Alcoólatra eu?…imagine

Quiçá por aqui comece a maior dificuldade.

Pacientes que sofrem de anorexia, pacientes alcoolistas ou compulsivos não sentem o sintoma como algo próprio. Por essa razão encontram dificuldade em pedir ajuda. No começo, o sintoma não se apresenta como um incômodo, portanto não precisam se livrar dele. Frequentes falas nos dizem “eu paro na hora que quiser”, “não me faz mal”, “tenho muita resistência”, “jamais me afundarei nessa”. A negação é a marca que determina a patologia no começo. O que outros veem, o alcoolista ignora. A mulher, os amigos, os filhos notam a mudança de conduta, sentem seus efeitos, mas a preocupação está fora, são os outros os que sofrem no começo. Ele explica sua conduta por uma circunstância; o acaso é o álibi da desculpa. “Foi só hoje, que veio toda a família”, “em encontro de amigos um trago é sagrado” e por aí vai, se adentrando em pequenos infernos que precisa mostrar como domináveis e menores.

Na minha experiência clínica o trabalho mais árduo é conseguir que o paciente se assuma em seu sofrimento, reconheça que precisa ser cuidado, demande tratamento, chegue a uma instituição ou se necessário permita ser internado. O momento chave é aquele em que o sofrimento deixa de ser externo e se faz próprio. A maioria das vezes é o amor e não a repressão que os inicia no caminho da cura. O perigo é que assuma seu diagnóstico como um “nome próprio” que o singulariza, “sou alcoólatra”. Essa conduta lhe oferece uma identidade e lhe permite construir um enclausuramento que o protege dos fracassos aos que o álcool o submete.

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Outra marca que dificulta a abordagem é a presença de uma onipotência que vai jogando o compulsivo num caminho sem volta. Pensar que para quando quer é a falácia, ilusão que lhe impede um basta.

O desejo não tem limite, a frustração se posterga, se deleta a proibição e o que poderia ser prazer se transforma em gozo, que é um prazer sem interdição, onde nada é suficiente e que empurra o sujeito num caminho lento em direção à destruição e à morte. O alcoolismo em si não é uma doença, às vezes o encontramos como sintoma que acompanha depressões, fobias e dificuldades frente à inserção social, às vezes se assimila a outras compulsões e pode vir acompanhado de consumo de drogas mais pesadas. Entendo que um grande erro é colocar a ênfase do problema no “objeto substância”, seja ela droga ou álcool. Quando fazemos isso desconsideramos um aspecto importante que é o do ato de beber. Ao enfatizar a substância, neste caso o álcool, retiramos a responsabilidade do sujeito e o transformamos num ser passivo, que responde à “tentação do consumo”.

Na comunicação das políticas públicas a preocupação está mais centrada em dificultar a venda, do que alertar ao sujeito que com seu sintoma perde autonomia e se transforma em escravo de sua impossibilidade de parar de beber. Sabemos que outorgando este poder de flagelo à droga, obrigamos o sujeito a encontrar caminhos para evitar a proibição. Não digo que a proibição não ajude, mas nunca será a forma de evitar o transtorno do alcoolismo. Mais importante que afastar o sujeito da substância, é iniciar um trabalho onde um elemento interno opere com eficiência, ajudando a instituir a proibição e reconciliando o sujeito com suas instâncias morais e ideais internalizadas. Se no começo da vida são os pais os que cuidam e proíbem, à medida que o tempo passa essas figuras deveriam tornar-se figuras internas. Não se precisa mais de alguém do nosso lado que nos diga o que fazer, cada um começa a ser seu próprio guia e seu vigia. No paciente alcoolista falha essa função e são os amigos, o entorno à família, as instituições que precisam operar para ajudar a restaurar esse funcionamento. O tratamento psicanalítico oferece um espaço de fala, no qual a palavra circula e dá um novo sentido aos atos, oferecendo-lhe um caminho. Desse modo tira o alcoolismo do campo exclusivo da medicalização. Temos de pensar que também estamos frente a um problema social. A pobreza, a falta de satisfação duradoura, a competitividade, a exigência desmedida são fatores que propiciam a busca de um prazer imediato. O álcool aparece como uma solução possível. Não há um discurso hegemônico para uma sintomatologia tão complexa. Na intersecção de várias disciplinas se encontrará o ponto de retorno.

*Ana Sigal é psicanalista


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