Mário Palmério escreveu pouco e muito bem. Dois vigorosos livros sobre sertão e nada mais. Para quem gosta, só resta a releitura de tempos em tempos. É o que eu faria ao longo daquele voo.
Por azar, caí na janela, ao lado de um americano gordo e inquieto. Um azar do cão! No corredor, um francês encurvado e duro, com olhar fixo no encosto da poltrona da frente. Sinal inequívoco de pavor. Eu, preso lá no canto, antevi problemas.
Para minha surpresa, o americano começou a cortar pedaços do jornal. Virava as páginas, dava uma lida e arrancava pedaços. Decidi ignorar aquilo, eu não queria encrenca. Ele continuou a virar páginas. A rasgar e a virar.
Vieram, então, as instruções de rotina, como proceder em caso de despressurização e amerrissagem. Eu não considerei a possibilidade de usar máscaras de oxigênio, nem de terminar a viagem molhado. Muito menos nadar de roupa à noite no Atlântico. Não prestei atenção às instruções, mas vi que o francês despertou de seu transe. Se mexia pra cá e pra lá. Repetidas vezes acertou sua cueca e tudo mais. TOC, pela certa! Era seu ritual singelo para evitar a queda ou desintegração das três milhões e duzentas e trinta mil peças do Boeing-767. Sempre ajuda.
No que o avião decolou, o francês surtou. Berrou que não aguentava mais aquela rasgação de jornal. Disse que o americano – todos os americanos! – era primitivo. Não sabiam viver em sociedade. O americano, controlado, disse que lamentava, mas estava rasgando notícias para ler durante a viagem. Para não ter de abrir o jornal em nossa cara durante o voo. Olhou para mim buscando aprovação. Eu agradeci e olhei pela janela.
O francês continuou soltando os cachorros. Disse que americano nenhum é bem-vindo na França, nunca. Ó ingratidão!, pensei. O americano pensou o mesmo e rosnou “que se não fosse por eles, americanos, os franceses hoje estariam falando alemão”. O que é uma verdade, mas não se diz isso a um francês em pânico durante a decolagem. O francês explodiu em um ódio confuso que misturava Luiz XIV, Louisiana, americano selvagem e J.J. Rosseau. Me irritei com aqueles marmanjos a comparar seus pirulitos! Mas a coisa não parou ali.
O francês latiu mais ainda, muito mais. Aí, o americano matou a pau: “Mother fucker. Shut your big mouth or I’ll beat the shit out of you”, que, em tradução livre, seria algo como: “Por Deus, cale-se ou vai se machucar!”. Com esse tranco, o francês afinou. Calou, bufou e emburrou. O ambiente ficou muito tenso.
O americano então puxou conversa comigo, buscando aliança. Respondi evasivamente, ele logo viu que eu era estrangeiro. Perguntou de onde eu era e onde ficaria nos EUA. Eu queria ler e decidi pegar pesado. Disse que era iraniano, muçulmano xiita, nascido em Isfahan e criado em Teerã. Ficaria apenas duas horas no Kennedy International e voltaria para Islamabad, onde vivia há três anos.
Mandei bem, nunca me levaram tão a sério. De esguelha, vi que a informação havia se espalhado pelas poltronas. O AF3628 prosseguiu então em esconso silêncio. Eu no Chapadão do Bugre, com José de Arimateia e sua mula Camurça. Eles todos em voo noturno sobre o Atlântico, com um muçulmano xiita rumo ao Kennedy International.
*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).
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