O ano já está quase acabando, e o diretor Antunes Filho não tinha percebido que havia se passado 60 anos desde que dirigiu sua primeira peça. A estreia aconteceu com Weekend, do inglês Noël Coward, encenada no Teatro Íntimo Nicette Bruno, em 1953. Surpreso com a efeméride, Antunes recebeu a equipe da Brasileiros no Centro de Pesquisas Teatrais, o disputado CPT, que dirige no SESC Consolação, em São Paulo, para uma conversa. Temido pelo rigor que impõe a seus atores, ele, no dia do encontro, se mostrou amável, gentil, doce até quando fez severas críticas ao teatro de hoje. “As pessoas fazem arte dramática para ganhar dinheiro.” Também se declarou nostálgico: “A geração antiga fazia teatro como vida ou morte. E o palco só funciona se for movido pela paixão.” Esse sentimento não lhe falta. Às vésperas de completar 84 anos em 12 de dezembro (ele aparenta bem menos), Antunes está em cartaz em São Paulo com dois espetáculos: o musical Lamartine, cujo texto é dele e está no quarto ano de apresentações, e a releitura contemporânea (e perturbadora) Nossa Cidade, sobre guerra e morte, adaptada da obra do americano Thornton Wilder. Os dois acontecem nas dependências do SESC Consolação.
Na conversa, Antunes discorreu sobre o palco com o entusiasmo de um garoto, revelando vitalidade impressionante ao expressar ideias e falar de suas lembranças, inclusive do tempo em que passou na televisão, fazendo teatro ao vivo. Nessa volta ao passado, declarou ainda que a “culpa” por ter se tornado um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro foi de sua mãe, uma portuguesa analfabeta que “amava tudo aquilo: o palco, os figurinos, as luzes…”
Brasileiros – O senhor trocou o curso de Direito pelo teatro. Como foi isso?
Antunes Filho – Meu pai veio do Lavradio, Portugal, era um homem simples. Ele foi o primeiro da família a vir para o Brasil, fez sua vidinha aqui e mandou dinheiro para que minha mãe viesse com meus dois irmãos. Sou o caçula e só eu nasci no Brasil. Meu pai queria que os filhos se tornassem “doutores”. E no colégio tinha aquele papo de que a gente deveria escolher uma boa profissão, algo que nos desse status. Minha mãe era analfabeta, mas gostava de teatro, e eu a acompanhava todos os domingos, para assistir a uma peça. Ela amava tudo aquilo: o palco, os figurinos, as luzes… Íamos ao Cassino Antártica, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. Lá, vimos Vicente Celestino e Gilda de Abreu em O Ébrio, cuja música se tornou um sucesso, assim como o filme. Eu também gostava daquilo. Para minha mãe, talvez eu funcionasse como um salvo-conduto. Em minha companhia, meu pai não tinha com o que se preocupar (risos).
Brasileiros – Chegou a cursar a faculdade?
A.F. – Não, ficava jogando bilhar na hora dos exames ou perdia a hora. Era cabeçudo. Naquela época, fui trabalhar como office-boy na Prefeitura e lá conheci Osmar Rodrigues Cruz (diretor e crítico teatral), que era escriturário. Ele dirigia um centro acadêmico onde fazia montagens teatrais. Comecei a ir com ele para assistir a uns ensaios, mas logo Osmar me passou uns papéis pequenos. Eu não tinha completado 18 anos. Foi tudo tão súbito na minha vida, dava certo. Na verdade, tive sorte.
Brasileiros – Como foi parar no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC?
A.F. – Um dia, Décio de Almeida Prado foi ver uma apresentação de teatro amador, que apresentávamos aos domingos pela manhã, no Teatro Municipal. Décio fazia parte da crítica teatral respeitada na época e gostou de mim. Veio falar comigo e me deu uma carta de recomendação para o TBC. Sugeriu que eu fosse trabalhar lá como assistente, que ficasse vendo para aprender. Lá, tive contato com outro tipo de cultura teatral.
Brasileiros – Como assim?
A.F. – Não era mais só Martins Pena, Álvares de Azevedo, autores ainda muito em voga do século anterior. O TBC fazia coisas contemporâneas. Assim que entrei, tornei-me assistente de Ziembinski. Trabalhei também com Adolfo Celi, grande encenador. Luciano Salce, Ruggero Jacobbi, Flaminio Bollini Cerri, Gianni Ratto. Fui assistente desses caras todos. Também tive contato com toda aquela geração de atores na sala de ensaios – Cacilda Becker, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Dionisio Azevedo, Cleyde Yáconis, Nydia Licia, Nathalia Timberg, Tereza Rachel, Paulo Autran, Jardel Filho, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas, Ítalo Rossi e muitos outros.
Brasileiros – O TBC foi a sua escola?
A.F. – Foi ali que passei a ver o espetáculo com outra visão, que era possível fazer alquimismos no palco. O TBC era contemporâneo, algo meio à parte da vida, um sonho. Ali, dava para falar da sociedade, da vida, embora fosse um espaço mais burguês. Mas o conhecimento que tive com esses talentos foi extraordinário. Comecei a ganhar consciência e isso, depois, me levou a ser pedagogo em teatro. Aprendi a respeitar a voz. Ziembinski sabia coisas incríveis que nunca imaginei que poderia aprender e, nessa época, vi muitas peças. Gostava de Procópio Ferreira, Jaime Costa… Nunca estudei voz e corpo com professor, aprendi solitariamente. Também via bastante cinema. Para me divertir, via as aventuras de piratas de Errol Flynn, as histórias do Rei Arthur, essas besteiras. Aos domingos, não perdia a Sessão Zig-Zag, no Cine Dom Pedro II, também no centro. O cinema talvez seja a forma de representação que eu mais goste.
Brasileiros – Por quê?
A.F. – Gosto muito do teatro pelo jogo que se estabelece, das coisas incríveis que o homem é capaz de fazer em um espaço tão pequeno, da brincadeira em si. O cinema é uma coisa mais de elevação, de transcendência. Só dirigi um filme, Em Compasso de Espera (1969), que me custou muito trabalho. Para mim, a arte dramática me comove muito, está na essência do ser humano. E o espaço é sempre um desafio. Gosto de brincar com a imaginação do público, do faz de conta, de fazer um caldeirão mágico.
Brasileiros – É possível identificar suas mais importantes influências?
A.F. – Quem mais me impressionou no começo, no sentido de brincar com o ator, de fazer a coisa ficar interessante, foi Ziembinski. Ele era muito romântico, às vezes até ultrapassado, mas tinha o negócio do feiticeiro. Ele era o feiticeiro do palco. Celi se identificava mais com o teatro americano, de ação. Ele era quem mais sabia fazer do palco o diabo. Com ele, tudo tinha razão de ser, uma simbologia incrível. Cada momento do teatro tem o seu ápice interno, um miolo. Nunca falei isso antes, mas toda cena tem um núcleo mágico que vai determinar como ela será. Não dá para fazer uma cena que não tenha algo mágico me prendendo. Tem muitos significados que nem sei detectar exatamente e decodificar no primeiro momento. Com o tempo, decodifico. Quando fiz Macunaíma, só consegui decodificar, perceber a influência e o significado dez anos depois. Fiz a montagem instintivamente. Aliás, meu trabalho tem essa base intuitiva. Mas, para haver intuição, é preciso que haja amor. Hoje, as pessoas fazem arte dramática para ter um lugar ao Sol, para ganhar dinheiro. A geração antiga fazia como vida ou morte. O mundo do teatro está transformado. Passa-se por cima das coisas miúdas da alma humana, que são grandiosas. Isso me choca.
Brasileiros – O senhor não esperava tanta repercussão com Macunaíma?
A.F. – Não, de fato tudo foi muito intuitivo. Eu queria fazer Mário de Andrade, e a gente foi fazendo, em um processo colaborativo com os atores, adaptador, técnica… Trabalhávamos umas dez horas por dia no Theatro São Pedro, na Barra Funda. Invadimos o lugar, não havia grana, comia-se o que fosse possível. Por sorte, nessa época, eu estava na TV Cultura e com os trocados que recebia dava para viver. Ensaiamos naquele palco, e a peça estreou lá.
Brasileiros – O senhor falava da mudança do teatro? O público também mudou?
A.F. – O pior é que essa nova classe média de 36 milhões não está sendo orientada, porque a geração burguesa anterior já estava perdida. Atualmente, só se pensa em comércio, em coisas palpitantes da internet. E essa crise influencia o comportamento da plateia. Essa classe média não tem amparo.
Brasileiros – Quando começou, nos anos 1950, havia uma transição do teatro convencional para um conceito de transformação…
A.F. – Tínhamos um teatro de afirmação. Eu gostava daquilo, mas não tinha muita consciência do que acontecia, queria só fazer teatro. Depois veio o teatro de politização nos anos 1960, pós-golpe militar, que me ensinou o cuidado de não entrar em um ímpeto cego porque isso seria um desastre para as próprias ideologias.
Brasileiros – Havia também uma necessidade de resposta ao regime militar, que caminhava para a ditadura, não?
A.F. – Quando veio o golpe, todo mundo era de esquerda, mas tinha a esquerda radical e a moderada. Qualquer artista é, por natureza, de esquerda porque trabalha com os conflitos humanos. Mas a ala radical é tolice, já se sabe. De certa maneira, a pessoa acabava conduzida, e os espetáculos tinham tendência de crítica à sociedade. Eu estreava Vereda da Salvação, de Jorge de Andrade, quando houve a derrubada de João Goulart. Cleyde Yáconis fazia a protagonista e teve de prestar contas no DEOPS.
Brasileiros – Por causa da peça?
A.F. – Sim, porque os militares matam todo mundo no final. Mesmo com o episódio, nossa lógica era não parar. Nesse período, quis colocar o problema do negro no meu primeiro e único filme, que só seria lançado em 1969, por causa da censura. Sempre gostei da dialética, de uma ideologia idealista, de colocar em cena as contradições. Ao mesmo tempo, o espectador tem de resolver e tirar suas conclusões.
Brasileiros – E a longa passagem pela televisão…
A.F. – Fui pioneiro em teleteatro na América Latina. Cassiano Gabus Mendes estava na direção artística da Tupi e convidou a mim e ao Osmar Rodrigues Cruz, o escriturário, com o propósito de fazermos teatro revezado – eu fazia uma semana, ele outra, com peças de um ato ao vivo. Encenamos Tennessee Williams, Ibsen, Jorge Andrade, só gente de primeira linha. Antes, tinham feito na Tupi só uma peça de Gorki. E na história da TV, não consideram essa minha passagem porque não sou um homem de TV, embora tenha feito trabalhos interessantes ao longo de 20 anos. Fiz um programa de arte na TV que até Volpi (o pintor Alfredo Volpi) participou.
Brasileiros – Como se chamava o programa?
A.F. – TV Arte, era ao vivo. A partir de 1959, levei o programa para a Excelsior, a convite de Álvaro de Moya, que era o diretor de programação. Toda uma turma danada da literatura dramática foi levada para a Tupi e a Excelsior.
Brasileiros – O senhor fez televisão até 1973 e nunca mais voltou. Por quê?
A.F. – Porque TV é uma coisa objetiva, em que se resolve dentro de uma lógica de consumo. Álvaro de Moya foi um cara maravilhoso nesse sentido, quando me chamou para a Excelsior e me deu liberdade para trabalhar. Também aconteceu assim com Nydia Licia, na Cultura, quando ela pegou nomes como Abujamra, Ademar, Fernando Faro e Cassiano, além de mim, para desenvolver projetos de dramaturgia ligada ao teatro. Essas pessoas montaram um teleteatro extraordinário no programa Teatro 2. Fazíamos experiências ótimas. Permitiam-nos trabalhar. Mas na Globo não deu certo, saí logo porque todo mundo era comandado, não havia liberdade. Trabalhava-se com as pernas livres e os braços amarrados.
Brasileiros – O que o motivou a criar o CPT?
A.F. – O CPT nasceu da ideia de criar atores, difundir a mentalidade de se combinar corpo e voz porque isso deve ser uma coisa só no palco. Não dá para fazer a voz que eu quero sem estar com o corpo preparado. Tem de deixar a fisiologia estar de acordo. As relações eletromagnéticas entre pessoas pelo corpo e voz me dão encantamento. Isso certamente me motivou.
Brasileiros – Existe o método Antunes?
A.F. – Sim, mas ele não é estático. Sei ler um ator de costas ou de frente, consigo ver como está o corpo e a voz dele. Em 15 segundos, sou capaz de ver os defeitos e as qualidades de um profissional. Aprendi RPG para aplicar no teatro e dá certo. No teatro, é preciso orientador, não professor. É preciso trabalhar com as próprias coisas, quase um método psiquiátrico.
Brasileiros – O senhor ganhou fama também por seu rigor…
A.F. – Se a pessoa tem talento, mas não tem bagagem cultural, a gente educa, indica livros, filmes, exposições. Essa é a alegria de viver. Mas tem cada um que chega aqui… (risos)
Brasileiros – Já dispensou alguém que depois virou um grande talento?
A.F. – Xi, já errei muito. Gostaria de ficar seis meses observando as pessoas… Às vezes, você olha e não dá nada por alguém, só que esse alguém é um ator extraordinário. E vice-versa. É preciso um cuidado desgraçado. Às vezes, o cara é maluco e, na verdade, essa maluquice é talento. Ou o sujeito é fechado e ele se solta e se desenvolve. Cada um é um, e meu papel é orientar. Por isso, a dramaturgia está uma porcaria no mundo inteiro, não só no Brasil. O que serve para um, não funciona com outro.
Brasileiros – O seu nome é uma grife que atrai o público. O musical Lamartine, nesse sentido, teve o propósito de educar a plateia, de levá-la a descobrir a música de Lamartine Babo?
A.F. – Exatamente. Lamartine é uma grande brincadeira. Gosto muito de música popular brasileira. Tanto que quero fazer também Noel Rosa. O musical é diversão, o brincar de teatro, da caixinha de surpresa. Acho importante saber quem foi essa gente, Lamartine, Ary Barroso, Almirante, Noel Rosa. E as pessoas aprendem.
Brasileiros – Em Nossa Cidade, chama a atenção a presença do ator Mateus Carrieri, cuja carreira havia se desviado para o cinema pornô. Agora, ele rouba a cena na peça. O senhor temeu que resistissem à inclusão dele no espetáculo?
A.F. – De jeito nenhum. Ele já tinha sido aprovado quando fiz Ricardo III, há 20 anos, com Juca Oliveira. Não tem esse problema comigo, ele que sabe da vida dele. Quer fazer a peça, ótimo. Não tem de explicar nada da sua intimidade. Não tenho preconceito se é branco, negro azul, travesti, transexual ou ator pornô. Interessa o resultado. Mas tem alguma coisa: ele é maravilhoso.
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