Um dos anúncios que a travesti Tábata Rios, de 19 anos, usava para atrair potenciais clientes ainda pode ser visto na internet: “Sou superfeminina, educada, discreta e carinhosa. Adoro beijar na boca e realizar todas suas fantasias e desejos. Atendimento completo para executivos e casais. Com um grande talento ativo e passivo. Privê discretíssimo. Copacabana”. O telefone não é mais o mesmo. Nem a vida. Neste ano, Tábata foi estagiária do Projeto Damas, criado pela prefeitura do Rio de Janeiro para oferecer possibilidades de profissionalização para as travestis fora da prostituição. Ela trabalhava na MultiRio, uma produtora de TV ligada à administração municipal, no departamento de marketing. Na mesma turma de Tábata, 19 travestis participaram do projeto, que já havia formado outras 80 em quatro turmas anteriores.
A experiência não chegou a garantir um emprego para Tábata, mas fez com que ela voltasse a estudar e mudasse seus planos. “Faço um curso de formação para teatro musical e penso também em estudar artes plásticas. Vou atrás de novos conhecimentos para não retornar à prostituição”, conta. A travesti chegou a participar dos testes para atuar no filme Elvis e Madonna, de Marcelo Laffitte, que trata da vida de uma lésbica e uma travesti. Ela conta que começou a se prostituir aos 16 anos, pouco depois de se assumir como travesti. “Meus pais não me aceitavam e tive de sair de casa. Logo as meninas (outras travestis que já se prostituíam) que conheci me indicaram uma cafetina e passei a morar na casa dela, em Copacabana”, recorda-se. Apesar de continuar durante esse período matriculada na escola, a travesti não a freqüentava e era reprovada por faltas. Em três anos “batalhando nas calçadas”, como elas se referem à prostituição, passou por pontos no centro e nas zonas sul e oeste do Rio e de São Paulo.
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Mesmo com os insistentes pedidos da mãe e da irmã para que voltasse para casa, Tábata conta que temia pela reação da família e da vizinhança a sua nova aparência. Hoje, mais do que ter uma expectativa de emprego, ela voltou a estudar e pensa em concluir o ensino médio para cursar uma faculdade. “Nunca gostei da prostituição. Quando uma amiga me contou do projeto de que ela tinha participado, resolvi fazer o mesmo”, afirma. Segundo o coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro, Rodrigo Salgueiro, o objetivo do projeto, mais do que retirá-las da prostituição, é ajudar as travestis a encontrar espaços no mercado de trabalho. Ele diz que, das 80 travestis que concluíram o curso, 24 conseguiram emprego no mercado formal e uma obteve um micro crédito para abrir a própria empresa, um salão de cabeleireiro.
O projeto não é a única forma de travestis e transexuais escaparem da prostituição, mas se tornou um instrumento importante. Sua elaboração contou com o apoio de entidades de travestis e transexuais. Agora, esses grupos trabalham para que a experiência sirva de inspiração para outras prefeituras e governos estaduais. Barreiras no mercado de trabalho Alessandra Saraiva, da Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros – termo que muitos movimentos atualmente aboliram) de São Paulo, usa uma estatística para mostrar a dimensão do problema. Um levantamento feito em Sergipe mostrou que 83% das entrevistadas declararam viver da prostituição. Nada indica que o porcentual seja o mesmo em outros estados, mas as próprias entidades usam o número como referência da dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e na sociedade.
A própria Alessandra é exemplo dessa realidade. Aos 28 anos, ela nunca viveu da prostituição e mesmo assim conheceu o preconceito dos dois lados: “A primeira coisa que meus pais quiseram saber foi como eu iria me sustentar, porque viam travestis e transexuais como se fossem um grupo só e todos vivessem da prostituição. Por outro lado, dentro do próprio movimento de travestis e transexuais sou muito contestada por não ter vivido a experiência da prostituição”. Formada em administração de empresas, ela se considera transexual e se prepara para fazer a cirurgia de “readequação genital”, em que a pele do pênis e do saco escrotal é usada para formar uma vagina. O desejo de realizar essa mudança é o que diferencia as transexuais das travestis. As segundas podem até ter essa vontade, mas não a vêem como uma necessidade.
Alessandra já trabalhava como webdesigner em Manaus, onde nasceu, quando veio para São Paulo fazer cursos de aperfeiçoamento. Hoje, trabalha com marketing, ao lado do namorado, e também dá palestras sobre travestis, transexuais e política de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Quando chegou a São Paulo, teve dificuldade até mesmo para encontrar moradia, porque foi rejeitada em mais de 40 lugares em que procurou apartamento para alugar. “Precisei que meu pai ligasse do Amazonas para fazer a locação”, lembra.
Transição no local de trabalho
Ela ainda não havia assumido a aparência feminina quando cursou a faculdade. Mas muitas enfrentam a transição em sua aparência no local de trabalho. É o caso da oficial de promotoria Mariana Mariano, de 42 anos, funcionária concursada desde 1986 do Ministério Público do Estado de São Paulo. “Comecei a fazer shows em 1987, com o apoio da drag queen Silvetty Montilla, que é da Casa Verde (bairro da zona norte da capital paulista). Depois que venci o concurso Bonequinha do Café, em 1994, comecei a assumir uma aparência mais feminina”, conta a travesti. A partir de então, foi aos poucos se tornando mais andrógina e passou a tomar hormônios femininos. “Acho que teria assumido uma aparência feminina antes se não trabalhasse em um ambiente como o do Ministério Público. Tive de agir com muito jogo de cintura e ir conquistando meu espaço gradativamente”, relata.
Atualmente, Mariana está licenciada do trabalho e viajou para Londres, onde, segundo ela, pretende aproveitar a oportunidade para se aperfeiçoar. Para Mariana, um dos momentos mais críticos foi quando decidiu começar a usar o banheiro feminino. Esse foi também um momento complicado para Maria Clara, funcionária pública em cargo de comissão em uma cidade de cerca de 100 mil habitantes no interior paulista. Ela se submeteu à operação transexual há quase um ano na Tailândia e também está no mesmo emprego que tinha antes de começar a transição. Ainda assim, pediu para que seu sobrenome e a cidade não fossem divulgados.
Faz cerca de dois meses que Maria Clara conseguiu mudar o nome e o sexo nos documentos. Segundo ela, a decisão veio aos 29 anos. “Resisti muito; onde eu moro não tinha as informações necessárias, nem mesmo entre os médicos e psicólogos. A internet foi fundamental para o meu diagnóstico, porque antes só pensavam em me curar, para que eu fosse um ‘homem normal’. Entrei em uma depressão e vi que a única solução era ser quem eu queria”, explica. Hoje está com 32 anos. Maria Clara diz ter enfrentado a resistência das colegas quando passou a usar o banheiro feminino. “Sabia que a minha situação era delicada por não ser concursada – podia ser demitida sem justificativa. Mas, quando meu chefe me chamou para tratar do assunto, vi que, se recuasse, nunca mais seria respeitada.” Para fazer valer seu direito, ela se apoiou na Lei Estadual nº 10.948, sancionada em 2001. De autoria do ex-deputado petista Renato Simões, a lei pune a discriminação em razão da orientação sexual.
Vida pública
Diferentemente de Maria Clara, Moa ou Moacyr Sélia Filho, de 50 anos, acredita que, por morar no interior, teve mais facilidade de se assumir como travesti. “Aqui as pessoas me conhecem e por isso me respeitam. Se fosse só mais um, seria um alvo mais fácil do preconceito”, raciocina. Verdade ou não, Moa se elegeu para a Câmara dos Vereadores de Nova Venécia (cidade com cerca de 45 mil habitantes no interior capixaba) em 2004 pelo hoje Democratas e desde o ano passado preside a Casa. “A cidade é conservadora, só teve duas mulheres vereadoras em sua história, mas consegui conquistar o respeito dos eleitores e dos colegas vereadores”, diz.
Moa tem um salão de cabeleireiro na cidade. Ela não foi a primeira travesti a se eleger para cargo público no Brasil. Isso coube a Kátia Tapety (PSB), que atualmente é vice-prefeita de Colônia, uma cidade do Piauí com pouco mais de 7,5 mil habitantes. De uma família tradicional na política da região, que inclui prefeitos de Oeiras (município do qual Colônia era um povoado), deputados estaduais e federais e secretários estaduais, Kátia foi vereadora por três mandatos e também presidiu a Câmara. Ela vive com o mesmo homem há 20 anos. Com o casal moram um filho dele e uma filha de criação.
Na cidade, Kátia é também agente de saúde, além de criar gado. “Nunca sofri preconceito por ser travesti, mas meu pai não me mandou para a escola por perceber que eu era homossexual. Tinha aulas particulares em casa. Agora, para regularizar meus estudos, estou cursando o ensino médio por correspondência”, conta. Apesar de existirem garantias legais contra a discriminação, a transexual Carla (nome fictício), de 19 anos, decidiu que vai cursar a faculdade já como mulher. Quando foi entrevistada para esta reportagem, ela estava a uma semana da cirurgia a que se submeteria em Jundiaí, no interior paulista. “Depois da operação, imagino que a alteração nos documentos deva demorar no máximo dois anos, mas depende muito do juiz que vai analisar o pedido”, afirma.
Identidade e constrangimento
A jovem começou a transição aos 16 anos e diz que ainda passa por constrangimentos sempre que precisa apresentar os documentos de identidade. Ainda assim, conseguiu concluir o ensino médio e arrumar um emprego em uma grande empresa de telemarketing. “Lá dentro sempre fui tratada como mais uma mulher, mas recentemente mudou o gerente e acabei passando por alguns apuros. Ele é evangélico e queria que eu parasse de usar meu nome feminino”, conta. O emprego foi determinante para ela, pois foi assim que conseguiu acumular boa parte dos R$ 22 mil da cirurgia. O restante, cerca de 25% do total, ela conseguiu com um empréstimo bancário. “Não vou negar que, ao ver as travestis que se prostituem com seus carrões, a gente pensa que é uma maneira fácil de juntar dinheiro, mas eu jamais teria coragem para isso”, garante.
Se a transexualidade não a prejudicou no trabalho, o mesmo não se pode dizer da vida sentimental. “Tive apenas um namorado, no começo da transição. Mas terminei com ele porque me sentia inferior às outras mulheres e achava sempre que ele podia me trocar a qualquer momento”, diz. Cursar uma faculdade com nome masculino e aparência feminina foi um dos momentos mais difíceis da vida de Bruna Bianchi, 35 anos, desde que se assumiu como travesti. Ela estudou administração de empresas em uma faculdade de Mogi das Cruzes, no começo dos anos 1990. “Naquela época, a gente não tinha ainda a visão de direitos humanos que existe hoje. Os jornais da cidade me expunham de uma maneira que considero sensacionalista e a reitoria queria me obrigar a ter um comportamento condizente com o meu nome na carteira de identidade”, afirma.
Apesar das dificuldades, Bruna conseguiu concluir o curso. Ela também passou a administrar a auto-escola que já pertencia a sua família e estava arrendada, em Mauá, cidade com pouco mais de 400 mil habitantes, no ABC paulista. “Dediquei a minha vida a essa auto-escola. No começo, tinha de colocar uma placa escrito ‘volto já’ para ir ao banco ou almoçar, agora tenho 20 funcionários”, destaca. Ela diz que conseguiu conquistar o respeito das pessoas pelo seu trabalho. “Nunca pensei se eu era a Bruna ou o David quando vinha para cá. Em muitos casos, vi as pessoas saírem daqui quando percebiam que eu era uma travesti. Com o tempo passaram a me ver como uma profissional”, afirma. Em um momento em que precisou de alguém de confiança para ajudá-la, Bruna fez mais. Levou a amiga de infância Sione de Oliveira Cruz, de 37 anos, para trabalhar com ela. Também travesti, Sione na época se prostituía em Santo André, outra cidade do ABC. “No começo vim só porque ela precisava, mas continuava na prostituição. Ganhava lá três vezes mais que aqui, mas não sinto falta. Faz três anos que só trabalho na auto-escola. Estou menos exposta e vivo com maior segurança”, conta ela.
Pé-de-meia
A prostituição foi uma realidade que algumas travestis conseguiram vencer, mas Cláudia Cuba, de 40 anos, soube usá-la como um impulso para sua vida como pequena empresária. “Eu trabalhava como auxiliar administrativa em uma fábrica e resolvi me prostituir em Milão para guardar um dinheiro. Esperava ficar um ano lá e acabei passando cinco para conseguir o valor que eu precisava. Na época a concorrência nas ruas européias era menor, mas não são muitas as que têm planejamento e vontade de deixar essa vida”, avalia. Com o dinheiro que enviava ao Brasil, Cláudia conseguiu comprar uma casa no Riacho Grande, bairro de São Bernardo do Campo às margens da Represa Billings, e abrir uma empresa. “Passei por diversos ramos e atualmente sou sócia de uma empresa que desenvolve softwares para o setor médico”, afirma.
Vida no palco
Travesti desde os 21 anos, a atriz cubana Phedra D. Córdoba, de 69 anos, diz que nunca foi prostituta, mas teve de ser uma “cortesã” na fase mais difícil de sua carreira. “Nos anos 1970, muitos atores politizados foram perseguidos pela ditadura, diminuindo o número de espetáculos em cartaz e deixando muitos de nós, mesmo os que não tinham uma militância, sem emprego”, lembra. Por isso, a conselho de um ex-namorado, Phedra viajou pelo interior fazendo apresentações em que cantava e dançava. “Eu fazia meu show em boates e algumas vezes tinha de beber com os homens e sair com eles. Existe uma diferença de espírito e de consciência entre a prostituta e a cortesã”, teoriza.
Phedra saiu de Cuba em 1955 e viajou fazendo apresentações pelos Estados Unidos e pela América Latina antes de se fixar no Brasil. Participou do teatro de revista durante os anos 1960 e, depois dessa fase de viagens pelo País, voltou aos palcos paulistanos e cariocas com apresentações como o show Le Girls, só de travestis, aproveitando a expansão das casas temáticas para o público GLBT. Mas foi no final da década passada que a atriz retornou ao teatro, pelas mãos de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, diretores da companhia Os Satyros, um dos grupos mais premiados do novo teatro paulistano. “Ela é nossa diva”, resume Cabral. O grupo até encenou textos que tratavam da vida da atriz.
Nessa volta à dramaturgia, Phedra trabalhou também com o diretor José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, e gravou teleteatro do projeto de Antunes Filho na TV Cultura. Outra atriz e cantora que também está no teleteatro é Cláudia Wonder, que retomou sua carreira no final dos anos 1990. Com as performances de sua banda de rock, Jardim das Delícias, ela foi um dos personagens marcantes do underground paulistano dos anos 1980. “Foi na mesma época em que a Roberta Close, no Rio, e a Thelma Lip, em São Paulo, faziam sucesso pela beleza. Eu me apresentava em casas como Madame Satã, Rose Bom Bom e Ácido Plástico”, lembra. Após o Plano Collor, Cláudia foi para a Suíça, onde fazia shows e depois abriu uma clínica estética com seu marido na época. “Chegou uma hora em que eu decidi que tinha de voltar ao Brasil e retomar minha carreira”, diz ela, que lançou recentemente um CD de música eletrônica com sua nova banda, os Laptop Boys.
Além de voltar a cantar e interpretar, Cláudia se tornou colunista da revista G Magazine e criou uma entidade para dar apoio a travestis, transexuais e pessoas que tenham algum grau de intersexualidade, a Flor do Asfalto. “Quando me descobri como travesti, a primeira coisa que fiz foi deixar a escola e fazer um curso de cabeleireiro – era uma forma de encontrar pessoas como eu. Mas não tinha a menor vocação para isso. Passei a trabalhar com maquiagem até descobrir o talento para a música e o teatro”, diz ela, lembrando uma segunda imagem falsa das travestis: a de que, para conseguir evitar a prostituição, só lhes resta ser cabeleireiras.
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