Os marcos do desaparecimento não poderiam ter sido mais evidentes. Na noite de 25 de dezembro de 1991, o então presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachóv, renunciou, reconhecendo a independência das antigas repúblicas soviéticas e extinguindo o próprio posto. Na sequência, a bandeira vermelha com a foice e o martelo foi substituída no alto do Kremlin pelo estandarte tricolor (branco, azul e vermelho) da Rússia pré-revolucionária. Naquela altura, Gorbachóv já havia acertado com o presidente da Rússia, Bóris Ieltsin, a transferência do controle de um arsenal nuclear capaz de eliminar a vida da face da Terra. Era o fim da União Soviética, o Estado socialista criado 71 anos antes.
O império acabou, mas o homem soviético continuou a existir. É o que se depreende de O Fim do Homem Soviético, o mais recente livro da escritora Svetlana Aleksiévitch, ela própria cidadã da União Soviética por mais de quatro décadas. Bielorussa nascida há 68 anos na Ucrânia, Svetlana mantém na obra a técnica de colagem, pela qual justapõe depoimentos gravados entre 1991 e 2012, mas permite-se algumas intervenções, como na introdução intitulada “Observações de uma cúmplice”. Nela, a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015 afirma que o comunismo tinha o plano insano de refazer o “velho homem”, o antigo Adão.
“Talvez tenha sido a única coisa que conseguiram fazer. Depois de setenta e tantos anos, no laboratório do marxismo-leninismo, cultivaram uma espécie humana peculiar, o homo sovieticus. Uns consideram-no um personagem trágico, outros o chamam de sovok”, escreve Svetlana. Em russo, sovok significa uma pá tosca para recolher lixo. Em linguagem figurada, é o sujeito que aderiu sem pestanejar à ideologia oficial. No livro de Svetlana sobram sovoks.
Há aqueles que garantem que vão morrer comunistas e que a guinada promovida por Gorbachóv foi “uma operação da CIA para destruir a URSS”, referindo-se à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o nome completo da União Soviética. Outros se revoltam pelo fato de um “país grandioso” ter sido vendido “por um par de jeans, um pacote de Marlboro e um chiclete”. Há também a nostalgia por ter pertencido a uma potência, que se orgulhava de façanhas como as do cosmonauta Yuri Gagarin, o primeiro homem a viajar pelo espaço. E o desconsolo de viver em um país com menor importância geopolítica depois da atuação de Gorbatchóv (“o coveiro do comunismo”, “o traidor da pátria”).
Com a esperança de uma improvável volta ao passado, alguns ainda guardam no sótão documentos do Partido Comunista. Tem quem guarde até bustos de Vladimir Lênin, o líder da revolução que culminou na União Soviética, cujas estátuas foram derrubadas na fase de manifestações de rua que antecedeu o colapso do império. Os testemunhos costurados por Svetlana mostram sobretudo que o homo sovieticus não imaginava que a liberdade conquistada no pós-1991 viria acompanhada de uma brutal perda de segurança no cotidiano.
De imediato, quem sentiu mais foram os aposentados. Uma das depoentes, Marina Tíkhonovna Issáitchik, condecorada por títulos como stakhanovista (operária que produzia além da cota), lembra como sua aposentadoria perdeu valor da noite para o dia. “Eu mesma comecei a trabalhar como babá, cuidando do filho dos outros. Me dão uns copeques, e aí eu compro açúcar e um pouco de kolbassá (um tipo de embutido) magra. E a nossa aposentadoria? É para comprar pão e leite; um chinelo para passar o verão já não dá para comprar. Não sobra. Antes os velhos ficavam sentados no banquinho do pátio, despreocupados. Ficavam bisbilhotando. Mas agora não… Um recolhe garrafas velhas pela cidade, outro fica vagando ao redor das igrejas… Pedindo para as pessoas…”.
No livro dividido em duas partes (O Apocalipse como Consolação e O Fascínio do Vazio), com depoimentos agrupados por décadas, existem muitos pontos em comum, a começar pelo suicídio. A maior parte do testemunho da aposentada convertida em babá é sobre o vizinho que surpreendeu a todos se imolando com fogo no jardim. Outra história tocante é a da mãe de um garoto de 14 anos que quase não conseguiu sair do estado de torpor que entrou diante da escolha do filho: “Por que o nosso amor não foi suficiente para detê-lo?”.
A morte mais esmiuçada é a do mare-chal Serguei Fiódorovitch Akhromiêiev, encontrado no gabinete que ocupava no Kremlim com um “laço corrediço, feito com um barbante sintético”, em volta do pescoço. “A ponta superior da corda estava presa à alça da moldura da janela com fita adesiva”, reproduz Svetlana, de um documento do inquérito que investigou a morte de Akhromiêiev. Antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o marechal atuava como conselheiro de Gorbatchóv e desfrutava férias em uma estância militar, em 19 de agosto de 1991, quando soube que um golpe contra o governo estava em andamento.
O marechal não pensou duas vezes. Voltou para Moscou, onde um grupo linha-dura liderado pelo vice de Gorbatchóv, Guennádi Ianáiev, queria interromper o programa de reformas econômicas que ficou conhecido como perestroika. Na Crimeia, onde passava férias, Gorbatchóv foi colocado em prisão domiciliar. Na capital soviética, Ianáiev decretou estado de emergência, mas o povo não se intimidou com os tanques de guerra posicionados nas principais avenidas e se aglomerou em defesa da perestroika e da glasnost (transparência política). Moscou e São Petersburgo, então Leningrado, foram palco de imensos protestos. O marechal, por sua vez, se alinhou com os golpistas. Estava convicto de que a União Soviética caminhava rumo à extinção e não suportava essa ideia.
O golpe fracassou em três dias. Passados outros três, o marechal foi encontrado morto no Kremlin. Seis anos depois, um projetista entrevistado na Praça Vermelha confidenciou a Svetlana não saber por que havia defendido Iéltsin, o presidente russo, que, na ausência de Gorbachóv, enfrentou os golpistas. Só lembra que, em um determinado momento se viu disposto a pegar em uma metralhadora e atirar nos comunistas: “Nós não entendíamos o que estava sendo preparado para substituir o que tínhamos. O que queriam nos empurrar. Um enorme engano! O Iéltsin falou contra os ‘vermelhos’ e passou para o lado dos ‘brancos’. Uma catástrofe… Uma pergunta: o que é que nós queríamos? Um socialismo brando… humano… E o que é que nós temos? Na rua, o que se vê é um capitalismo feroz.”
O projetista tinha razão. No decorrer dos anos 1990, uma minoria ficou muito, muito rica. É a turma que ostenta, que tem casa na ilha de Chipre, no Mediterrâneo. O contato com uma integrante do grupo é descrito no livro: “Todos ficavam perplexos com as histórias dela… Que casa ela tinha: trezentos metros quadrados! Quantos criados: cozinheira, babá, motorista, jardineiro… Ela e o marido iam passar as férias na Europa… Museus, tudo bem, mas as butiques… As butiques! Um anel de tantos quilates, e o outro… E pingentes… brincos de ouro… Sucesso total!”.
Naquele momento, como agora, boa parte da nova geração pouco se interessava pelos detalhes da História. Só não entende por que os pais não ficaram ricos nos anos 1990, quando era fácil. Chegam a chamar os pais de “impotentes da cozinha”, pelo antigo costume de passarem muito tempo nesse cômodo da casa, discutindo política. Enfim, “os impotentes da cozinha” não paravam de ir às manifestações. Para um dos entrevistados de Svetlana, eles “ficavam tentando sentir o cheiro da liberdade quando os inteligentes repartiam o petróleo e o gás”.
Assim como os aposentados, os intelectuais encontraram muitas dificuldades para se adaptar à realidade capitalista. O projetista que enfrentou os tanques soviéticos conta que o escritório onde trabalhava, junto com a mulher, não demorou a fechar. Sem emprego, o casal primeiro vendeu tudo o que tinha algum valor. Depois, ela começou a fazer faxina em empresas. Ele passou um bom tempo vendendo bitucas, pontas não fumadas de cigarro, que os pais de sua mulher, professores universitários, catavam na rua: “E as pessoas compravam. Fumavam. Eu mesmo fumava”.
A composição de testemunhos costurados por Svetlana não aponta com precisão o que deve vir pela frente naquela parte do mundo, mas indica que algo parecido com o fascismo pode estar no horizonte. “A Rússia precisa de uma mão forte. De ferro. De um capataz com um porrete. Assim foi o grande Stálin! Viva! Viva!”, defende um de seus entrevistados. Não há detalhes sobre sua identidade. Só se sabe que é um homem “com uma peliça aberta e uma enorme cruz no peito” que apareceu enquanto ela colhia depoimentos na Praça Vermelha, em dezembro de 1991. Esse é um problema de O Fim do Homem Soviético. Na maioria das vezes, os depoimentos não têm nenhuma indicação sobre autoria, data ou local em que foram gravados.
A obra, que deve fechar o “ciclo vermelho” de Svetlana, foi precedida por outros três livros abordando crises históricas: Vozes de Tchernóbyl, sobre o acidente nuclear de 1986; A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, sobre a participação das soviéticas na Segunda Guerra Mundial; e Meninos de Zinco, a respeito de combatentes soviéticos na Guerra do Afeganistão. A escritora, que converteu a narrativa jornalística em literatura de qualidade, documentou em O Fim do Homem Soviético a derrocada de uma utopia e os reflexos desse fracasso na Rússia comandada à mão de ferro por seu desafeto Vladimir Putin. Tudo indica que Svetlana encerrou de fato um ciclo. Pelo que vem anunciando, no momento ela trabalha em dois livros. Um sobre a velhice e a morte. O outro sobre o amor.
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