Amargo é além da dose

Editoria de Arte
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Quem presta atenção ao noticiário desde o começo do ano tem a impressão de que as políticas sociais implantadas pelo governo federal na última década de fato saíram do controle e mergulharam o Brasil em uma profunda depressão. Não é bem assim. Embora Dilma Rousseff tenha cometido erros na reta final de seu primeiro mandato, os indicadores econômicos no início de 2015 estavam longe de merecer o diagnóstico catastrófico que resultou na superdosagem de um ajuste fiscal que, desde sua introdução, piorou todos os indicadores econômicos, acabando com o pleno emprego e inaugurando oficialmente a recessão no Brasil.

Essa conclusão é a espinha dorsal de um documento lançado no fim de setembro, em São Paulo, por sete organizações** de sociólogos e economistas. Batizado de Por um Brasil Justo e Democrático, os dois volumes do estudo trazem um diagnóstico da crise e alternativas para a retomada do crescimento.  A tese é que a fragilidade da vitória de Dilma nas eleições de 2014 criou o ambiente político apropriado para que a ortodoxia econômica voltasse à moda fortemente amparada pela imprensa.

Os números falam por si.  Nos últimos 12 anos, o Brasil gerou uma média anual de 3% do PIB (Produto Interno Bruto) em superávit primário. Em 2013, já fortemente afetado pela crise internacional, reservou 1,8% aos credores.  No mesmo ano, os Estados Unidos geraram déficit de 3,6% e a Zona do Euro de 0,4%, com Espanha (-4%) e França (-1,9%) liderando o ranking. Entre 2002 e 2013, a dívida pública brasileira em relação ao PIB caiu de 44,2% para 31,5%. No mesmo ano, essa mesma relação atingia o patamar de 79,5% nos Estados Unidos, de 122,9% no Japão e de 69% na Zona do Euro. Só em Portugal, a dívida naquele ano equivalia a 119,4% do PIB.

Embora o crescimento da economia tenha desacelerado a partir de 2010, o ritmo brasileiro foi superior à media mundial por seis anos, até 2013. Naquele ano, o PIB brasileiro avançou 2,74% e o dos Estados Unidos 2,22%. Alemanha, França, Itália, Portugal, Irlanda, Espanha e Grécia registraram variação negativa média de 0,46%.

Além disso, a dívida externa nacional bruta em relação ao PIB caiu de 41,8% em 2002 para 13,8% em 2013 ao mesmo tempo que as reservas internacionais saltaram de US$ 16,3 bilhões para US$ 375,8 bilhões e o risco Brasil despencou de 1.455 para 224 no mesmo período.

Mas, enfim, 2014 chegou. “A raiz dos problemas atuais reside na crise internacional de 2008 e seus desdobramentos e, em menor medida, nos erros da condução doméstica”, diz o documento. “Mas, para os nossos liberais, o mundo caminhou bem entre 2009 e 2014 e os problemas econômicos atuais seriam frutos exclusivos da chamada ‘nova matriz macroeconômica’.”

Dilma também teria errado feio no ano eleitoral. Para rever a estagnação, ela tomou medidas populistas – como reduzir artificialmente a conta de luz – ao mesmo tempo que tentou agradar o empresariado ao ampliar a desoneração fiscal.  Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp e signatário do texto, acredita que essas bondades fiscais teriam gerado queda na arrecadação, agravando a crise resultante da desaceleração. “Isso não teria sido grave se não fosse usado um discurso para criar esse clima de terrorismo fiscal.”

A confiança do consumidor, que já declinava desde as manifestações de junho de 2013, se transformou em pessimismo no ano seguinte com a proximidade das eleições. O ano de 2015 começa com o avanço das investigações da Operação Lava Jato e a rebelião do Congresso contra o Executivo. Estava criado o clima para o retorno triunfal da ortodoxia econômica representada pela condução de Joaquim Levy ao Ministério da Fazenda e ancorada em manchetes catastróficas nos jornais. 

Em pouco tempo, o anúncio do primeiro pacote. Agora, o período mínimo para receber o seguro desemprego saltou de seis para 18 meses, abono salarial só depois de seis meses no emprego, não mais 30 dias. Até a pensão por morte foi restringida no ajuste que promete reduzir R$ 18 bilhões ao longo do ano. Os juros subiram, a atividade econômica desacelerou ao ponto de o governo enviar para o Congresso uma previsão de Orçamento com um buraco de R$ 30,5 bilhões.

Era questão de dias para que a agência de rating Standard & Poor’s retirasse o grau de investimento do Brasil, aumentando a pressão sobre Dilma: era hora de cortar programas sociais para zerar o déficit. Nasce o pacotaço de R$ 26 bilhões com R$ 3,8 bilhões a menos para a Saúde e corte de R$ 4,8 bilhões no Minha Casa Minha Vida. Aos servidores, nada de aumento salarial.

O setor produtivo esbravejou. Presidente da Associação de Pequenas e Médias Empresas de Construção Civil (APeMEC), Luiz Alberto de Araújo Costa considera os cortes no Minha Casa Minha Vida “um estímulo à recessão”. “Era o único programa habitacional que contemplava as pequenas e médias empresas do setor. Estimamos corte de 30 mil empregos diretos e indiretos.”

Entre os servidores a “indignação” é maior. “Não vamos pagar o custo desta crise”, garante Sérgio Ronaldo da Silva, secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal. “Os movimentos sociais não apostaram num governo progressista para aplicar a plataforma do candidato derrotado.” Ana Maria Costa, presidente do Centro de Estudos em Saúde e membro do Conselho Nacional de Saúde, lamenta: “Estamos ajustando a economia para aumentar o superávit, mas esvaziando o comprometimento com diretrizes sociais”.

Só o mercado gostou. Em nota, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) indicou que o corte “emite uma sinalização importante para o restabelecimento da confiança dos agentes econômicos”.

As consequências também estampam os jornais que defendem o ajuste. A expectativa de recessão é de 2,8% para 2015 e o desemprego quase dobrou em sete meses: 8,6% no trimestre encerrado em julho. Em 2014, esse índice era de 4,8%.


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