Amazônia compartilhada

Foi um encontro inédito, no qual os oito países que abrangem terras e águas da Amazônia decidiram estabelecer um amplo acordo para proteção, gestão e preservação de um tesouro comum, a água. Afinal de contas, os rios que cortam os 6,5 milhões de km2 da Bacia Amazônica, a maior bacia hidrográfica do mundo, representam 1/5 da água doce mundial, recurso que cada vez mais se mostra como a grande commodity do futuro.

Denominado I Reunião dos Diretores Gerais de Águas dos Países Amazônicos, o encontro organizado pelo Itamaraty teve apoio da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Brasileira de Cooperação (ABC). Foi realizado no final de fevereiro no Palácio do Itamaraty, em Brasília, e, segundo o diplomata Clemente Baena Soares, coordenador do evento, marcou uma nova etapa para os integrantes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Segundo o ministro, no final do ano passado, os chanceleres dos países amazônicos tinham decidido revitalizar a OTCA com a discussão das questões hídricas, como primeiro ponto a ser considerado prioritário para a região. A reunião de Brasília foi realizada, na prática, por uma das decisões tomadas pelos chanceleres.
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Para o Brasil, dono da maior parte da área, que é compartilhada com Guiana, Suriname, Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia, estabelecer maior proteção, preservação e gerenciamento dos rios da região é fundamental. Afinal de contas, dos 84 rios internacionais existentes no País (rios que atravessam o Brasil e outros países ou que delimitam fronteiras nacionais), nada menos que 65 são amazônicos. Mais ainda, esses rios, incluindo o maior do mundo, o Amazonas, nascem fora do Brasil, significando que o que ocorre a montante, nas partes iniciais desses rios, pode vir a afetar, de maneira positiva ou negativa, a Amazônia brasileira. Essa situação, na qual o que estava em discussão era um bem comum, resultou, de acordo com os diplomatas brasileiros, em um consenso sobre a necessidade de melhor gerenciamento por todos.

Três pontos principais foram decididos e serão implementados por um grupo de trabalho formado por ABC, ANA e OTCA. O primeiro ponto é a articulação entre as agências nacionais de águas dos países (no Equador, é um Ministério), que passarão a compartilhar dados, visando ações conjuntas em relação aos recursos hídricos. O segundo ponto, a coleta e compartilhamento dos dados, seguirá o modelo implantado no Brasil pela ANA. O objetivo será a criação de um sistema comum de dados hidrológicos, dentro do padrão brasileiro, considerado pelos participantes do encontro como o mais avançado. A adoção desses padrões e métodos da ANA levou ao terceiro ponto considerado prioritário, a capacitação técnica de pessoal nos vários países. Essa capacitação técnica – com a definição de cursos específicos, currículos, métodos de trabalho, equipamentos, etc. – será coordenada e executada pela ANA, com financiamento por parte da ABC. Para o Itamaraty, essa foi uma decisão natural e que terá efeitos positivos não apenas nos demais países amazônicos, mas no próprio Brasil. Uma das explicações para todo esse suporte – técnico e financeiro – que o Brasil dará aos projetos está exatamente no fato de que, ao contrário do que ocorre na Bacia do Prata, onde a maior parte dos rios nasce no Brasil, cabendo então ao país a responsabilidade sobre o que ocorre rio acima, na Amazônia o quadro é o oposto. Em suma, temos que ajudar os vizinhos a cuidar melhor dos rios da região.

Na verdade, o papel do Itamaraty, trabalhando em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente, com a ANA e tendo o suporte da ABC, é cada vez maior em termos de manejo sustentável dos rios e de seu uso múltiplo, incluindo a navegação e a gestão integrada de recursos, e cresce de importância pelo fato de termos o alto número de rios internacionais. Em suma, cada vez mais os países envolvidos não podem mais decidir sozinhos (como o Brasil fez em Itaipu, por exemplo, nos anos 1970, quando o País e o parceiro forçado, o Paraguai, eram governados por ditaduras), sendo a palavra de ordem, especialmente em tempos de mudanças climáticas, o manejo sustentável dos recursos hídricos, sejam águas de superfície ou subterrâneas.

No caso da reunião amazônica, além dos três pontos prioritários, foi definido um regulamento sobre a navegação fluvial comercial. Um modelo para toda essa gestão compartilhada já existe, com resultados comprovados, o Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países do Prata (CIC Plata), que reúne Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai e administra uma bacia hidrográfica de 3,1 milhões de km2. Para o Itamaraty, cada vez mais os países da América do Sul, onde estão aproximadamente 10 milhões de km2 de bacias hidrográficas, precisam agir em conjunto no que se refere aos recursos hídricos, que a natureza lhes deu em grande quantidade e ignoram as suas fronteiras nacionais.

A qualidade gerencial e técnica da ANA, na qual as decisões finais são tomadas por uma direção colegiada, composta por cinco diretores, dentro das diretrizes da Política Nacional de Recursos Hídricos, pode ser verificada pela maneira como são realizados os estudos para, por exemplo, definir a outorga de uso da água de um rio. “Temos de levar em conta o equilíbrio entre o financeiramente viável para um empreendimento, como projetos de irrigação, sistemas de captação de água ou hidrelétricas e, especialmente, o equilíbrio entre a preservação ambiental e o uso econômico das águas de um rio ou bacia hidrográfica”, explica Luciano Meneses, gerente de Outorga da ANA. Ele destaca que, pela Constituição de 1988, a água é um bem público, sendo gerenciada pela União, nos casos dos rios federais (que cruzam mais de um Estado) e internacionais, nos rios que cruzam ou fazem fronteiras com outros países, e gerenciamento estadual, nos rios que percorrem apenas um Estado.

As diretrizes de atuação da ANA seguem cinco pontos básicos. O primeiro é a outorga, onde a União ou os Estados determinam quanto poderá ser usado e para quais finalidades, da vazão de um rio ou bacia hidrográfica. O segundo ponto é a cobrança pelo uso da água utilizada. O terceiro é o sistema de informações sobre cada rio ou bacia – quantidade de água, regime de cheias e vazantes, etc. O quarto ponto é o chamado enquadramento dos corpos d’água – rios, lagos, etc., buscando estabelecer padrões de qualidade. O especialista da ANA destaca que, no caso da despoluição dos rios, cabe à sociedade instituir as metas, tendo conhecimento, por exemplo, dos custos para despoluição ou de prevenção da poluição de um rio ou lago. O quinto aspecto, que Meneses destaca como fundamental, especialmente em termos de futuro, é o estabelecimento de planos de recursos hídricos para bacias hidrográficas inteiras. Nesse aspecto, a ANA procura atuar de maneira que os projetos de uso das águas de um rio sejam definidos em consenso. “Hoje, ainda há setores de usuários projetando de costas uns para os outros, dentro do conceito popular do cobertor curto”, explica. Nesse aspecto, o papel da ANA e dos Ministérios que atuam no setor hídrico é cada vez mais importante.

Na verdade, não é por falta de leis e regulamentos que o Brasil não consegue implantar sua política de uso e gerenciamento dos recursos hídricos. Para os especialistas, a chave do melhor uso de um bem indispensável está no trabalho conjunto dos interessados em usar as águas de um rio. Um bom exemplo seria de uma cidade que faz o despejo de esgotos em um rio. Somente com a realização de estudos sobre a capacidade do rio de dissolver os efluentes é que esse tipo de situação pode ser autorizada. Se a vazão do rio, por causa de projetos de irrigação rio acima ou de hidrelétricas, for reduzida, a saída será a instalação de estações de tratamento de esgotos, por exemplo. Meneses destaca que, cada vez mais, a realização de ações em conjunto, visando ao uso racional dos corpos d’água, precisa se transformar em padrão. Na verdade, não dá mais para fazer as coisas sem olhar para o vizinho. O lobo e o cordeiro terão de repartir a água de modo sustentável, racional, sem um acusar o outro de estar sujando a sua água.

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