Ainda uma câmera na mão…

Em janeiro de 1978, Glauber Rocha filmava em Brasília aquele que é considerado pela crítica o mais expressivo, polêmico e instintivo filme de sua carreira: A Idade da Terra. Contudo, no dia 19 daquele mês, o líder do revolucionário movimento Cinema Novo desligou as câmeras para apreciar outro momento não tão menos cinematográfico: o nascimento de Eryk Aruac Gaitán Rocha, o seu quarto filho e o primeiro com a artista plástica e também cineasta colombiana Paula Gaitán – com ela, ele teria no ano seguinte Ava Gaitán Rocha.

Na companhia dos pais, Eryk e sua irmã embarcaram para a Europa, viveram na Itália, França e, principalmente, em Portugal, até agosto de 1981, quando Glauber, já doente, voltou ao Brasil, falecendo no dia 22 de choque bacteriano, provocado por uma broncopneumonia. No Rio de Janeiro a partir de então, Eryk viveu uma infância nada ligada ao cinema. “Talvez por ter perdido meu pai muito novo (aos 3 anos), houve esse distanciamento. O que eu queria mesmo era ser jogador de futebol, ir a uma Copa do Mundo e jogar no Maracanã, defendendo meu time Flamengo”, confessa ele.
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A paixão pela sétima arte e por nomes como, entre outros, o russo Eisenstein e o italiano Antonioni só veio durante a adolescência, quando morou dos 15 aos 19 anos com a mãe na Colômbia. Desde então, não conseguiu mais se desligar de uma câmera. Estudou cinema em Cuba, morou na Venezuela com uma ex-namorada, mergulhou a fundo em conhecer a América Latina e o seu papel dentro dela, e dirigiu três documentários longas-metragens (Rocha que Voa, Intervalo Clandestino e Pachamama), além de ter levado para Cannes o curta Quimera. Em agosto, ele estreia seu primeiro longa de ficção, o Transeunte, para mostrar as alegrias e as frustrações que permeiam a vida de um senhor que passa despercebido pelas ruas do Rio de Janeiro. É sobre o filme que Eryk Rocha fala aqui, assim como sobre sua relação com o cinema latino, a busca por identidade e lembranças e opiniões sobre o pai Glauber Rocha, no mês em que se completam 30 anos da morte dele.

Brasileiros – Além do Brasil, você viveu ou teve uma relação muito forte com outros países da América Latina e passou alguns anos da infância na Europa. Por todo esse histórico, você se considera um cineasta sem uma nacionalidade definida?
Eryk Rocha – De certa forma, meu país e continente são o cinema. Minha vida e minha trajetória têm uma influência latino-americana muito forte. Morei por três anos na Colômbia, dois em Cuba, um ano na Venezuela, circulei e filmei bastante em outros países latinos. Então, essa relação é muito forte na minha vida, na minha relação com o mundo. Diria que, mais que brasileiro, sou um cineasta latino-americano.

Brasileiros – Mas da sua primeira infância, quais as imagens mais fortes que impregnam você?
E.R. – Tenho algumas da época de Portugal, eu na creche e os meus pais vindo me buscar, brincando com minha irmã, a imagem do meu pai voltando doente para o Brasil, essas cenas me marcaram muito. Mas também em mim estão as de moleque jogando muita bola, indo ao Maracanã, a liberdade de andar sozinho pelas ruas do Rio de Janeiro, esse contato com todo o tipo de gente, com as comunidades e favelas.

Brasileiros – Como esses lugares se conflitam ou se complementam em sua arte?
E.R. – Eles fazem parte de mim, são a minha ancestralidade. A experiência, por exemplo, de ter começado a fazer os primeiros vídeos na Colômbia com meus 16 ou 17 anos. Depois, fui estudar cinema em Cuba, em San Antonio de los Baños (da Escuela Internacional de Cine y Televisión), uma escola latino-americana e internacional. Então, é inseparável a vida de uma pessoa do que ela cria. Os meus filmes fazem parte do meu corpo, são uma forma de materializar e guardar essa memória que transborda e não consegue ser apreendida pelo cérebro.

Brasileiros – Em que momento exato você decidiu: vou ser cineasta?
E.R. – Na época da crise causada pelo governo Collor, o holocausto que houve no campo da cultura, especialmente com a extinção da Embrafilme, minha mãe, que é artista plástica e cineasta, resolveu se mudar para a Colômbia como forma de conseguir campo para trabalhar e sobreviver. Então, foi em Bogotá que participei pela primeira vez de grupos de discussão sobre cinema, que filmei meus primeiros curtas-metragens. Foi lá que o cinema me despertou ou eu me despertei para ele. Na época, eu já com meus 15 anos, chegava assistir a quatro filmes por dia na Cinemateca ou no Museu de Arte Moderna, passando por todos os gêneros. E tive forte influência da minha mãe, que foi trabalhar na TV Cultura de lá e fazia muitos filmes de vanguarda para a televisão. Vendo-a trabalhar, comecei a ajudar como assistente de direção e, quando estava com 18 anos, ela estava produzindo uma série para a televisão em seis capítulos e deixou o último para eu dirigir. Essa série tinha vários temas e o que sobrou para eu abordar era erotismo. Então, foi um grande desafio e fundamental para mim.

Brasileiros – Mas e a decisão de estudar em Cuba?
E.R. – Sempre gostei muito de história, queria entender a Revolução Cubana. Como que uma ilha desse tamanho, ao lado dos Estados Unidos, consegue fazer uma revolução socialista? E se juntou a isso a questão da escola ser uma referência no mundo, o estudante morar na escola, respirar cinema. Achava fascinante, fiz a prova, passei e fui para lá.

Brasileiros – Mas você tinha consciência de que seu pai morou em Havana e aspirava por criar um cinema que unificasse os países latinos?
E.R. – Do meu pai, não tinha uma referência clara disso até aquele momento. Só veio depois com o meu primeiro longa, o documentário Rocha que Voa, filmado em Havana e montado depois no Rio de Janeiro (lançado em 2002). Na verdade, acho que tomei consciência disso tudo de alguma forma com o filme pronto. O processo desse longa é a minha construção desses fatos. Esse filme é uma triple declaração de amor: ao meu pai, à América Latina e ao cinema. E, ao mesmo tempo, a busca de quem sou eu.

Brasileiros – O que mudou em seu olhar perante o mundo após morar e fazer cinema em Cuba?
E.R. – Acho que adquiri uma forma mais íntegra, generosa, humana e solidária de me relacionar com o mundo. Trabalhar, me relacionar e morar em uma sociedade que possui outras escalas de valores foi muito importante. E eles têm também algumas coisas muito contraditórias, uma luta pela sobrevivência. O país vai muito além da revolução política comunista ou Fidel Castro, muito além dos dissidentes que moram em Miami.

Brasileiros – Seis anos depois de Cuba e já morando no Brasil, você realizou em 2006 o seu segundo documentário longa-metragem Intervalo Clandestino, com o foco claro em abordar a relação da política com a população. Como foi isso?
E.R. – Veio da ideia de fazer um filme que não ficasse reduzido à política institucional, que abrisse essa perspectiva do que é a política para as pessoas, para a cidade. Quis fazer um cinema de rua, que pudesse ir com o povo mostrar o imaginário político, que mostrasse o delírio, a indignação, a alienação, a lucidez e a falta de memória. Ando com a câmera colada nas pessoas, esse ângulo fechado, a coisa de ter mais pele. Não me interessava fazer um filme sobre algo, mas sim, um filme com algo.

Brasileiros – A sua relação com a política, aliás, sempre foi bem explícita?
E.R. – Gosto de política desde os meus 9 anos. Com essa idade, já assistia aos debates na TV. Em 1989, quando eu estava com 11, teve a eleição presidencial e foi muito marcante em minha vida. Sou brizolista. Para mim, Leonel Brizola foi um dos poucos políticos que admirei muito. E eu ia sozinho com essa idade aos comícios do Brizola na Cinelândia. E depois, no segundo turno, quando ele passou a apoiar o Lula, eu ia para os comícios do Lula também.

Brasileiros – Essa relação está toda traduzida, então, em Intervalo Clandestino?
E.R. – Sim, é um filme que perturbou muita gente na época, passou muito na periferia e o povão se identificava. E foi nesse momento, com esse filme, que eu comecei a perceber a importância de repensar o espaço social do cinema, de quanto é elitista o acesso ao cinema, o quanto é absurdo o preço de um ingresso. Tudo começou a me agredir, então criei com amigos um circuito paralelo no Rio de Janeiro. Fiz mais de 50 sessões fora da sala de cinema, projetei em parede o DVD, em lençol, em teatro abandonado no Rio, em cineclube, foi muito forte essa experiência.

Brasileiros – E qual seria o caminho que o governo deveria adotar para facilitar esse acesso?
E.R. – Desenhar um novo circuito de cinema digital e popular no Brasil para disputar com a pirataria. Tem uma experiência muito interessante disso aqui no Rio de Janeiro, que é em Guadalupe, no subúrbio. Tem uma sala com 80 lugares chamada Ponto Cine. Fica no pé da Baixada Fluminense, onde não tem nada, e são exibidos apenas filmes brasileiros a R$ 4. Em frente ao espaço, o camelô vende o pirata a R$ 5. E falando de filme brasileiro na proporção de público e ingresso vendido, essa sala ocupa o primeiro lugar no ranking da Ancine (Agência Nacional do Cinema).

Brasileiros – Em 2008, você fez o documentário Pachamama para dar voz aos povos excluídos da região da Amazônia peruana. Agora lança o seu primeiro longa-metragem de ficção, o Transeunte. Na película, mais uma vez, você dá voz aos excluídos…
E.R. – É essa minha relação com o mundo. O anonimato permeia todos os meus filmes. E o Transeunte, como o próprio nome diz, é o anônimo. É olhar a multidão e focar uma pessoa. Quem é ela? E, embora seja um personagem fictício, é claro que foi inspirado em várias pessoas reais. A primeira ideia para o argumento eu tive em 2004, quando estava no Festival de Cannes competindo com o curta Quimera. Vi aquele desfile de celebridades e pensei: quero fazer um filme sobre um anônimo, um homem solitário que passa pelo mundo sem família nem filhos e morre. Que rastros ele deixa? Esse é o Transeunte.

Brasileiros – Mas podemos considerar o protagonista Expedito o arquétipo do povo brasileiro na terceira idade?
E.R. – É uma leitura possível, mas sem reduzir a isso, porque ele é um personagem muito curioso também. Transeunte fala da reinvenção e o Expedito é isso: um homem de quase 70 anos, solitário, que se aposenta, classe média baixa, mora no centro do Rio, teve vários desencontros amorosos, tá sozinho, não teve filhos. E agora? Para onde ele vai? O ponto de partida dele é o fundo do poço.

Brasileiros – Você lança o Transeunte no mesmo mês que faz 30 anos da morte do Glauber Rocha. Em algum momento você percebe pontos de ligação de suas produções com os filmes do seu pai?
E.R. – Eu acho que o Rocha que Voa tem esse diálogo. Nos outros filmes, é difícil de eu mesmo dizer. Mas tem essa coragem dele que é uma inspiração constante, o ímpeto, a lucidez. Você lembra que tem um pai desse e se fortalece. Mas a dimensão do meu pai me ultrapassa, porque a sua obra atravessa gerações, se redimensiona, abriu caminhos para a cultura brasileira, fez essa revolução cultural.

Brasileiros – Qual filme feito por seu pai mais te marcou?
E.R. – Gosto de todos, mas especialmente de Câncer, Idade da Terra e O Leão de Sete Cabeças.

Brasileiros – Quando o Glauber morreu você tinha 3 anos de idade. Como é sua memória com relação a ele?
E.R. – A minha memória se confunde com a minha fabulação, com as coisas que as pessoas me contam, com a imagem de homem público, com os filmes. Não dá para decifrar e saber o limite do que é memória e o que é invenção. A memória é imprecisa, difusa, vaga.

Brasileiros – O Glauber sempre esteve associado ao espírito revolucionário, contestador e muitas vezes polêmico. Existe alguma inverdade que falam sobre ele que te incomoda?
E.R. – Não existem inverdades, mas opiniões e formas de sensibilidade diferentes. Cada um tem a sua verdade. Uma pessoa pública, ainda mais na dimensão dele, está sujeita a isso. O cinema é a mesma coisa: algumas pessoas vão gostar e outras, não. Faz parte do cenário democrático o gostar, o não gostar e o criticar.

Brasileiros – Como filho, quem é Glauber Rocha para você?
E.R. – Um filósofo, poeta, cineasta, profeta, trabalhador, homem brasileiro latino-americano, uma grande inspiração de vida, libertário, revolucionário. É um vulcão.

Brasileiros – O que é o cinema para o Eryk Rocha?
E.R. – É engraçado, porque não sou um grande cinéfilo. Vou pouco ao cinema, não vejo muito a produção contemporânea e me sinto desatualizado às vezes. Então, cinema para mim é pegar uma câmera e filmar, é uma coisa assim sensorial, epidérmica, de sentir o mundo, de necessidade de produzir. Fazer um filme é você dizer alguma coisa que não pode deixar de ser dita.


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