O Fonseca Telles, que faz a divisa de Acre e Rondônia, é um rio singular. Nasce na Serra dos Macacos e deságua no Abunã, depois de uns 200 km cortando a mata e áreas desertificadas. Por insistência do Tião, foi essa a remada escolhida. Éramos cinco, partimos de São Paulo em um sábado.

Foram exatos 3.147 km, bem rodados em três dias. Chegamos na noite da segunda, exaustos. Um hotelito-de-mierda era a única alternativa. Estava por lá um tal de Jack Bazzoli, assistente do Quentin Tarantino. Uma figura sinistra, mas conversável. Disse que colhia ideias na fronteira. Juntos bebemos a aguardiente local e traçamos um chicharrón de cerdo, que não é para fracos.

Saímos às sete, em meio a uma nuvem de mosquitos da pocilga junto ao rio. Uma lambança dos diabos. Mas, em instantes, tudo mudou. Mata, rio e pássaros. Na água cristalina, os curimbatás. Algumas pequenas praias e pegadas de animais. Avistamos muitas ariranhas. Só no quinto dia de rio chegamos à região desértica do Marembepe. Ao entardecer, encontramos uma praia rasa, ao pé de um barranco alto. Montamos as barracas e assamos uns curimbatás. O Tião montou um varal para nossa tralha secar.

Estávamos lá, proseando, quando chegaram dois jagunços em seus cavalos resfolegantes. A roupa deles era de um couro surrado e, pelo brilho na cintura, vi que estavam armados. Um cavalo era tordilho, branco na noite de lua. O outro era preto de tudo, uma silhueta.

Desceram pelo barranco levantando uma nuvem de areia e arrancaram o varal que o Tião, generoso, montara para o grupo. O Tião ficou puto-nas-calças e gritou ô meu, onde vai?. O do tordilho gritou shut your big fucking mouth?.

Eu me assustei com o jagunço falando inglês, claro. Mas o Tião não vacilou e mandou you talking to me? Who the fuck you think you’re talking to?. Depois, me contou que lembrara essa fala do De Niro em Taxi Driver.

O jagunço gritou para ele fica de quatro já e mandou cinco tiros junto ao pé do amigo. O Tião logo viu quem tinha o Zap. Inteligente, ficou de quatro e suplicou ô meu, para com isso!.

O jagunço então perguntou – em espanhol! – se ele tinha assistido Amargo Pesadelo. O Tião, ainda de quatro, poliglota e respeitoso, disse si, como no?

Aí, eles perguntaram se ele conhecia o destino do personagem gordinho no filme. O Tião disse sim e aí veio o momento tenso. O jagunço perguntou qual era o nome do personagem, do ator e sua data de nascimento. Eu pensei comigo agora o Tião está fodido. O Tião pediu um segundito e, de quatro ainda, mandou Bobby Trippe, ator Thomas Beatty, nascido 8 de junho de 1937. Caceta! Já me haviam dito que o medo opera milagres na memória, mas eu fiquei impressionadíssimo com o lance de mestre. Os jagunços também e resolveram perdoá-lo. Que fosse para a barraca, de quatro, e deixasse tudo limpo no dia seguinte.

O Tião – não sei por quê – agradeceu em inglês: You guys are so sweet, thank you very much!.

Quem seriam aqueles caras? De onde vieram? Que falassem espanhol é razoável, mas e o inglês? Como conheciam Amargo Pesadelo? Não houve consenso. Nós dormimos muito mal aquela noite. O Tião não pregou o olho.

*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).


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