Em 1906, o médico psiquiatra alemão Aloysius Alzheimer descreveu o primeiro quadro de patologias associadas à doença que, anos mais tarde, seria batizada com seu nome. Ao realizar a autópsia do cérebro de uma paciente de 55 anos, que apresentou graves problemas de memória, confusão e fala comprometida, o médico se deparou com um quadro até então incomum. No órgão, a presença de placas e emaranhados neurofibrilares no interior e entre os neurônios.
Mais de um século desde sua classificação, a doença de Alzheimer, caso mais comum da demência, já foi atribuída a um mal, muitas vezes, encarado como “inevitável” pela idade e a um diagnóstico distante de gerar boas expectativas. A perda progressiva das lembranças, a dificuldade em reter informações e a falta de referência espacial e de autonomia, são sintomas típicos da doença que, segundo a Organização Mundial da Saúde, acomete cerca de 35 milhões de pessoas no mundo todo, um número que pode triplicar até 2050. Diferente de outras enfermidades, parte do temor do Alzheimer não vem pela antecipação da dor física e sim pela consciência de que a memória, base de nossa identidade, será inevitavelmente interrompida.
Uma vez que o avanço da idade é dado como o principal fator de risco da doença, o número de casos tende a aumentar na mesma proporção que a expectativa de vida. Aos 60 anos, uma pessoa possui 1% de chances em desenvolvê-la. No entanto, essa taxa dobra a cada cinco anos. A estimativa é que 25% dos idosos após os 85 anos estarão com a doença.
Além da idade, pesquisas recentes apontam que outras doenças estariam associadas ao Alzheimer. De acordo com o World Alzheimer Report, publicado em setembro último, hipertensão, diabete, colesterol, obesidade e tabagismo afetam não somente as artérias do corpo, como as do cérebro, o que influenciaria o quadro de neurodegeneração.
A baixa escolaridade também tem sido atribuída a uma maior incidência. Pacientes que apresentam nível escolar reduzido teriam mais chances de ser impactados com a perda da memória progressiva, uma vez que possuem menor reserva cognitiva. Pessoas com níveis mais altos de educação desenvolveriam uma maior complexidade na conexão entre os neurônios. No entanto, nem mentes brilhantes como a do vencedor do Prêmio Nobel de Física de 2002, Raymond Davis Jr., estariam imunes à doença. Em 2006, aos 91 anos, o físico-teórico faleceu devido a complicações causadas pelo Alzheimer. O fator genético não é descartado, porém, até então, sua representatividade se mostrou baixa. Correspondendo a menos de 5% dos casos.
A raiz da doença
Apesar de ainda não saber por que a Doença de Alzheimer ocorre, sabe-se que o cérebro dos pacientes apresentam duas principais alterações. Nele, o acúmulo anormal de uma proteína chamada beta-amiloide leva à formação de placas senis entre os neurônios, o que prejudica as sinapses – comunicação – entre os mesmos. Simultaneamente, ocorre a fosforilação da proteína tau. Este processo é conhecido por formar emaranhados, espécie de novelos neurofibrilares dentro dos neurônios, levando à morte deles. Outra alteração também observada é a redução progressiva do volume cerebral.
Uma das descobertas mais recentes da comunidade científica a respeito do Alzheimer aproxima a doença neurodegenerativa ao Diabetes tipo 2. Coordenada pelos neurocientistas brasileiros Fernanda De Felice e Sergio T. Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com a Queen’s University do Canadá, uma equipe internacional dedica a investigar os mecanismos desta relação. “Há anos sabe-se que existe uma correlação entre as duas. Pacientes com diabetes teriam mais chances de desenvolver o Alzheimer à medida que envelhecem e vice-versa”, explica Ferreira.
Em nosso cérebro, os neurônios possuem receptores de insulina, e os mecanismos que estes disparam para dentro das células são importantes, dentre outras coisas, para a formação da memória. Já em pacientes com Alzheimer, toxinas chamadas oligômeros atacam os neurônios causando a remoção do receptor de insulina, um quadro parecido ao que acontece no organismo de pacientes com Diabetes tipo 2.
O estudo, iniciado em 2008, investigou a perda de memória causada pelos oligômeros e mostrou que medicamentos antidiabéticos tiveram efeito benéfico nos neurônios cultivados (isolados em laboratório) e nos cérebros de camundongos. “A ideia é que um medicamento usado hoje em dia apenas para tratar o diabetes possa ser redirecionado para uso na Doença de Alzheimer”, conclui Ferreira.
Em uma segunda fase da pesquisa, em colaboração com a universidade canadense, o grupo estuda a reação de macacos aos oligômeros. Atualmente ensaios clínicos realizados na Dinamarca e em Inglaterra acompanham o efeito desses medicamentos em um grupo de humanos. A expectativa é que, em aproximadamente três anos, tais estudos indiquem se tais drogas, além de funcionar nos roedores e macacos, apresentem os mesmos resultados em pacientes humanos.
Expectativas e tratamento
A descoberta de que nós temos uma espécie de “GPS mental” responsável pelos nossos sentidos de orientação e localização foi responsável por dar a três neurocientistas o último Nobel de Medicina, divulgado recentemente em outubro. O americano radicado em Londres John O’Keefe foi o primeiro a identificar nos anos 1970, em estudo feito com ratos, que determinadas células nervosas, batizadas de “células de lugar”, seriam responsáveis por criar mapas mentais, estes armazenados como memória.
Já o casal norueguês May-Britt Moser e Edvard Moser complementaram a pesquisa de O’Keefe ao descobrir que outros neurônios, estes nomeados de “células de grade” formam uma rede que reage de forma padronizada de acordo a nossa movimentação no espaço. Esta seria responsável por registrar coordenadas espaciais, como de latitude e longitude. A ideia de um mapa cognitivo também pode indicar novos caminhos para entender processos da memória e planejamento, e assim, ter impactos importantes na compreensão da Doença de Alzheimer. Uma das hipóteses é que em pacientes com a doença, tais “células de lugar” ficariam comprometidas. Em outro estudo, pesquisadores da University College London, concluíram que taxistas que se movimentavam pela cidade sem a necessidade de mapas físicos tinham o hipocampo mais “desenvolvido” do que a média das outras pessoas.
Rodrigo Rizek Schultz, diretor científico da ABRAZ, Associação Brasileira de Alzheimer e coordenador do Ambulatório de Demência Grave do Setor de Neurologia do Comportamento da Universidade Federal de São Paulo, salienta que a descoberta de um “GPS mental” não significa que estaríamos mais próximos de sua cura. “Na fase inicial da doença, o paciente começa a se perder com certa frequência. Essas estruturas relacionadas com a orientação estão bem próximas a áreas relacionadas à memória para fatos recentes. Este sistema de, alguma maneira, ajuda a compreender o problema. Mas em relação a um tratamento, é preciso ainda saber como essas células [do lugar] funcionam, como elas se processam em nível molecular, biológico”, explica.
Nas últimas três décadas, a comunidade científica tem concentrado esforços para encontrar alternativas que diminuam os sintomas da doença ou que retardem sua progressão. Outros estudos, como o encabeçado pelo neurocirurgião Andres Lozano, da Universidade de Toronto, Canadá, utilizam técnica de estimulação cerebral profunda para enviar impulsos elétricos ao cérebro por meio de eletrodos implantados internamente. Segundo Lozano, o hipocampo – área responsável pela memória – mostra subutilização de glicose, o que evidencia que tal área não estaria em pleno “funcionamento”. De acordo com a pesquisa, publicada na Annals of Neurology, seis pacientes com Alzheimer em estágio inicial e que tiveram o marcapasso instalado no cérebro, mostraram resultados otimistas: o uso reduzido da glicose havia sido revertido, assim como a evolução dos sintomas. O mesmo método também tem sido utilizado para estudos em outras patologias, caso do Mal de Parkinson e Depressão.
Mesmo sem um tratamento definitivo da doença, um diagnóstico precoce aumenta as chances do paciente em retardar sua evolução. Os medicamentos disponíveis atualmente se caracterizam pela presença de duas substâncias. “Elas atualmente melhoram a atividade da acetilcolina ou reduzem a hiperatividade do glutamato, dois principais neurotransmissores relacionados à doença”, explica Rodrigo Rizek Schultz.
Para Ivan Hideyo Okamoto, do Núcleo de Memória do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, é importante que a família do paciente também adeque as expectativas em relação ao tratamento. “A medicação faz com que o paciente não piore e isto já é uma melhora”, afirma. Segundo o neurologista, o tratamento mais adequado exigiria identificar o marcador biológico “ideal” da doença, aquele que evidenciaria, como em um exame de sangue para diagnosticar o diabetes, a chave do Alzheimer. “Sabe-se que o processo de degeneração neurofibrilar começa no cérebro da pessoa vinte anos antes de ela manifestar os sintomas. Então, a busca para o tratamento ideal seria identificar tais pessoas e começar o tratamento o quanto antes”, explica.
Investir em autoestima
Além da perda progressiva da memória, a autonomia comprometida é uma das principais preocupações de familiares de pacientes com Alzheimer. Fernanda Gouveia Paulino, mestre e doutora em Psicologia Clínica e presidente nacional da ABRAZ, indica que a família observe o paciente m situações espontâneas. “Observar se ele tem iniciativa de comer, de tomar banho. Ou se ele se expõe a situações de risco, como deixar o fogão aceso. Se ele sai sozinho e se perde. Muitas vezes, a família visita o paciente e faz de tudo por ele e acaba não percebendo como ele se comporta”.
Investir em tratamentos multidisciplinares também implica em aumentar a qualidade de vida, uma vez que dá a oportunidade ao paciente de se manter mais ativo. “Todo trabalho de estimulação e reabilitação faz com que o paciente funcione o melhor possível. Isso é um investimento em qualidade de vida, porque ao se sentir funcionante, o paciente tem sua identidade preservada, ele se reconhece naquilo que está fazendo”, completa Paulino.
Muitas pesquisas defendem que exercitar aspectos cognitivos e manter-se socialmente ativo contribui para o controle da progressão da doença. Aprender novos idiomas ou outras disciplinas e até mesmo palavras-cruzadas trariam efeitos positivos. “Atividades intelectuais de diversas maneiras possíveis ativam muitas áreas cerebrais, além de estimularem as suas comunicações e manterem as sinapses presentes sempre íntegras”, pontua o neurologista Rodrigo Rizek Schultz.
Em pesquisa para o doutorado em Neurociências e Comportamento (NEC) no Instituto de Psicologia (IP) da USP, o pesquisador Renné Panduro Alegria identificou que portadores de Alzheimer, em estágios leve a moderado, têm a capacidade de conversa preservada, se forem dados os estímulos corretos. A capacidade linguística fica comprometida, porque certas áreas do cérebro, onde estão representadas algumas classes de palavras, são afetadas com a doença. Segundo o pesquisador, os pacientes têm perdas em todas as categorias lexicais, e, quanto mais avança a doença, maiores são os prejuízos. “Eles têm principalmente mais dificuldades com palavras abstratas e aquelas que denominam seres vivos”. Da mesma forma, apresentam dificuldades em utilizar palavras de uso menos frequente. “Não existe um discurso vazio porque quando são estimulados adequadamente conseguem responder e se comunicar”, completa.
Segundo o último World Alzheimer Report, os custos globais com a demência foram estimados, em 2010, em US$ 604 bilhões. Países desenvolvidos demonstraram melhor desempenho no controle da Doença de Alzheimer, uma vez que conseguiram investir em políticas públicas de prevenção e tratamento das patologias consideradas fatores de risco, como a obesidade, tabagismo, diabetes e hipertensão. “Mais uma vez nos deparamos com a constatação de que políticas públicas bem aplicadas poderiam ajudar inúmeras pessoas. A demência da doença de Alzheimer poderia ter uma incidência menor, ocasionando uma redução significativa de custos extremamente altos tanto financeiros como físicos e emocionais”, pontua Rodrigo Rizek Schultz.
Para Fernanda Gouveia Paulino, presidente nacional da Associação Brasileira de Alzheimer, entidade privada sem fins lucrativos, é importante que a família também aceite o processo da doença. Da mesma forma, buscar informação e apoio. “É um processo gigante de aceitação. As famílias precisam ser flexíveis à mudança. Porque na hora que ela se adapta, a situação muda. Estamos falando de uma doença evolutiva, que exige uma constante reciclagem. Se a família tiver visão de que a vida não vai ser mais como era antes, mas que temos alternativas de viver bem apesar das perdas e das mudanças, ela já terá contribuído significativamente”, aconselha
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