saem do Hospital Pérola Byington, na região central da cidade de São Paulo, com um segredo que provavelmente guardarão para sempre. Chegam sozinhas, com medo e vergonha. A maioria foi vítima de violência sexual e está ali para fazer um aborto. “Se contam para alguém, é para uma amiga. Falar para a família é mais complicado”, diz Daniela Pedroso, chefe do atendimento psicológico do Serviço de Aborto Legal da instituição.
No Brasil, a interrupção da gestação é permitida apenas nos casos em que é decorrente de estupro e se há risco de morte para a mãe. Esse direito existe desde 1940. No entanto, a primeira norma técnica do Ministério da Saúde para regulamentar e implantar devidamente o procedimento na rede pública foi redigida 59 anos depois, em 1999. Já o direito de abortar fetos anencefálicos foi reconhecido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal.
O Pérola Byington é um centro de referência em saúde da mulher e na realização desses procedimentos. “Chegamos a fazer um terço de todos os abortos registrados por ano no País”, diz o médico Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal.
Em 2016, cerca de 320 mulheres foram submetidas pela equipe do médico ao aborto legal, número que é quase o dobro das intervenções feitas no ano anterior. “Se você reunir todos os outros serviços no estado de São Paulo em um ano, eles chegarão a uma fração do que é feito no Pérola. Essa concentração é terrível”, diz Drezett.
A realidade é que ainda são poucos os serviços que praticam o aborto legal e o atendimento integral previsto nesses casos. É o que evidenciam os dados obtidos pela pesquisa Serviços de Aborto Legal no Brasil – um Estudo Nacional, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, professora de Bioética da Universidade de Brasília e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética. Diniz foi uma das principais articuladoras da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que admitiu o aborto em casos de anencefalia em 2012.
A pesquisa mostrou que, entre 2013 e 2015, um total de 5.075 mulheres foram à rede pública em várias partes do País para realizar o procedimento, mas apenas 2.442 tiveram êxito. O estudo não investigou o que aconteceu às mulheres que não conseguiram abortar, mas não é errado imaginar que boa parte foi parar em clínicas clandestinas.
O estudo avaliou 68 centros de referência cadastrados no Ministério da Saúde, dos quais apenas 37 estavam, de fato, realizando o aborto. Em sete estados, não havia serviço disponível e 70% dos atendimentos foram realizados na região Sudeste. Essa ideia é reforçada pelo volume de pacientes de fora de São Paulo atendidas no “Pérola”. Em 2016, elas representaram metade do movimento do serviço. “Cerca de 18% foram encaminhadas por serviços públicos do estado que, publicamente, se dizem aptos a realizar o aborto legal, mas não o fazem”, aponta o obstetra Drezett.
Sobram dificuldades para complicar a vida da mulher que precisa se submeter ao aborto legal. Uma delas é a negativa de alguns médicos em realizar o procedimento. Eles estão amparados pelo código de ética médica e por uma norma técnica que permite rejeitar a tarefa por “objeção de consciência”. A mesma norma, porém, determina aos serviços públicos credenciados que garantam o atendimento em tempo hábil por outro profissional da instituição ou de outro serviço. E mais: a objeção de consciência não é reconhecida na falta de outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou a omissão do atendimento puder causar danos.
O pedido de documentos que não são mais exigidos legalmente nos casos de violência sexual é outra barreira. Muita gente não sabe, mas não é obrigatório apresentar Boletim de Ocorrência e nem um laudo do Instituto Médico Legal. Apesar disso, 14% dos serviços em atividade ainda pedem tais comprovações, como mostrou o estudo conduzido por Diniz.
Mesmo amparada pela lei, a mulher que chega aos serviços de aborto legal ainda pode ser maltratada. Lamentavelmente, é comum no País encontrar médicos e funcionários dos serviços de saúde capazes de inocular suspeitas sobre a história da violência relatada. Levantamento de 2012 feito com ginecologistas e obstetras brasileiros mostrou que 43% dos médicos declararam objeção de consciência quando não tinham certeza se a mulher estava contando a verdade sobre o estupro.
“A ambiguidade que o aborto legal provoca por ser exceção à regra da criminalização gera essas distorções. Em vez de ouvir, acolher e cuidar da mulher em sofrimento, os profissionais assumem postura policial, promovendo a intromissão de um requisito investigativo no que deveria ser apenas cuidado em saúde”, afirma Diniz.
A resistência dos médicos é mais intensa em relação ao aborto por violência sexual do que à interrupção de uma gestação de risco. “Os profissionais sabem que até 35% de toda mortalidade materna está relacionada a complicações de saúde que se acentuam na gravidez”, diz o médico. A oferta de assistência integral às vítimas da violência sexual é outro desafio.
Mesmo entre os serviços cadastrados pelo Ministério da Saúde, são raros os que prestam atendimento como manda o figurino, conforme aponta Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) e professor livre-docente de Genética Médica pela Universidade de São Paulo.
A integralidade de que fala Gollop engloba o acolhimento, o suporte psicológico, a coleta de material para extração de DNA e possível identificação do agressor, a anticoncepção de emergência, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e, quando indicada, a interrupção da gravidez. “Dos mais de cinco mil municípios do País, apenas 1% teria esse atendimento, ainda que incompleto”, diz Gollop.
O especialista atribui essa escassez a fatores como as pressões políticas de prefeitos, das câmaras de vereadores e de variados cultos religiosos. Some-se a isso a cumplicidade do estado. “Os serviços de saúde têm ignorado essa responsabilidade sem que sejam incomodados pelas autoridades”, aponta o obstetra Drezett.
O “esquecimento” do tema é extensivo às faculdades de medicina, especialmente àquelas ligadas a universidades regidas por religiões. “Como muitos temas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos, a questão do aborto deixa de ser discutida e permanece um tabu para a maioria das escolas médicas e médicos em geral”, diz Gollop. “Não faz parte do currículo das faculdades, dos congressos e simpósios da área. E quando incluídos na programação, isso se dá no último dia do evento, quando há mínima audiência.”
Ao chegar nos hospitais com complicações pós-aborto, frequentemente as mulheres são alvo de desconfiança. Muitas postergam ao máximo a ida ao hospital em razão das denúncias feitas à polícia por médicos, funcionários ou agentes dos serviços de saúde. Na visão do juiz e professor José Henrique Torres, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), quem está cometendo um crime são os acusadores.
Pelo código de ética médica, a relação de confidencialidade entre médico e paciente não pode ser desrespeitada. “A polícia deveria desconsiderar essas denúncias porque são uma prova ilícita, praticada de forma criminosa. O Ministério Público, em vez de instaurar inquérito para apurar a conduta da mulher, deveria fazê-lo por violação de sigilo profissional e crime de quem fez a denúncia.”
Para Torres, há incompatibilidade entre a legislação brasileira, o sistema internacional de direitos humanos e a assistência e saúde da mulher: “A criminalização em si acarreta mortes de mulheres, sequelas terríveis e tem um custo social muito grande. Não consegue proteger o feto, a vida. Ao contrário, traz prejuízos para a saúde e vida das mulheres”.
Por isso, a questão precisa ser enfrentada de outras formas que não a drástica, severa e repressiva penalização das mulheres. O especialista argumenta que a criminalização contraria diversos princípios constitucionais. “Quando uma sociedade tem um problema a ser enfrentado, deve lançar mão de providências legislativas e políticas públicas antes de criminalizar, o que deveria ser a última alternativa a ser posta em prática pelo estado”, explica.
A proibição do aborto contrariaria ainda o princípio da idoneidade, uma vez que não reduz o índice de procedimentos realizados. “As pesquisas apontam que as mulheres não deixam de fazer o procedimento porque é criminalizado”, diz Torres. O princípio da racionalidade também sai ferido. No caso do aborto, a criminalização empurra as mulheres para o atendimento clandestino, matando-as e deixando sequelas. “O estado não pode causar problemas maiores ainda”, afirma o juiz. A cada ano, no Brasil, são feitos de 700 mil a um milhão de abortos, segundo Torres.
“É uma ilegalidade consentida. Se temos um milhão de abortos praticados, deveríamos ter um milhão de mulheres processadas. Isso não acontece porque a ideia é manter a criminalização como uma ameaça constante contra as mulheres, com o objetivo de controlar o corpo e a sexualidade femininos”, analisa o juiz.
Um caminho a seguir, segundo o especialista, seria a linha adotada em uma decisão do STF, que afirmou, recentemente, não haver crime de aborto até o terceiro mês de gestação. Ainda que diga respeito a um caso específico, é considerada um avanço na descriminalização do ato e pode influenciar magistrados de outras instâncias. Outros países já consentiram o aborto no início da gravidez, como Portugal, Itália, França e Espanha.
“O Brasil possui regras muito restritivas sobre aborto, inspiradas na legislação italiana fascista de Mussolini”, diz Gollop. Além disso, tentativas de retrocesso emergem volta e meia, como a proposta do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), que queria obrigar as mulheres a ir à delegacia de polícia antes de ter atendimento. “A intenção de Cunha não era punir o agressor, mas ver se a mulher não estava mentindo”, pontua Drezett.
Na opinião da antropóloga Débora Diniz, estamos aquém do que poderíamos. “Mas, por iniciativa das mulheres, o tema tem se mantido em pauta e deve amadurecer”, diz a especialista. Que seja rápido. O aborto clandestino é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Estima-se que tire a vida de 300 brasileiras a cada ano.
MODELO A SER COPIADO
No Hospital Pérola Byington, o atendimento a quem procura o aborto legal começa com uma conversa para ouvir a história de cada mulher e avaliar se ela está em situação de risco, se precisa de abrigo e assistência social. Depois, é feita uma avaliação emocional, psicológica e das condições de saúde.
A maioria é encaminhada pela polícia, pelo Instituto Médico Legal ou outros serviços de saúde. “Mas estamos vendo um aumento da busca espontânea por atendimento”, diz o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que chefia o Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. Isso seria resultado da divulgação dos serviços pela Internet e funciona como um indicativo de que as mulheres estão menos dependentes de intermediários para encontrar os locais de atendimento.
Feitos os exames, a mulher assinará cinco documentos. Neles, se responsabiliza pelo que é declarado para fazer o aborto legal, autoriza o procedimento e se diz ciente das alternativas. A equipe médica aprova ou não o pedido e, por fim, faz uma avaliação técnica do tempo de gravidez para checar se é compatível com o tempo passado do estupro.
Entre 25% e 30% das mulheres não conseguem aprovação para fazer o aborto legal. O principal motivo é o tempo de gestação superior ao limite técnico para interrompê-la – até a 20ª semana ou até a 22ª se o feto pesar menos de meio quilo. O segundo impedimento mais frequente é a gravidez não ser decorrente de violência sexual.
“Muitas vezes, a mulher foi estuprada e está grávida, mas não do estuprador”, diz Drezett. Depois do procedimento, a psicóloga Daniela Pedroso, que há 20 anos dá suporte às mulheres que vão ao hospital, diz que prevalece um sentimento de alívio.
“Elas sentem que poderão retomar a vida, o trabalho, os estudos – voltar a ser quem eram antes de engravidar.” Segundo a psicóloga, aproximadamente 25% das mulheres pensaram em suicídio. “O trauma é maior em relação ao estupro e à falta de opção para fazer o aborto do que pelo procedimento em si”, diz a especialista.
Pela complexidade da situação, o “Pérola” oferece acompanhamento psicoterapêutico por seis meses a um ano. Metade das mulheres aceita frequentar as sessões.
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