A história é ficção, mas revela muito sobre a estreita relação que os holandeses mantêm com a água. Um dia, voltando para a casa, o menino Hans Brinker escutou um barulho de água. Não era um som forte, mas contínuo. Na verdade, vazava um fio de água de um pequeno orifício de um dique. Se ele não fizesse nada, aquela brecha miúda aumentaria, destruiria a parede, provocaria o colapso do dique, e a água inundaria toda a Holanda. Sozinho naquela situação, Hans colocou o dedo indicador no furo e estancou a fuga da água. Passou a noite inteira assim até que, pela manhã, um padre apareceu e o ajudou, chamando uma equipe técnica para reparar o dique e conter a água.
O episódio faz parte do livro Os Patins de Prata, da americana Mary Mapes Dodge. Foi escrito em 1865. Hans Brinker virou lenda, nome de hotel, ficou famoso e eternizado em estátua porque, no imaginário, venceu o duelo travado há tempos com a força da água. Os holandeses têm clara consciência do perigo que correm nesse território onde dois terços da
população, incluindo a maior parte dos habitantes de Amsterdã, Roterdã e Haia, vivem abaixo do nível do mar. O que isso significa? Uma geografia cuja principal característica é o terreno extremamente plano, totalmente vulnerável à elevação do oceano. Por isso, foram obrigados a criar meios de conter a água. Hoje, o que impede o país de ser inundado completamente é um complexo sistema de diques, canais, represas e lagos.
Mas, em certos momentos, essas defesas não foram suficientes. Em 1953, ventos e ondas gigantes no Mar do Norte causaram imensos estragos em países banhados por ele. A Holanda foi um deles. Em resposta à tragédia, que matou quase duas mil pessoas, o Estado criou regras rígidas: só a construção, ampliação e reforços dos diques não era mais suficiente. Seria preciso criar outras estratégias, como barragens sólidas o bastante que resistissem a fortes tempestades. Hoje, a Holanda lidera na proteção contra cheias e, de acordo com o Guiness Book, o país tem o maior projeto de defesa contra inundações do mundo.
Do resíduo ao recurso
O país que luta contra a água também já sofreu com momentos severos de seca. Os períodos de estiagem mais recentes aconteceram no verão de 2003 e na primavera de 2005, anos em que houve pouca chuva e temperaturas elevadas. Mas também aprendeu com essa contradição. Hoje, os excedentes de água da chuva são guardados em lagos artificiais, valas e ribeiras para, evidentemente, serem gerenciados na hora da necessidade. A Holanda é um dos países que servem de referência para toda a Europa porque adotou um método capaz de concluir todo o ciclo da água.
O que isso significa? Um sistema integrado de gestão de água, que inclui um esquema sólido de defesa contra as cheias, um método eficiente de captação da água para o abastecimento e a manutenção da qualidade das águas de superfície, além do tratamento de esgoto. Atualmente, a imensa maioria (99%) das casas holandesas tem acesso a saneamento e água sem cloro nas torneiras.
No total, 23 autoridades administram o setor, sob o guarda-chuva da Dutch Water Authorities, uma pasta independente do governo – isso quer dizer que tem sua própria regulação e eleições a cada quatro anos. “O dinheiro arrecadado por meio das taxas é investido no setor não apenas para assegurar as famílias, mas também para que as tarifas cobradas resultem em benefícios para a população”, afirma Gerard Doorbos, vice-presidente da DWA. O abastecimento de água potável, no entanto, é feito por dez empresas privadas. As famílias pagam uma média de € 185 por ano para o tratamento das águas residuais e € 170 por ano para a água de beber.
Para chegar a esse nível de excelência com a qualidade da água, a Holanda vem desenvolvendo técnicas inovadoras de tratamento. Os métodos são tão sofisticados que até água reciclada pode ser usada na indústria de alimentos e bebidas. Os sistemas de purificação natural (processos biológicos) têm sido utilizados para melhorar a qualidade das águas que são depositadas nos rios. Na estação de tratamento de esgotos Wetterskip Fryslân, por exemplo, que fica no norte do país, o trabalho é sofisticado. Depois de purificada, a água residual proveniente de uso doméstico já estaria pronta para ser devolvida às superfícies de rios, lagos e lagoas. Mas, desde 2005, foi implementado um tratamento adicional a essa água, ainda que não seja própria para o consumo.
Funciona da seguinte maneira: depois de tratada, a água passa por um estado de repouso de três dias em pântanos que foram construídos ao longo do tempo. Neles, zooplânctons (animais microscópicos) se alimetam de bactérias remanescentes. Em seguida, filtra-se a água em uma plantação de cana. Assim, grande
parte do fósforo e do nitrogênio que restaram na água é sugada pelas raízes da cana. Quando não removidos, fósforo e nitrogênio podem causar danos ao ecossistema aquático.
Um sistema complexo, porém possível. A propósito, o ferro e o magnésio dos resíduos também são usados na agricultura, na horticultura, na produção de cosméticos e na indústria de alimentos, além de estarem em componentes de concretos e materiais da construção. Ou seja, quase nada se perde no processo.
Outras substâncias, como o carbonato de cálcio (principal componente de rochas) e o ferro, também são recicladas. É o que faz a empresa Reststoffenunie Waterleidingbedrijven B.V., localizada no município de Nieuwegein, na província de Utrecht. Em outras palavras, ela vende os resíduos que têm origem no processo de produção e purificação da água. São produzidas de 175 a 200 mil toneladas desses resíduos por ano, o que representa oito mil caminhões de matérias-primas secundárias.
Só para ter ideia do que é esse negócio, as garrafas de vidro da Coca-Cola são feitas com certa quantidade de cálcio retirado (10%) dos resíduos da indústria holandesa.
Nem só o setor privado investe em pesquisa e desenvolvimento para a questão da água. As universidades holandesas também. O centro de pesquisas TNO é uma organização independente, que contribui para a competitividade das empresas e organizações para o desenvolvimento da sociedade. Atualmente, está ocupado com um sistema de dessalinização que usa o calor residual de indústrias, como usinas de energia, ou mesmo do Sol (operação sustentável e de baixo custo), para a destilação da água do mar. Essa tecnologia vai transformar água do mar em água de altíssima qualidade. Por esse método, podem ser produzidos entre dois e dez litros de água por hora, dependendo da temperatura empregada.
Segundo Albert Jansen, gerente de inovação do TNO, essa tecnologia pode ser usada em países que sofrem com períodos de severa estiagem – a água gerada pode servir para aplicações industriais e consumo humano. Além disso, a água produzida por meio desse processo é tão pura que precisa ser remineralizada, se usada para o consumo humano. Vale ressaltar que essa invenção ainda está em fase de testes, não podendo, portanto, ser comercializada.
Água em abundância não é sinônimo de desperdício. Nem pode. Pensando em economia, a indústria do jeans começou a pensar em uma maneira de reduzir o consumo de água na produção de suas peças. Hoje, para fazer uma única calça jeans, é preciso sete mil litros de água. Mas uma tecnologia está sendo desenvolvida para reduzir esse número.
Está prevista para abril deste ano a inauguração do Laboratório Azul (BlueLab) e a criação da Escola Internacional do Jeans, que terá como foco três pilares: economia de água e de produtos químicos, e, consequentemente, menor geração de resíduos. Inicialmente, o processo vai gerar uma economia de 600 litros de água por calça, o que já é um bom começo, para James Veenhoff, fundador do projeto. Mas a meta é de, nos próximos anos, diminuir o consumo de água para dois mil litros em cada peça confeccionada – uma economia de cinco mil litros. Hoje, uma calça jeans custa entre € 75 e € 100, mas, se o projeto de redução de água der certo, o custo final de cada calça também deve ficar menor para o consumidor. Vale saber que a indústria de jeans move € 5 milhões por ano na Holanda.
“Essa é uma maneira de fabricar roupa de forma mais limpa. As receitas serão exportadas para países de produção, como China e Bangladesh, impactando menos o meio ambiente. Além disso, vamos estimular a inovação e a colaboração em outras áreas-chave da indústria da água, como captação de algodão e tingimento. Por último, nossos alunos vão aprender sobre essas técnicas e adotá-las quando começarem a trabalhar para marcas do mundo”, acredita Veenhoff.
* Martina Jung viajou a convite do governo holandês.
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