A semana teve início com a triste notícia da morte de George Duke. Um dos mais importantes multi-instrumentistas e produtores americanos, Duke morreu aos 67 anos, em Los Angeles, nos Estados Unidos, na noite de segunda-feira (5.8.2013). O músico sofria de uma leucemia linfocítica.
Influenciado por músicos como o trompetista Miles Davies, o pianista Les McCann e o vibrafonista Cal Tjader, Duke ingressou, adolescente, no Conservatório de San Francisco, para estudar trombone, mas tornou-se célebre como pianista – aliás, justo dizer, Duke foi um alquimista das teclas, visto que tocava piano elétrico, órgão Hammond, Clavinet e sintetizador, com o mesmo ímpeto de experimentação.
Em 1966, ainda estudante, aos 20 anos, ele lançou seu primeiro álbum, The George Duke Quartet, Presented by the Jazz Workshop. Ganharia repercussão mundial ao lançar, três anos depois, o celebrado álbum The Jean Luc Ponty Experience with the George Duke Trio, lançado em parceria com o violinista francês. No biênio 1969/70, e de 1973 a 1975, Duke integrou também o The Mothers of Invention, a banda de Frank Zappa.
Em sua carreira solo, Duke lançou mais de 30 álbuns – o mais recente deles, Dreamweaver, produzido em 2013. Entre os pontos altos de sua extensa discografia estão The Aura Will Prevail (1975), Don’t Let Go (1978) e Brazilian Love Affair (1979), que explicitou de vez a grande paixão de Duke pela música brasileira. Como produtor, assinou dois importantes trabalhos do trombonista Raul de Souza, Sweet Lucy (1977) e Don’t Ask My Neighbors (1978).
Por telefone, Raul falou à Brasileiros sobre a grande amizade cultivada pelos dois e como foi trabalhar sob o comando de George Duke nestes dois álbuns lançados pela Capitol Records.
Brasileiros – Como você soube da morte do George, Raul?
Raul de Souza – Cheguei ontem, de Paris, e assim que aterrissei em São Paulo dei de cara com a notícia nos jornais. Fiquei chocado e apavorado. Planejei trazer o George para fazer shows por aqui no ano passado, e até chegamos a negociar com empresários e acordar valores, mas houve uma tremenda confusão com a produção de um dos shows, em Curitiba. Fizeram um rolo danado com as datas, e quando fomos confirmar tudo com o George ele já não poderia mais, por questões de agenda. Pretendia trazer ele no começo do próximo ano. Éramos grandes amigos, mas a última notícia que tive dele foi quando toquei, em maio, no festival do Borboun Street, em Paraty. Desci do palco, e estava de saída, quando escutei alguém dizer: “Hey, man!”. Olhei para trás e era o Stanley Clark. Ele fez questão de me procurar para dizer que o George havia mandado um grande abraço para mim. Imagine você…
Brasileiros – E como foi que vocês se conheceram?
R.S. – Nos tornamos amigos desde o dia em que nos conhecemos, em 1974, durante a gravação de um solo de trombone que fiz para a Flora (a cantora Flora Purim, mulher do percussionista Airto Moreira, ambos radicados nos EUA desde os anos 1970). Pouco depois nos reencontramos, durante as gravações do meu primeiro disco americano (o álbum Colours, de 1974). As gravações tiveram convidados mais do que especiais: Cannonball Aderley, no sax alto; Jack DeJohnette, na bateria; Richard Davis, no contrabaixo… Os arranjos foram escritos pelo grande trombonista J.J. Johnson e a produção foi do Airto. Para mim, a maior das glórias começar assim. Foi um grande presente.
Brasileiros – E como era George em ação, na intimidade do estúdio?
R.S. – Ele sabia tudo de composição, de arranjos. Tocava muitos instrumentos e era genial em todo tipo de teclado. Tocava, com a mesma excelência, piano acústico e elétrico; sintetizador; órgão Hammond… O que caísse na mão dele e tivesse tecla ele arrepiava. Mas acho que o que mais nos aproximou foi o fato de ele ter estudado trombone. Foi o primeiro instrumento do George, bem antes do piano. Ele até brincava “Deixa esse negócio de piano comigo e segura o trombone que ele é seu, Raul”.
Brasileiros – Seu segundo disco americano, o primeiro produzido por George, foi lançado três anos depois do antecessor, Colours. O que causou esse hiato?
R.S. – Por quase dois anos, por conta de um acidente, fiquei sem trabalhos e sem gravadora. Quando estava um pouco melhor, fui convidado para tocar com um grupo de Los Angeles formado por músicos de vários países – tinha mexicano, chileno, americano, brasileiro, eram músicos muito bons. O grupo ganhou o nome de Caldeira…
Brasileiros – …desconheço a história desse acidente que você mencionou, o que aconteceu, Raul?
R.S. – Eu estava em Los Angeles, fui atravessar a rua, e um táxi me atropelou. O acidente aconteceu em 1976. Foi foda. Quebrei o fêmur esquerdo e fiquei três meses trancado no hospital. Um belo dia o Sonny Rollins passou por Los Angeles para fazer alguns shows, e tive a boa surpresa de receber uma visita dele. Ele foi a um mercado próximo ao hospital, encheu um pacote enorme de frutas e levou para mim. Apareceu vestindo uma toca, de óculos escuros… Ele era famoso, mas ninguém desconfiou que fosse ele… Parecia um negrão qualquer.
Brasileiros – E quando foi que você, literalmente, voltou a botar a boca no trombone?
R.S. – Depois de três meses de internação voltei para casa, e dei um jeito de ir fazer esse teste com o grupo Caldeira na Capitol Records, que, depois, se tornaria minha companhia. Durante as audições, fiquei observando o pessoal que conferia tudo do lado de fora e notei que havia três caras bem curiosos com o som, dois brancos e um negrão. Ele não tirava os olhos de mim e pensei: “Hum, esse negrão gostou de mim!”. Rolou esse flerte e, depois, o “namoro” foi dos melhores, porque o negrão, Larkin Arnold, acabou se tornando meu produtor executivo. Terminada a gravação, ele disse: “Legal, maravilha! Nos falamos, vamos pensar em algum projeto”.
Brasileiros – Você já havia se recuperado totalmente, estava andando?
R.S. – Não, ainda andava de cadeira de rodas e fazia fisioterapia, uma vez por semana. Pouco depois estava de muleta e podia dirigir carro hidramático (que dispensa a utilização da perna esquerda, por não ter embreagem). Logo que voltei a guiar, estava saindo da porta de um supermercado, avistei um Jaguar, cor de vinho, e pensei “Porra, carro bonito pra caralho!”. Estava atravessando o estacionamento quando esse mesmo Jaguar parou bem na minha frente, e quem o dirigia?! Justamente o negrão que ficou me “paquerando”, Larkin Arnold. Ele deu um grito: “Hey man, bom saber que você está melhor agora!”. Perguntei a ele quando é que sairia minha gravação e ele disse: “Sim! Quero falar contigo sobre nosso projeto. Me telefone, daqui a três meses”. Cheguei em casa, contei a história para minha mulher e fiquei ansioso. Contei os minutos para que passassem logo aqueles 90 dias.
Brasileiros – E como foi o encontro, três meses depois?
R.S. – A Capitol ainda não havia falado com o George sobre a produção do disco. Eu tinha o telefone dele e, confesso, estava louco para convidá-lo. Na mesma época, eu havia mandando fazer o souzabone (um trombone inventado por Raul, com quatro válvulas em vez de três). Imaginei que o instrumento ficaria pronto em tempo para a primeira gravação e expliquei paro Larkin que tinha mandado construir esse novo instrumento… Ele demonstrou interesse, mas fez a pergunta que realmente me importava: “Mas quem será o produtor?”. “George Duke”, não hesitei. Ele topou, na hora.
Brasileiros – Em termos financeiros a parceria com a Capitol foi satisfatória, Raul?
R.S. – Pelo contrário, o contrato foi muito mal feito e fomos roubados pra cacete. Se tivéssemos assinado um contrato no qual eu pudesse ganhar sobre a vendagem dos discos, que fosse um ou dois dólares por cópia, eu estaria feito. Só o primeiro disco (Sweet Lucy, 1977) vendeu mais de 300 mil cópias nos Estados Unidos. Se ganhei 25 mil dólares, foi muito. Aliás, foi um pouco mais, pois recebi também 2.500 dólares de adiantamento das gravações – lembro que o George ganhou 8 mil dólares de luvas. Mas desde o Brasil eu já sabia como era essa história e preferi não falar nada, porque estava recomeçando. Decisão difícil, pois o disco fez sucesso no mundo inteiro. Ficou conhecido até mesmo no Egito.
Brasileiros – O Sweet Lucy tem a participação do trompetista Freddie Hubbard. Vocês eram amigos?
R.S. – Convidei o Freddie para participar das gravações e ele foi super generoso. Nos tornamos grandes amigos. Fred morreu em 2008 (aos 70 anos). Durante décadas, ele usou muita droga. Um desperdício, poderia ter vivido bem mais. Eu vivia falando para ele: “Para com esse negócio, Fred. Você não precisa disso, você é um gênio!”.
Brasileiros – Nos anos 1970, o consumo de drogas químicas, especialmente a cocaína, voltou a crescer no meio do jazz. Você também entrou nessa?
R.S. – Não. Fiz muita besteira nos anos 1950, no Brasil. Agora, nos anos 1970, em Los Angeles, sempre havia aqueles que tinham dinheiro e, lógico, se divertiam com muito pó. Eu curtia apenas minha cervejinha, meu conhaque e meu rum, e ficava numa boa. Não queria saber dessas coisas, não. Aliás, faz 13 anos que não bebo mais nada.
Brasileiros – E como foi trabalhar com George no segundo disco pela Capitol, Don’t Ask My Neighbors (1978)
R.S. – Comecei a escolher os músicos e o Airto me convidou para participar de um show dele, que abriria para o Crusaders (grupo de jazz-funk americano, derivado do Jazz Crusaders). O show foi num festival em San Diego, e acabei convidando o baterista dos Crusaders, Leon “Ndugu” Chancler, para tocar comigo no novo álbum. Eu ouvi muito os discos do Crusaders quando morei no México. Aquela levada funky que eles tinham era bem próxima da ideia de som que eu tinha em mente quando cheguei nos EUA. O trombonista do Crusaders, Wayne Henderson, foi também produtor do Caldeira, o que facilitou a aproximação com o Leon. Wayne dizia para mim: “Você toca muitas notas em curto tempo, mas ao menos toca as notas certas”. Na real, por também ser trombonista, acho que ele ficava meio puto comigo… Logo montamos a banda e a gravação com o George foi uma maravilha. Ele vivia um grande momento. Pelo novo contrato que havia feito com a Capitol estava milionário. Andava de Jaguar, dava Mercedes de presente para a mulher. Tava bonito na foto, o negrão. Eu não estava mal, mas não podia dizer o mesmo. Andava por Los Angeles com meu Cadillac azul conversível, mas gastava um dinheiro sofrido para mantê-lo, pois o carro precisava de óleo até mesmo para levantar a capota, que era mecânica. Foi uma época muito boa de nossas vidas e de nossa amizade. De 1975 até 1983, vivíamos nos encontrando em Hollywood. Depois, eu fui morar em Boston, Nova York, Paris, e nos desencontramos pelo mundo…
Brasileiros – Alguma particularidade dele que você queira revelar?
R.S. – Ele era louco por comida chinesa. Vivia me convidando para ir a esses restaurantes e conversávamos muito – algo que para mim era fundamental para poder praticar o inglês, até porque aprendia com ele o “inglês de negrão” que é outra língua.
Brasileiros – E a paixão dele pela música brasileira?
R.S. – Era louco pela música do Brasil e por nosso País. Tanto é que lançou, em 1979, o álbum Brazilian Love Affair, no qual tive a honra de tocar.
Brasileiros – E você recomendou muitos artistas e álbuns brasileiros para ele ouvir?
R.S. – Que nada! Ele conhecia tudo. Tinha muito mais discos de música brasileira do que eu. George sabia tudo. Mantinha contato com muitos brasileiros e quando vinha para o Brasil dava sempre um jeito de voltar para casa com a mala cheia de discos. Queria entender cada vez mais a concepção harmônica da música brasileira. Ele era muito estudioso e sabia que esta era fonte das mais ricas.
Apaixonado pela obra de George Duke, e também pela música brasileira, o americano Greg Caz, DJ em Nova York, deixou também seu depoimento sobre a perda desse grande artista
George Duke sempre foi, para mim, um símbolo de profissionalismo e qualidade. Lembro que, quando eu era pequeno, via frequentemente seus discos nas lojas e nas casas das pessoas. Quando passei a comprá-los, me deparei com aquele som clássico, futurístico, e ao mesmo tempo cheio daquela atmosfera “sunshine” da Califórnia, onde nasceu e cresceu George. Entre o jazz, o funk, a MPB e o rock, além da soul music da época, cheio de inovações tecnológicas, o som do George dava pé em qualquer ocasião. Fã doente do Brasil e da sua música, ele quase sempre incluía um sambinha em cada novo álbum. Gravou Maria Três Filhos, faixa relativamente obscura do Milton Nascimento, de 1970, em seu disco Faces In Reflection, de 1974. É muito difícil mensurar a perda e descrever toda a felicidade que a obra do George Duke proporcionou em minha vida e nas de muitos da minha geração.”
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