Quarta-feira, 12 de abril de 1961. Oito e meia da manhã. Cozinha de um pequeno apartamento em Moscou. A jovem Valentina Gagarin pica rapidamente o repolho para o delicioso borcht do almoço, enquanto a água começa a ferver na panela. Os pedaços de coxão-duro estão separados. O creme de leite já foi encomendado, não demora a chegar.
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Fica nervosa quando chamam à porta. Não pode abrir com as mãos lambuzadas. Será a vendedora de creme de leite?
– Não se preocupe, sou eu, Vânia – grita de fora a vizinha do apartamento ao lado.
Adentra a sala quase sem ar. A muito custo, com a mão no peito e os olhos saltando das órbitas, consegue dizer alguma coisa:
– Valentina, acho que seu marido esteve no espaço sideral.
– Hein?
A história foi contada ao jornal Izvestia pela filha de Gagarin, 50 anos depois de acontecer. Nem à própria mulher seu pai revelara o que ia fazer naquela manhã. Muitos dias antes, provavelmente ele havia se despedido dela, com aquela desculpa clássica:
– Meu bem, vou trabalhar, não sei quando volto, estou a serviço da pátria.
– Já sei… já sei… conheço bem essa história, pode ter dito ela, desconfiada do seu par, um boa pinta de 27 anos, embora um quase anão de 1,57 m de “altura”.
Rumores e boatos
O fato de Valentina não saber de nada explica como um segredo compartilhado por centenas de pessoas não vazou. Nem o principal envolvido contou em casa. Todos foram proibidos de espalhar. E sabiam que não valia a pena desobedecer. O segredo foi guardado por anos e anos. Não se constrói do dia para a noite um foguete Vostok e uma nave Oriente. Não se treina um cosmonauta em meia hora. O governo da URSS jamais anunciou essa viagem. Nenhum repórter furão noticiou. Um silêncio siberiano envolveu a missão.
Somente em 3 de abril de 1961 começam a pipocar rumores. Há algo estranho no ar. O Observatório Bochum da Alemanha Ocidental detecta “uma intensificação de mensagens telegráficas nas frequências utilizadas pelos satélites soviéticos, o que sempre acontece no prelúdio do lançamento de um novo aparelho ao espaço pela União Soviética.”
Exatamente sete dias depois (10 de abril), boatos na imprensa mundial ganham espaço de manchete: “Moscou lançou o primeiro homem ao espaço”. Os indícios são: equipes da TV estatal nas ruas da capital, preparadas para colher depoimentos da população; jornalistas 24 horas de plantão nas redações. Mas o Kremlin não diz nem “da” nem “niet”.
O telegrama da agência de notícias soviética – Tass – é distribuído 48 horas depois: “No dia 12 de abril, foi colocada em uma órbita ao redor da Terra a primeira nave cósmica com um homem a bordo. O nome da nave é Oriente.”
Um halo azul-claro
Os russos ficam aturdidos, mas transbordando de orgulho. Tudo o que eles queriam na época era “alcançar e ultrapassar os Estados Unidos”. Os norte-americanos sentiram-se naquela manhã uns perfeitos losers. As mais recentes façanhas espaciais deles são pífias: a 29 de março, o foguete Titan faz percurso de 8 mil km sobre o Atlântico Sul… A 8 de abril o satélite Discoverer 23 dá algumas voltas à Terra… Bullshit!
Gagarin sobe a 40 mil km por hora até 340 km de altura – mais ou menos a distância de São Paulo ao Rio, na vertical. E então voa em volta da Terra a 29 mil km por hora. Depois de 89 minutos no espaço – quase o tempo de uma partida de futebol -, desce à Terra cantando. Ele nunca disse, nem lhe perguntaram, mas levando em conta as juras de amor que fez ao Partido Comunista, deve ter cantado A Internacional.
No mesmo dia, a agência Tass distribui uma foto da família Gagarin: Yuri lê jornal e, a seu lado, a mulher toma a lição do filho pequeno na mesa de jantar. A legenda diz: “Algumas horas depois de chegar do espaço, o astronauta Yuri Gagarin repousa em casa com a família.” Perfeito demais para ser verdade.
Gagarin fala ao Pravda. Depois à imprensa internacional, em uma coletiva. Podem procurar, ele jamais diz “a terra é azul”. Jamais, em jornal algum.
– “Sinto-me perfeitamente bem. Todos os aparelhos da nave cósmica funcionaram perfeitamente. Durante o voo, eu via a Terra, mares, montanhas, grandes cidades, os bosques e os rios também eram visíveis.”
– “Devo dizer que a vista do horizonte é única e formosíssima. É possível ver as mudanças do notável colorido, desde a clara superfície da Terra ao firmamento inteiramente escuro onde se pode ver as estrelas. Essa linha divisória é muito estreita, fica difícil explicar isso em palavras. Quando saí da sombra da Terra o horizonte parecia diferente. Tinha, então, uma brilhante franja alaranjada que se transformou em azul e dali passou para o preto absoluto.”
– “A Terra está cercada por um halo azul-claro.”
– “Não tive medo. Quero consagrar a vida à conquista do espaço cósmico.”
– “Os braços e as pernas não pesavam nada. Os objetos flutuavam na cabine. Tampouco permaneci na cadeira. Enquanto estive nessa condição, comi e bebi e tudo correu como na Terra. Até trabalhei nesse estado. Minha letra não mudou, se bem que a mão não pesava nada. Mas tive de segurar o caderno, senão ele voaria.”
– “A viagem pelo cosmos foi muito agradável e eu gostaria de fazê-la de novo”.
– “Tenho certeza de que chegará o dia em que os sindicatos operários oferecerão passagens para viagens em volta da Terra.”
O herói, o herói
No dia 14 de abril, Moscou presta a Gagarin a maior homenagem de seus 800 anos. O herói desfila ao lado do primeiro-ministro Nikita Kruschev em carro aberto pela Avenida Lênin. A multidão delira. São freneticamente recebidos na Praça Vermelha. Todos querem ouvi-los.
“Este êxito vai imortalizá-lo, pois sois o primeiro homem que penetrou no cosmos”, diz Nikita Kruschev. Ele beija e abraça Gagarin como talvez jamais tenha feito antes com algum homem. Ou mulher.
“Cumpri com êxito minha missão para o partido e o governo comunistas. Meu amor pelo Partido Comunista e pelo povo soviético fez com que eu cumprisse minha missão”, agradece Gagarin.
O povo canta, dança e bebe nas ruas de toda a União Soviética. O feito é inigualável. Salvas de 21 tiros sacodem Moscou.
“É a maior façanha científica da história da humanidade”, saúda o afamado cientista Bernard Lovell, diretor do Jodrell Bank Observatory, de Londres.
Gagarin recebe a Estrela de Ouro de Herói da URSS; a Ordem de Lênin; é condecorado como “Cristóvão Colombo do espaço” e ganha a Medalha de Ouro de Tsiolkovsky.
Konstantin Tsiolkovsky é o pai dos voos espaciais. Gagarin o reverencia: “Já na escola técnica e vocacional, nós adorávamos esse nome. Estudamos suas obras. Posso dizer que em seu livro Fora da Terra ele predisse com exatidão, há 40 anos, tudo o que eu vi durante o voo. Como ninguém anteriormente, Tsiolkovsky imaginou claramente o mundo, tal qual se abre ao homem que se eleva no espaço.”
Konstantin sofreu em Izhevskoye, onde nasceu, desde pequeno. Meio surdo em decorrência de escarlatina, foi recusado nas escolas, os pais educaram-no em casa até os 16 anos. Talvez o fato de ser educado fora da escola tenha contribuído para transformar um aluno rejeitado em gênio.
O berço
Tsiolkovsky, cujas feições lembram um mujique de Dostoievski, estabeleceu as fundações teóricas para muitos aspectos da propulsão de foguetes e viagens espaciais. Ele é considerado o pai do voo espacial humano e o primeiro homem a conceber o elevador espacial, inspirado pela recém-construída Torre Eiffel, após fazer uma visita a Paris, em 1895.
“A Terra é o berço da humanidade, mas a humanidade não precisa morar para sempre em seu berço” é uma de suas frases.
A sua obra literária mais famosa, intitulada A exploração do espaço cósmico por meio de dispositivos de reação, publicada em 1903, é, provavelmente, o primeiro estudo acadêmico sobre foguetes.
Tsiolkovsky foi o primeiro a calcular que a velocidade de escape da Terra para órbita era de 8 km/s e que, para atingir esta, era necessário um foguete de múltiplos estágios, utilizando oxigênio líquido e hidrogênio líquido como combustível. Entre as suas obras, encontram-se esquemas para foguetes com múltiplos estágios, estações espaciais e sistemas biológicos de ciclo fechado, para fornecer comida e oxigênio a colônias no espaço. Em 1929, propôs a construção de foguetes com múltiplos estágios no seu livro Comboios Cósmicos. A sua obra influenciou cientistas da Europa e dos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960. A equação básica para a propulsão de foguetes é denominada Equação de foguetes de Tsiolkovsky.
A marca Gagarin
Yuri Gagarin foi o homem mais importante do mundo enquanto viveu. Não havia rei, presidente, milionário, artista que o superasse em fama. O assédio inimaginável o tirou do eixo. Levá-lo para a cama era o desejo de todas as mulheres belíssimas e irresistíveis do mundo. Os homens mais poderosos queriam tocá-lo ao menos ou ouvir seus conselhos. Poucos dias houve em que não lhe renderam homenagens em algum recanto da Terra. Não havia como não se embriagar com esse megassucesso planetário que durou sete anos.
A sua morte ainda é um segredo. As conclusões da comissão que investigou a queda do MIG 15 bimotor de treinamento, pilotado por ele a 27 de março de 1968, dormiram por quase 50 anos em um arquivo do Comitê Central do Partido Comunista, criado em 28 de novembro de 1968, com o carimbo “segredo de Estado”. Somente agora foram desengavetadas. Mas não são categóricas: “A causa mais provável da catástrofe foi uma manobra brusca do piloto para evitar uma sonda atmosférica”. “Ou talvez, o que é menos provável, para evitar entrar em uma camada de nuvens”, conclui. Mais de 200 documentos desarquivados não dissipam as dúvidas – foi complô da KGB? Ele pilotou embriagado? Não sabia mais pilotar direito, tão ocupado estava em suas tarefas de herói oficial e propagandista da União Soviética? -, mas culpam Gagarin.
Todos os documentos disponíveis foram abertos. Mas nem todos estão disponíveis. “Não encontramos alguns deles”, admitiu o subchefe da agência espacial russa Roskosmos, Vitali Davydov.
Não consta que as glórias e honrarias de Gagarin tenham resultado em patrimônio para ele e sua família. Nem seria possível em um regime em que o Estado é o dono de tudo. Somente agora suas filhas obtiveram o registro internacional da marca Gagarin. Foi avaliada por especialistas em 25 milhões de euros.
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