Amazônia Revisitada

Na imensidão de águas do rio Amazonas – “uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem”, como disse Mário de Andrade -, é comum que pequenas canoas venham em nossa direção, muitas vezes conduzidas por crianças, que sacolejam nas marolas causadas pela passagem do navio, à espera de qualquer coisa que possa ser jogada das grandes embarcações: um saco com bolachas, roupas, alimentos de qualquer espécie. Algumas dessas crianças acenam com os braços miúdos, como se fossem anjinhos batendo asas, em busca da compaixão dos viajantes. Estamos no Estreito de Breves, na confluência das águas do Amazonas com o rio Pará. Segundo a tradição popular, os navegadores, ao entrarem no estreito, devem atirar às águas uma oferenda para as divindades do fundo do rio, a fim de que essas permitam uma viagem segura. Com o avanço da miséria, os moradores passaram a se aproveitar dessa tradição para se alimentar.
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, para terem sensações de água viva”, anotou o escritor no dia 29 de maio daquele ano.

Vida de anjo, hoje
Vanderlei Silva, 10 anos, um dos “anjinhos” que hoje ganham a vida à custa das doações jogadas dos navios, conta que sua canoa é seu instrumento de trabalho e não de diversão: “Quando vem um navio, a gente se aproxima, faz barulho e pede alguma coisa pelo amor de Deus. Quando o rio volta pra calmaria, a gente se diverte um pouco brincando com algum boto”. Ele mora numa choupana enrustida na beira do rio, com a mãe e 12 irmãos. Com a morte prematura do pai – vítima de um acidente na traiçoeira foz do Amazonas, quando a embarcação em que estava chocou-se com uma pedra -, virou o provedor da família e conduz os irmãozinhos mais novos na arte de fazer-se “anjinho”.

Acidentes como o que vitimou o pai de Vanderlei são históricos nas águas do Amazonas e chegaram a ser descritos em detalhes na caderneta de Mário, já em 1927: “A jangada, até cinco mil toros às vezes, descendo por maio até Manaus. Alguns vão mesmo até os estreitos de Breves, onde se desmancham pra os toros serem embarcados com destino à estranja, Estados Unidos principalmente. São ilhas largas, vogantes em que vêm morando por meses famílias inteiras que constroem seus ranchos, trazem vacas, porcos, galinhas, e os xerimbabos, papagaios ensinados, cachorros, tajás de estimação, e vivem da vida comum descendo este mundo de águas. Às vezes a jangada é pegada por alguma corrente fortuita, bate nalgum braço de rio, margem firme, igarapé, igapó e tudo se destroça, é o fim. Tudo se desagrega, os toros se dispersam, uns seguem, outros não seguem. Mas em geral, por causa da classe, as águas se movimentam das margens para o centro do rio, e assim as jangadas, entregues a si mesmas, descem certo. Mas sempre interrogativamente, chegarão? Não chegarão? Ninguém sabe e ninguém pode, é a sorte”.

Em outros trechos das anotações de Mário, é a paisagem exuberante da Amazônia que ganha destaque: “Manhã fresca… De vez em longe uma garça. Estreito de Breves. Vida de bordo. Essas coisas bobas, que fazem sublime a viagem, por exemplo: um boto brincando n’água. Um boto brincando n’água! Que maravilha! Paisagens lindas. Noite sublime de estrela…”.

Passados 80 anos, a visão que se tem desse Estreito de Breves já não é tão bucólica. Além das crianças pedintes, que abordam as grandes embarcações em busca de comida, nos próprios navios que trafegam pelo Amazonas a preocupação da maioria dos viajantes é não mais com a paisagem, mas com a sobrevivência. As viagens pelo rio acontecem, na maioria das vezes, em busca de emprego na Zona Franca de Manaus. Os que seguem na direção da capital do Amazonas vão repletos de esperança na conquista de uma vaga em alguma das 500 companhias ali instaladas, que obtiveram uma receita de US$ 22,8 bilhões no ano passado. Os que retornam na direção de Belém quase sempre trazem no rosto a decepção por voltarem sem nenhuma perspectiva de emprego.

O parque industrial de Manaus gera 50 mil empregos diretos e mais de 250 mil em todo o País, em dez pólos que produzem desde equipamentos eletroeletrônicos até bens de informática, relógios, motocicletas, canetas, isqueiros, brinquedos, produtos óticos, metalúrgicos e químicos. Ocorre que, por conta da burocracia endêmica e por problemas de logística, as exportações vêm caindo. Para se ter uma idéia, em apenas um dos pólos – de fabricação de aparelhos celulares – as vendas para o exterior caíram de US$ 2 bilhões em 2005 para US$ 1,5 bilhão em 2006. A queda nas exportações acendeu o sinal de alerta nas indústrias e arrefeceu as contratações.

“Antes bastava chegar em Manaus para arranjar emprego”, conta Odinéia da Costa Duarte, a bordo do navio Santarém, na viagem de volta para sua cidade, Monte Alegre, no Pará, depois de ter passado um mês na capital do Amazonas procurando uma colocação. “Agora não tem mais trabalho e o que me resta é voltar para minha terra ribeirinha.”

No navio Santarém, na viagem de Manaus a Belém, são muitas as histórias de desilusão. Neuziane Dias, também de Monte Alegre, deixou em sua cidade marido e filho para buscar sustento na Zona Franca. “Disseram que as fábricas estavam contratando moças para a linha de montagem, mas isso é só para o ano que vem. Por enquanto o que eu fiz lá em Manaus foi gastar o pouco de dinheiro que nós tínhamos para comer. Mas não tem nada não, meu sangue é forte, é de guerreira e eu vou conseguir trabalho.”

Revolução e pobreza
Neuziane é bisneta de “cabano”, como são chamados os antigos habitantes destas terras que, subjugados pelos portugueses, num processo de dominação injusta e cruel, deflagraram entre os anos de 1833 e 1840 uma insurreição contra o governo. Esses antigos moradores, quase todos de origem indígena, participaram ativamente do movimento revolucionário chamado “Cabanagem”.

Os revolucionários viviam em habitações extremamente modestas, cobertas de palha, as “cabanas”. A principal causa da revolta era a situação de miséria a que estavam submetidos os nativos. Embora o Brasil já estivesse independente havia mais de uma década, no Norte do País, mais precisamente no Pará, os portugueses agiam como se a nação brasileira ainda fosse colônia de Portugal, causando profundo mal-estar e descontentamento na população nativa.

Com a eclosão do movimento revolucionário, Monte Alegre passou a viver dias de agitação, preparando-se para a luta armada. A partir dessa cidade, os rebeldes, cada vez mais fortalecidos com a chegada de novos adeptos da causa, desencadeavam expedições aos núcleos que ainda opunham alguma resistência à dominação cabana. Entretanto, na capital, aumentava cada vez mais a resistência à Revolução Cabana. Em abril de 1836, à frente de um forte aparato militar, o Exército conseguiu retomar o governo da Província. Ao final do movimento cabano, Monte Alegre tinha pago um alto preço: além das centenas de vidas perdidas, de ambos os lados conflitantes, os cacauais, sua principal fonte de riqueza, estavam destruídos ou abandonados.

Hoje na terceira classe do navio Santarém, a bisneta de “cabano” Neuziane Dias não sabe como vai dar a notícia do desemprego para o marido. “A gente tava contando com esse trabalho”, diz ela. “Não sei como vai ser.” Acomodada em sua rede, ela e os companheiros vão junto a mercadorias como sacas de castanha, açaí e até porcos e galinhas.

Na segunda classe, um andar acima, os passageiros também se instalam em redes, mas num ambiente fechado e com ar-condicionado. Só não pode namorar na rede. A marinheira Zilda, responsável pela faxina de bordo, vigia noite afora para impedir que casais se acomodem em suas camas improvisadas. Na primeira classe, gringos de diversas partes do mundo, interessados em conhecer a opulência da vegetação amazônica, fazem a viagem em camarotes com cama, banheiro e chuveiro com a água puxada do rio.

O choque de classes pode ser percebido já na qualidade da comida – superior para aqueles que podem pagar mais – e até na música que se ouve. Enquanto no andar de cima os gringos se divertem ao som da banda irlandesa U2, no “brega”, como é chamado o arrasta-pé da terceira classe, o que domina é o som do grupo paraense Calypso. Tudo regado a muita cachaça e cerveja. Mas é ali que está a parte mais divertida do navio.

A bebedeira é tanta que, numa das paradas, em Prainha (PA), para descarregar uma carga de castanhas, um grupo de rapazes acaba perdendo o navio e ficando na cidade, sem dinheiro e documentos. Os moços desceram para comprar cerveja – que havia acabado – e não ouviram o apito chamando para o embarque. Desesperado, um deles, que ficou a bordo, disse que seus amigos teriam dificuldade para pagar nova passagem porque estavam só com a roupa do corpo. “Estávamos indo para Belém e depois íamos tentar a vida no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Meus amigos que ficaram em Prainha não vão ter outra alternativa senão assaltar alguém para fazer dinheiro.”

Histórias da vida no rio
Mário de Andrade, em sua viagem pelo Amazonas, também colheu histórias dos passageiros. Numa delas, “um sujeito pequeninho, mal colocado na terceira” lhe contou sua saga, anotada em detalhes pelo escritor em seu diário. “Também já levei esta vida dura de bordo. Faço de tudo, trabalho não me assusta, porém que seja recompensado. Isso de marujo, que nem dorme direito, até por cima de boi botando a rede, para ganhar oitenta, noventa mil-réis, não vai comigo. Larguei e fiquei em Guajará, numa casa alemã, empregado. Depois comprei um seringal da casa mesmo, os patrões me ajudaram, comprei vinte contos de mercadoria e me meti com os meus homens pelo mato. Nesse ano os índios mataram logo quem? O meu mateiro. Fiquei no mato com a colheita, não sabendo o que fazer. Passava as noites num susto, os índios querendo queimar meu caucho (látex) e até chorei. Depois, a gente sem mateiro não vale nada. Nesse ano perdi oito contos. Os patrões perdoaram quatro e o resto trabalhei para pagar. Também é só mais um ano: quatro anos de caucheiro (extrator de borracha) basta!… Depois vendo meu seringal e vou-me embora pro Rio de Janeiro.” Histórias para passar o tempo e vencer a monotonia das águas. Monotonia só quebrada pelo vôo barulhento de um bando de papagaios ou por espetáculos como o pôr e o nascer do sol. Como na última cena registrada no diário de Mário: “E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez crepúsculo em toda abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava, um céu todinho em rosa e ouro, depois lilá e azul, depois negro e encarnado se definindo com furor. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com olhos cheios de lágrimas”.


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