Alquimia baiana, a feijoada do Valente

Feijoada baiana, pelo menos para mim, não é só arte culinária. Pegando expressão de Vinicius, é arte de encontro também. É um acontecimento. Sei lá, talvez por culpa da herança luso-africana, o sentido de se alimentar é muito mais amplo do que figura no Houaiss: “Prover-se de substância necessária ao metabolismo“. O que é isso? Não! Não na Bahia.

Na terra de Caymmi, de Jorge Amado, de Caetano e de Gil, do Trio Elétrico e de Carlinhos Brown, na terra do acarajé, do abará, do vatapá e da festa de largo, alimentar tem significado mais amplo. Para mim, é alimentar o corpo, a mente e a alma. Mesmo porque, lá na Bahia damos o alimento em oferenda. É com comida que homenageamos os nossos santos e orixás. Manjar para Iemanjá. Feijão para Ogum. Para o santo e para o santificado, tem banho de pipocas na Festa de São Lázaro, de água de cheiro ou água benta na colina sagrada do Senhor do Bonfim. Água é alimento de corpo, mente e alma. Esse sincretismo religioso e cultural – e até emocional – nos ensina desde pequenos que preparar o alimento é um verdadeiro ato de amor. Ao juntar os ingredientes e, diante do poder do fogo, transformá-los, temperamos o prato feito com os nossos desejos, com nossos sonhos, com as nossas aspirações.

Talvez por isso, até a feijoada baiana seja um pouco diferente. Uma feijoada com sotaque leve, gosto diferente e um aroma que é só dela. Para mim, preparar uma feijoada é poder usar a alquimia baiana para declarar todo o meu bem querer.

E a receita é simples. Em uma grande mesa, coloque todos os ingredientes que você vai precisar: o feijão, as carnes, os temperos. Tudo fresco, comprado na hora. Invista tempo nessa preparação, às vezes é até mais gostoso do que cozinhar. É ritual.

Primeiro o feijão. O feijão – que na minha feijoada baiana é o mulatinho e não o preto – tem de ficar de molho para ir se preparando para ser o ator principal. É como no Carnaval: o artista não sobe no trio de qualquer jeito, de uma hora para outra. Antes, ele se prepara. O feijão é o ator principal da feijoada, toma seus banhos, se livra das impurezas. Na prática, ele fica de molho para ganhar corpo, ficar suculento e, assim, se encher de graça para poder reinar na feijoada. Por isso, deixe o feijão de molho um dia, para ter tempo de preparar as carnes, que não são muitas, porque a diversidade vem nos sabores e não na quantidade.

Primeiro vem a carne fresca. Sim, carne fresca. Uma bela peça de coxão duro que será cortada em pedaços grandes. Nada de economia. Mas essa carne precisa de preparo. De limpeza. Pegue uma faca afiada e vá tirando toda a gordura. E, na medida em que você vai limpando a carne, vá limpando seus pensamentos. Se livre das mágoas, das preocupações, dos ressentimentos. Corte tudo isso fora e jogue no lixo. Para nossa alquimia baiana, restará então uma carne limpa, bonita. Depois vem a carne seca. Para mim, a dureza da carne desidratada, salgada, representa os momentos difíceis, obstáculos que temem em nos desafiar. Desafio que fica gostoso depois de vencido. É como a carne seca que, depois de cozida, se desmancha na boca de-li-ci-o-sa-men-te. Para encerrar a parte das carnes, entra em cena o lombinho defumado. Um ingrediente que só existe se curtido. Curtido, assim como a vida deve ser curtida. Um ingrediente em que o tempo é fator essencial. Nada melhor que o tempo.

Só que não é só de carne que a Feijoada do Valente sobrevive. Se, ao limpar a carne, tiramos toda a gordura ruim, agora é hora de colocar um pouco de uma boa gordura. E aí entra a graça do bacon e do paio.

Quase terminando, temos a linguiça portuguesa que representa em si toda essa herança que ganhamos de um Portugal que fez surgir um Brasil pela porta de Salvador. E ainda está um pouco lá, até hoje.

Agora, meu amigo, se minha feijoada tem um segredo… Ahhh, esse segredo são os temperos. Quem olha uma feijoada pronta vê aquele prato marrom, cor de pele bronzeada. Mas a feijoada baiana é tão colorida quanto sua capital e seu povo. Só que tudo misturado no liquidificador cultural da Bahia.

No tempero da feijoada, eu vejo mil cores: o verde escuro das folhas do louro, o branco dos pedaços grandes de cebola, o vermelho do tomate, o verde, o amarelo e mais um pouco de vermelho do pimentão. E não se pode esquecer do coentro, o tempero que nasce em cada jardim da Bahia (bem batido, você quase não percebe, mas está lá).

Bem, não conte para ninguém, mas, na minha feijoada, tem um ingrediente que todo mundo se assusta ao saber, só que não há meios de eu pensar na Bahia sem ele: pimenta. No meio do preparo, sem ninguém ver, pego uma, duas ou até cinco pimentas grandes e carnudas e escondo naquele caldo. Por quê? Porque sem pimenta a vida não tem graça. E a Bahia é apimentada mesmo. Pronto, falei.

Para acompanhar: arroz branco e farofa de manteiga, feita com aquela farinha fininha e branca que lembra as areias das praias da Bahia.

Pronto, ingredientes apresentados, vamos ao preparo, de forma didática. Primeiro, o “seu” feijão, estrela da festa, tem de ser posto para descansar. Depois, bata todos os temperos. A quantidade, não tenho a menor ideia. Saio batendo e vou sentido o cheiro. Na hora em que o tempero fica com o cheiro da Bahia, é porque está bom.

Mas a ordem é essa: bata no liquidificador tomate, cebola, pimentões verdes, vermelhos, amarelos e bastante coentro. Bata, bata e bata. Depois, despeje essa pasta na panela e, quando o molho estiver bem cozido, vá colocando as carnes: das mais duras para as mais moles. Carne seca, carne fresca, lombinho, paio, bacon e as linguiças. Não se esqueça de esconder a pimenta e deixe isso tudo ferver. Por último, o feijão. Aí, é só a alegria do fogo fazendo a alquimia baiana.

Quando tudo estiver pronto, vá dormir. Feijoada boa é feijoada descansada, dormida de um dia para o outro.

Faça de coração. Vai ficar gostoso. Daí, é só reunir quem você gosta, colocar na mesa e servir toda essa alquimia de bem querer com uma bananinha e uma cervejinha para acompanhar. Pronto. E ponto final.

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