Desde 1950, pesquisadores já desconfiavam que as transformações da fauna e da flora da Amazônia não foram provocadas apenas por mudanças climáticas, mas por mudanças ambientais causadas por terremotos. Só não tinham como provar. A geóloga Dilce de Fátima Rossetti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), tem despendido esforços, nos últimos 25 anos, para reunir essas provas. Os resultados coletados em várias regiões investigadas confirmam as teses dos pioneiros. À frente de uma equipe que reúne geólogos, paleontólogos e botânicos do Brasil e do exterior, Dilce já esquadrinhou regiões amazônicas que, em virtude de movimentos tectônicos, perderam floresta densa e ganharam áreas abertas de savanas e campinaras, até recentemente explicadas somente como herança de fases climáticas áridas do passado geológico. De acordo com as investigações, terremotos também podem ter tido grande contribuição na mudança do curso de rios importantes, como Madeira, Negro e Branco, e seus afluentes. De São José dos Campos (interior de São Paulo), onde mora quando não está na Amazônia, Dilce, que tem um currículo respeitável – mestrado em Geologia e Geoquímica pela Universidade Federal do Pará (1990) e Phylosophy Doctor pela University of Colorado at Boulder (1996), pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre 1988 e 2004, e atualmente pesquisadora titular do INPE – falou à Brasileiros sobre essas e outras descobertas que têm sido tema de intensos debates da comunidade científica internacional.
Brasileiros – A Amazônia é uma região sujeita a terremotos? E o que eles têm a ver com transformações no ambiente, na fauna e na flora?
Dilce Rossetti – Essa é uma teoria que a gente vem defendendo há bastante tempo. Desde que comecei a trabalhar na Amazônia, fui observando evidências na paisagem e no desenvolvimento das bacias de drenagem que sugeriam efeito tectônico. Com o uso de imagens de satélite ou radar, conseguimos perceber feições no terreno e interpretar que elas têm relação com eventos de tectonismo. Não fui a primeira a sugerir isso. Desde 1950 pesquisadores já defendiam essa teoria, ou seja, a importância das movimentações tectônicas na Amazônia, mas havia ceticismo devido à falta de estudos sistemáticos que demonstrassem isso melhor. Com o passar dos anos, fomos levantando informações que mostram o terreno amazônico com muitas evidências de estruturas tectônicas, como falhas. Os rios amazônicos têm seu curso controlado por essas falhas. Hoje, temos registros que confirmam a importância dos eventos tectônicos na Amazônia. Essas ocorrências não estão muito distantes no tempo geológico, sendo registradas até mesmo há poucos milhares de anos e, provavelmente, continuam acontecendo até hoje. A Amazônia tem várias áreas de terremoto registradas pelos sismógrafos, embora, em geral, com epicentros localizados a certa profundidade. Quando o epicentro se aproxima da superfície, dá-se um abalo maior. Eventos como esses produziram terremotos de até 5,5 graus na Amazônia Central, em 1963 e em 1983. Esses abalos resultam da reativação dessas estruturas tectônicas desenvolvidas há muito tempo e que, de tempos em tempos, se movimentam. Estamos analisando esses eventos para ver se estão relacionados com a movimentação das placas tectônicas ou com fases de soerguimento dos Andes. Os resultados têm uma implicação grande no projeto que desenvolvemos porque essas variações do ambiente, causadas pelas reativações tectônicas, podem também provocar mudanças na estrutura da vegetação. E quando muda a vegetação também há alteração na fauna, uma vez que ela subsiste em função da vegetação.
Como isso acontece?
Se uma área de floresta afunda por causa de um movimento tectônico, cria-se uma depressão, uma bacia, que pode acumular água, virar um lago. Com isso, a floresta e sua fauna associada que ocorria em terra firme vai se modificar. É assim que o movimento tectônico muda o ambiente, a vegetação e a fauna. Convencionou-se que as mudanças de floresta para savana são relacionadas com o clima. Quando o clima no planeta era mais árido, a Amazônia teria respondido com a destruição ou contração da floresta e a implantação de savana. Isso porque durante períodos de clima frio no globo, as áreas tropicais como a Amazônia teriam respondido ao aumento de aridez com desenvolvimento de savana do tipo que ocorre na África hoje. Sempre foi interpretado dessa maneira, ou seja, que toda mudança de vegetação na Amazônia ocorrida no passado tem relação com variações climáticas. E hoje o que quero demonstrar é que períodos geológicos com desenvolvimento de savana podem não ter relação com paleoclimas áridos. Então, estamos definindo quando ocorreram esses momentos em que a Amazônia apresentou vegetação mais aberta no passado geológico para ver se eles coincidem com os períodos de glaciações, por exemplo, quando houve a expansão de geleiras. O auge da grande glaciação ocorreu entre 23 mil e 18 mil anos atrás. Foi o último momento em que o planeta esteve mais frio e parte do hemisfério norte e sul ficou congelada.
A Amazônia também?
Não, mas em função do esfriamento global mudaram os padrões de circulação das águas, dos oceanos, dos ventos, da umidade no planeta. Por isso acredita-se que a Amazônia tenha ficado mais seca durante a última glaciação. Então, a floresta teria se contraído e a savana se expandido. Só que a Amazônia hoje não tem só floresta, tem grandes áreas de vegetação aberta do tipo savana ou campinara, mesmo considerando sua condição de clima equatorial quente e úmido. Vegetações desse tipo ocorrem por mais de 100 km de extensão. Então, temos áreas de savana convivendo com floresta em ambiente úmido e quente. Por que a gente não podia ter isso também no passado? Quando essas áreas se formaram? Já sabemos que em algumas áreas essas savanas existem há seis mil anos, em outras, três mil anos, e nesse período não houve glaciação. Pelo contrário, foi um período que registrou aumento de umidade crescente no mundo inteiro. Então, essas savanas se estabeleceram na Amazônia em um momento de umidade, não de ressecamento, e estão em áreas tectonicamente instáveis. A tectônica causou mudanças no ambiente, deixando morfologias abandonadas na paisagem que foram colonizadas por essas vegetações específicas. Isso tem um impacto importante porque as mudanças de vegetação do passado da Amazônia são feitas com base em hipóteses climáticas, quando na realidade outros fatores devem também ser considerados. Para prever como o clima pode mudar daqui para frente, é preciso saber como ele se comportou no passado geológico, entender o comportamento do clima antes do homem na Terra, depois entender a influência do homem como agente modificador do clima global – é preciso voltar ao passado e fazer essas reconstituições em uma escala de tempo de milhares de anos para cá. Se utilizarmos variações de vegetação como evidência exclusiva de flutuações climáticas, poderemos não obter a resposta mais precisa, a natureza pode ser mais complexa do que imaginamos. Precisamos levar em consideração fatores para decifrá-la e coletar uma base de dados mais detalhada para fornecer interpretações conclusivas. A distribuição atual da Floresta Amazônica, sua competição com áreas que não são de floresta indicam uma dinâmica que estamos tentando entender e verificar se tem relação com fatores geológicos e geomorfológicos. Em algumas áreas, já obtivemos dados bem conclusivos para explicar porque a savana está lá, qual o parâmetro ambiental que influenciou seu desenvolvimento, quando houve seu estabelecimento e se ela tem relação com fatores climáticos ou tectônicos.
Em que regiões a senhora obteve resultados conclusivos?
Já desenvolvemos alguns projetos no norte de Rondônia, entre Porto Velho e Humaitá, no sul do Amazonas. Essa é uma região boa porque tem áreas extensas de savanas que eram interpretadas como resquícios do clima árido passado. Chegamos à conclusão de que lá houve drenagens abandonadas em função de uma atividade tectônica, com rios que corriam numa direção e passaram a correr na direção contrária devido ao basculamento de terrenos que foram falhados.
Qual rio, por exemplo?
O rio Madeira. Ele tinha um curso diferente do de hoje. Vários trechos desse rio corriam a 30 km de onde ele corre hoje. Na nossa interpretação, essa movimentação ocorreu devido à influência de falhas. No canal anterior do Madeira passou a não correr mais água e ele foi abandonado. Quando o rio é abandonado, com o tempo ele vai sendo preenchido por sedimentos. O canal vira um terreno de terra firme e esse terreno é diferenciado porque a vegetação que se desenvolve sobre ele é diferente da vegetação atual. Então, o ambiente aquoso vira substrato para o desenvolvimento de vegetação e de solo. Esses terrenos sustentam espécies diferentes, às vezes só tem gramíneas e só posteriormente ocorre a colonização por lá.
E qual é a outra região?
Outra região que estamos investigando é um depósito de areia de mais de 50 km de extensão, protegido, em grande parte, pelo Parque Nacional do Viruá, em Roraima, próximo à capital Boa Vista. É uma área completamente diferente de todo o resto da Amazônia, inclusive com fauna e flora diferenciadas. Em fevereiro deste ano, trabalhei na região em conjunto com o botânico Rogério Gribel, atual diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ele ficou impressionado com as espécies que encontrou. Começamos a verificar que, no passado, aquele ambiente era diferente do de hoje, com rios que divergiam em vez de convergirem como ocorre nos sistemas fluviais. Esses rios divergentes ou distributários acabaram formando depósitos de areia em forma de leque, que serviram de substrato para o estabelecimento de um mosaico de vegetação dominado por vários tipos de campinaras. A área de confluência do Rio Negro com o Branco apresenta a maior concentração de campinaras da Amazônia.
E o Rio Amazonas?
Uma linha de pensamento sustenta que a formação da Bacia Amazônica teria ocorrido entre 14 milhões e 10 milhões de anos atrás. Antes disso, o rio corria para o oeste por meio de canais que atravessavam os Andes. Depois houve a chamada inversão do Amazonas, o rio passou a correr para leste, saindo para o Atlântico e não mais para o Pacífico. Outra linha de pensamento afirma que essa inversão ocorreu mais recentemente, há apenas alguns milhares de anos. A linha que sustenta a idade mais antiga se baseia em coletas feitas em mar aberto em frente à foz do Amazonas. Esses estudos tentam decifrar quando houve entrada desses sedimentos derivados dos Andes. Os pesquisadores que defendem que o Rio Amazonas é mais jovem estão coletando dados de proveniência de sedimentos a partir de amostras derivadas da própria região amazônica. Com base nesses dados tem sido sugerido que a mudança de fonte para a andina aconteceu mais recentemente. Mas ainda é um tema muito debatido em fóruns mundiais.
A mudança de curso do Rio Amazonas deve-se a terremotos?
O mais provável é que esteja associado com eventos de tectonismo durante fases de soerguimento dos Andes. Há estudos mostrando que os Andes apresentaram fases importantes de soerguimento, que são potencialmente equivalentes às idades propostas para a inversão do Amazonas. O mais importante a frisar é que esse é um debate ainda aberto, até que dados mais concretos possam ser apresentados.
Como é feita a pesquisa?
Em geral, analisamos afloramentos, que são exposições naturais das rochas encontradas em falésias, costeiras, barrancos de rios, cortes de estrada. Quando não ocorrem exposições naturais nem artificiais, como minas a céu aberto, fazemos furos de sondagem. Na ilha do Marajó, fizemos furos de até 124 m. As idades variaram. Por exemplo: tivemos idades de 20 mil anos a 2 m de profundidade. Ficou provado, por estudos, que isso ocorre em função das falhas tectônicas.
Qual o registro mais antigo que a senhora encontrou na Amazônia?
Depende do local. Em vários, conseguimos chegar a 120 milhões de anos.
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