Quem foi ao Centro Cultural São Paulo (CCSP), no final de agosto último, conferir a mostra Ocupação Goma-Laca e os shows Afrobrasilidades em 78 rpm, teve grata surpresa. O álbum que emprestou título às apresentações é o primeiro trabalho autoral do projeto paulistano batizado com o nome da matéria-prima que, fundida à cera de carnaúba, era utilizada na confecção dos discos em 78 rotações por minuto, produzidos no Brasil entre 1902 e 1964. Criado em 2009 pelos jornalistas Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista, o projeto investiga, por meio desses registros, facetas pouco estudadas da música brasileira feita na primeira metade do século 20.
A mostra organizada pelo CCSP exibiu fonogramas, capas de discos, fotos e documentos raros. A gravação do álbum e os shows reuniram nove talentos contemporâneos: o contrabaixista Marcos Paiva, o baterista Sérgio Machado, o percussionista Gabi Guedes e o pianista Hércules Gomes; nos vocais, Karina Buhr, Juçara Marçal, Lucas Santtana, Russo Passapusso e Duani (substituto de Passapusso, que participou do álbum, mas não pôde ir às apresentações). Noneto quente unido em torno de um repertório de 11 temas de matrizes africanas, compostos entre os anos 1920 e 1950 e embalados com modernos arranjos de Letieres Leite, o carismático maestro da Orquestra Rumpilezz, que também tocou flautas e percussão. Na apresentação de Afrobrasilidades em 78 rpm, Evangelista não poupou metáforas para enaltecer os músicos: “Juntos na viagem, intérpretes que se jogaram sem rede de proteção no descobrimento musical. Corrente de criatividade, buscando as origens e atualidades das canções e encontrando juntos novos significados”.
Ao longo dos últimos cinco anos, as pesquisas do Goma-Laca foram concentradas na Discoteca Oneyda Alvarenga, do CCSP, e nos acervos pessoais deixados pelo escritor Mário de Andrade e pelo cantor, compositor e radialista Almirante. Garimpo que resultou na criação de um portal de conteúdo (goma-laca.com) para hospedar dezenas de arquivos digitalizados, artigos, imagens, vídeos e documentos raros. No portal, também é possível baixar o disco gratuitamente e ouvir as gravações originais de temas como Exu, interpretada por Juçara; Guriatã, vertida na voz de Karina; e a hipnótica Batuque. Lançada pela cantora pernambucana Stefana Macedo em 1929, a música ganhou releitura impactante na voz de Passapusso e na condução frenética de Hercules ao piano Fender Rhodes.
Longe de abordar questões, como transe ritualístico, a pesquisa que resultou no primeiro álbum teve caráter de explicitar genealogias musicais. “Sem intenções etnológicas ou religiosas, buscamos um recorte fonográfico, à procura de rastros da música de tradição oral na indústria do disco que acabava de nascer”, explica Biancamaria. Quem testemunhou a alquimia entre os músicos no palco da sala Adoniran Barbosa pode se certificar de que os “rastros” perseguidos pelos dois jornalistas carregam na gênese sincopada um frescor atemporal. Com o batuque irresistível, não tardou para a sala se transformar em pista de dança. Na borda do palco, uma imagem simbólica: fascinada com o som emanado pelo agogô de Letieres, uma menina, de 2 ou 3 anos de idade, manteve os olhos vidrados no instrumento de origem iorubá, um dos mais antigos do samba. Letieres se agachou, ofereceu a ela o agogô, e a criança, sorridente, pôs-se a tocar a baqueta nos dois cones do instrumento. Quem haveria de contestar que em nós a expressão pelo ritmo é algo inato?!
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