Angela Gutierrez: mãos à obra

Segundo o Dicionário Michaelis, a palavra generosidade (singular, feminino) é atributo de quem tem grandeza de alma, caráter nobre, grandioso, sublime. Pode também significar fértil quando se refere à terra. Perguntada sobre qual dessas definições melhor encaixaria no seu perfil pessoal, a empreendedora cultural e empresária Angela Gutierrez não teve dúvida em, rapidamente, descartar todas as outras e escolher a última, que, por coincidência, corresponde ao elemento natural de quem, como ela, nasceu sob o signo de Virgem.

Modéstia à parte, todos os sentidos de generosidade cabem, perfeitamente, em quem vem dedicando a maior parte da sua vida à preservação e difusão de parte importante da cultura brasileira, adquirindo e doando valiosos acervos históricos pessoais ao patrimônio público e cuidando para que eles fiquem democraticamente à disposição da população.
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Essa bonita história começou há cerca de 50 anos com o exemplo do pai engenheiro, um dos fundadores da Construtora Andrade Gutierrez, a quem acompanhava quando criança pelos acampamentos das obras da empresa pelo interior do País. Nessa época, participava das visitas dos seus pais aos cômodos, cozinhas e quintais de casarões antigos para descobrir peças representativas da cultura brasileira, depois compradas, restauradas e abrigadas em locais onde pudessem ser conservadas adequadamente.

Hoje, a também colecionadora, pesquisadora e restauradora de artes Angela Gutierrez está à frente de projetos museológicos, publicações e programas educacionais desenvolvidos pelo Instituto Cultural Flávio Gutierrez, que ela criou em homenagem ao pai (falecido em 1984) e preside desde a fundação, há mais de dez anos. “Minha verdadeira paixão é o Brasil, a memória e a cultura do seu povo. Fico bastante emocionada quando vejo os olhos brilhantes de visitantes dos museus geridos pelo Instituto identificando-se com a história contada pelas peças em exposição e se vendo como parte de tudo aquilo”, disse.

Profissão de fé
Nascida em Belo Horizonte há 58 anos, Angela Gutierrez é representante da sua família no conselho de administração da Andrade Gutierrez, um dos maiores conglomerados empresariais do País. Dedica-se, ainda, à sua fazenda no município de Inhaúma, a pouco mais de 100 quilômetros da capital mineira, onde há uma pequena criação de gado nelore. Mas a propriedade abriga, também, galpões de estocagem e carpintaria para recuperação de peças antigas, depois enviadas aos museus que dirige. Ex-secretária de Cultura do Estado de Minas Gerais, entre outras atividades institucionais, ela hoje é conselheira de organismos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, no Brasil.

Porém, sua verdadeira profissão é tentar, de todas as maneiras possíveis, fortalecer a nossa identidade nacional. Ela começou a pôr essa idéia em prática em 1998, quando doou toda sua coleção particular de 162 oratórios e, aproximadamente, 300 imagens para o Museu do Oratório, instalado na cidade histórica mineira de Ouro Preto e único do gênero no mundo. Entre essas peças estava uma de valor especial: o seu primeiro oratório, presente do pai, que costumava ficar em cima do criado-mudo do seu quarto.

O museu fica num casarão histórico de três andares, onde morou Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), o mais importante escultor barroco do Brasil de todos os tempos. Situado no adro da Igreja do Carmo, o prédio setecentista foi especialmente recuperado e equipado com modernos recursos tecnológicos para receber a coleção. O projeto museográfico contempla um cenário expressivo e acolhedor, tendo como atmosfera o som de músicas barrocas, que valorizam ainda mais os objetos expostos.

O acervo oferece detalhes valiosos da arquitetura, pintura, vestuário e costumes da época em que foram produzidos os oratórios, permitindo uma verdadeira viagem antropológica pela história do Brasil. No subsolo, estão os oratórios que eram levados por tropeiros em suas andanças pelos sertões e garimpos. No térreo, localizam-se os oratórios populares, que mostram como é surpreendente a mão do artista brasileiro. A forte influência da cultura africana e lusitana também está presente em parte do acervo. No andar superior, os oratórios eruditos mostram a opulência do século do ouro. Um dos oratórios foi pintado por Manuel da Costa Ataíde, o grande mestre do período.

Por sua importância, o museu tem sido permanentemente convidado a mostrar o seu acervo em eventos nacionais e internacionais de grande expressão. Ele ainda desenvolve atividades de pesquisa, educação e cultura, como a série Concertos no Museu do Oratório, que teve início em 2001. O projeto traz música erudita de alta qualidade para a população e para os turistas que visitam Ouro Preto. As apresentações, predominantemente de música antiga, com a utilização de instrumentos originais e pouco conhecidos, são realizadas uma vez por mês. Há também o projeto Exposição Itinerante que leva a reserva técnica do museu a cidades do interior de Minas e outros estados, democratizando o acesso ao patrimônio nacional.

Museu de Artes e Ofícios
Em 2005, Angela Gutierrez doou outra parte do seu acervo particular de 2.200 peças para o Museu de Artes e Ofícios (MAO), em Belo Horizonte, criado por ela e inaugurado em 14 de dezembro do mesmo ano. O museu abriga peças que deram origem a várias profissões contemporâneas. Está instalado na estação central do metrô da capital mineira, numa área de 9.000 metros quadrados, em projeto arquitetônico arrojado que integra dois prédios antigos e as plataformas de embarque onde o trem – figura de destaque da cultura mineira – é, ao mesmo tempo, cenário e personagem. Lá estão objetos de grande, médio e pequeno porte, confeccionados em madeira, ferro, couro, cerâmica, desde um alambique até minúsculas formas para confecção de jóias. Ainda podem ser vistos utensílios, ferramentas, máquinas e equipamentos de profissões como barbeiro, carpinteiro, vendedor, cozinheira, dentista, funileiro, mineiro, ourives, queijeiro e tecelã, dentre outras, representando o engenho e a criatividade que construíram o Brasil atual.

“A força do museu está, principalmente, no conjunto do acervo. Cada visitante dá um sentido a cada objeto, a partir de sua vivência, memórias e referências”, explica Angela Gutierrez. A proposta museológica está baseada em linguagem expositiva inovadora, com apoio de uma rica iconografia e tecnologias atuais. Cada grupo de ofícios tem um equipamento multimídia que permite ao visitante, de forma interativa, aprofundar as informações dos painéis expositivos e levar à reflexão sobre relações sociais no trabalho. Aos deficientes visuais é oferecida a leitura em Braille, permitindo sua integração ao mundo das artes.

Educação e ação social
Desde 2008, o MAO abriga um programa educativo e um moderno laboratório de restauro. Esta infra-estrutura permitiu implantar o “Curso de Qualificação para Jovens na Área de Conservação”, projeto apoiado pelo Ministério da Cultura, no qual jovens estudantes de baixa renda da rede pública de ensino passaram a ter oportunidade de se capacitar em conservação de patrimônio material, tendo ainda noções de inglês e informática, entre outras atividades. O curso é inteiramente gratuito e visa tornar os alunos aptos a atuar como assistentes de restauradores profissionais, contando, para isso, com todos os equipamentos necessários, como microscópios, câmeras de vidro para fumigação e banheira para tratar peças móveis em madeiras.

O MAO funciona também como um centro difusor de conhecimento nas áreas museológica, educativa e cultural. São realizados eventos de extensão cultural, como os projetos Ofício da Música e Ofício da Palavra, que todo mês promovem, respectivamente, encontros gratuitos com grandes músicos e escritores brasileiros contemporâneos, atraindo um público diversificado. A equipe do museu ainda oferece suporte técnico a museus menores de diversas cidades mineiras.

O mais novo projeto do Instituto Flávio Gutierrez é o Museu de Sant’Ana, em convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais. Ele abrigará uma coleção de 270 imagens da santa, mãe de Nossa Senhora, de diferentes tamanhos, talhadas em madeira, pedra ou terracota, abrangendo um período que vai do século XVII ao XX. Como as demais coleções, esta também será doada ao patrimônio público e instalada na antiga cadeia pública de Tiradentes, outra importante cidade histórica mineira. Enquanto isso não acontece, ela vem sendo apresentada em exposições no Brasil e no exterior.

Sensibilidade
Quem conhece Angela Gutierrez sabe de seu desprendimento e do esforço que faz para viabilizar seus projetos. Isso é facilmente percebido quando responde à pergunta sobre as razões que a levaram a dispor de acervos particulares muito caros a ela pelo seu valor afetivo, dividindo-os com a população: “Doei peças valiosas ao patrimônio público, mas será que esses objetos da cultura brasileira, na verdade, eram meus?”, questiona.

Em vez de se preocupar com o que dizem a seu respeito, mesmo como elogio, ela prefere destacar as dificuldades que sempre enfrentou para conseguir implantar museus geridos pelo Instituto Flávio Gutierrez. Isso vai desde uma perigosa travessia de rio numa improvisada barcaça feita com pneus, para levar uma enorme mesa antiga “garimpada” no interior, até o difícil convencimento da burocracia oficial sobre a necessidade urgente de reformas e restauração de telhados e outras partes de prédios tombados pelo patrimônio público.

Outra característica da personalidade sensível de Angela Gutierrez é a atenção, simplicidade e espontaneidade com que trata as pessoas com as quais se relaciona. Desde um “mateiro” que dá pistas de objetos a serem adquiridos para os museus, até uma secretária ou um visitante de exposições.

É essa simplicidade que também leva Angela além dos círculos empresariais e sociais da capital mineira. Em uma ocasião, ela refrescou-se do calor, depois de uma exaustiva sessão de fotos para uma campanha popular, molhando-se com roupa e tudo nas fontes de água defronte ao Museu de Artes e Ofícios, em plena Praça da Estação, no centro de BH, junto a alguns meninos de rua. Assim como adora frequentar com os amigos artistas, o Bar do Careca, um “copo sujo” bastante popular no bairro Cachoeirinha, periferia de Belo Horizonte, muito apreciado por suas cervejas geladas e tira-gostos da melhor qualidade. Acrescente-se sua atuação, todos os anos, como jurada do “Comida de Buteco”, um concurso tradicional em BH para escolha dos melhores bares da cidade.

O seu sangue híbrido espanhol/italiano a autoriza a transbordar emoções tipicamente latinas, como entristecer às lágrimas “quando me deparo com as condições precárias da vida de grande parte do povo brasileiro e com o desvirtuamento da natureza boa do ser humano”, confessa. Ou alegrar-se quando vê um sem-número de pessoas beneficiado pelas oportunidades que seu trabalho proporciona. “Sou do mundo, mas sou também do lar”, diz, ao falar sobre sua filha Ana, 33 anos. Da relação com ela, Angela Gutierrez lembra algumas passagens divertidas, como, quando aos 14 anos, pediu para que a mãe ficasse, no mínimo, seis meses sem pronunciar a palavra “oratório”. Ou na vez em que solicitou para a mãe que, assim como as amigas adolescentes, pudesse levar a chave da porta de casa quando saísse à noite. Lembrada que já tinha essa chave, contra-argumentou que era impossível levar no chaveiro uma enorme e pesada peça do século XVIII.

“Embaixadora e, ao mesmo tempo, operária da cultura brasileira.” Essa definição do vice-governador de Minas Gerais, Antônio Anastasia, numa solenidade oficial em que foi homenageada, talvez tenha sido uma das mais felizes sínteses para descrever o peso e a importância de Angela Gutierrez para o nosso patrimônio histórico.


Comentários

2 respostas para “Angela Gutierrez: mãos à obra”

  1. Avatar de Denise Machado
    Denise Machado

    Boa tarde, estamos fazendo um bazar de antiguidades no bairro Sion, sao varias pecas antigas e obras de arte da pintora Leticia Carmen, temos uma peca que certamente vai interessar ao Museu do Oratorio, um Santo Antonio de madeira, do sec. VXIII, vasos antigos e outros. Meu contato e 31 71104765 Denise, grata

    1. Avatar de Ligia Braslauskas
      Ligia Braslauskas

      Obrigada!

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