Tinha de ser contra o São Paulo. Ao atingir a marca dos 101 gols pelo Santos com o segundo tento na vitória do alvinegro praiano sobre o clube do Morumbi, Neymar homenageou o ex-centroavante Juary. Correu para a marca do escanteio e dançou em volta da bandeirinha, exatamente como Juary celebrava a cada gol marcado. Nem todos entenderam a comemoração de Neymar durante a semifinal do Campeonato Paulista deste ano. Explica-se: Juary também marcou 101 gols jogando pelo Santos.
A equipe do locutor Oscar Ulisses, da Rádio Globo, localizou Juary, que hoje é técnico do time Sestri Levante, na região de Gênova, na Itália, e o colocou para falar com Neymar logo depois daquele jogo. Juary foi logo agradecendo: “Estou feliz, feliz por você, feliz pelo Santos. É como Pelé sempre diz: ‘Se quiserem fazer algo por mim, que façam em vida’. Por isso, fico feliz pela homenagem”. Neymar respondeu: “É uma honra para mim, está sendo um dia especial, cheguei a 101 gols pelo Santos e esse gol é para você. A comemoração é uma homenagem. Na concentração, a gente vê gols de ídolos antigos do Santos, e você é um deles”. Juary: “Queria eu ter jogado ao lado desse menino”. Neymar respondeu de bate-pronto: “Quem me dera eu ter jogado ao teu lado”.
Juary Jorge dos Santos Filho foi ídolo do Santos no final da década de 1970, época em que choveu craques na Vila Belmiro, acabando com a estiagem que começou pouco depois da saída de Pelé. Com Nilton Batata, Juary e João Paulo, e, de quebra, Pita, Ailton Lyra, Toninho Vieira, Cardim, Célio e Claudinho, a torcida santista tinha uma linha para se lembrar de Dorval, Mengalvio, Coutinho, Pelé e Pepe. O artilheiro era Juary, que fazia muitos gols, justamente contra o São Paulo, o time que levou Neymar aos 101 gols. Assim como o atual ídolo, Juary chegou à Vila Belmiro garoto, aos 14 anos. Veio de São João do Meriti, zona norte do Rio de Janeiro, pelas mãos do pai.
Campeão Paulista pelo Santos em 1978, Juary ganhou outros títulos na Europa: levou duas vezes o Campeonato Português, 1986 e 1988, a Liga dos Campeões da Europa, Mundial Interclubes, a Supercopa da Europa, em 1987, e a Copa de Portugal, de 1988. Tudo pelo Porto. Fez ainda gols para vários clubes italianos (Inter de Milão, Ascoli, Cremonese e Avelino – neste último clube, Juary dividia a vida de boleiro com a de locutor de rádio).
De volta ao Brasil, jogou pela Portuguesa, retornou ao Santos e encerrou a carreira, aos 34 anos, no Motoclube, do Maranhão, no início dos anos 1990. Depois, treinou meninos em escolinhas de futebol até 2005, ano em que foi chamado para treinar categorias de base de clubes italianos.
É na cidade balneária italiana de Sestri Levante (mesmo nome do time que Juary treina atualmente) que o ex-centroavante vive. Foi lá que aconteceu o encontro entre a reportagem da Brasileiros e o craque, que estava feliz: seu clube tinha ganhado o título da Excelência, a quinta divisão do campeonato italiano com seis partidas de antecedência, sendo líder desde a primeira. Casado com Marta, tem seis filhos – cinco moram na Itália e um está no Brasil, em Limeira – e quatro netos – Juary espera agora o nascimento do quinto e, assim, formar um time com filhos e netos. Embora não dê mais voltas na bandeirinha de escanteio, ele mantém o sorriso de moleque. Mas avisa que completa neste mês de junho 53 anos. Confira a seguir os melhores momentos de nosso encontro.
Brasileiros – Você permaneceu no Brasil mais de 20 anos depois de ter parado de jogar. O que o levou de volta à Europa?
Juary – Voltei à Itália, onde deixei uma boa imagem. Sempre pensei que o homem vem acima de tudo. O jogador passa, mas o homem fica. Em 2005, depois do projeto Craques de Sempre, com escolinhas de futebol na periferia de São Paulo, trabalhei em Santa Catarina, no Vale do Itajaí. Em seguida, fui procurado por italianos para treinar times de base, infantil e juniores no Avelino. Depois, fui para Potenza, na Basilicata, e treinei ainda a base do Napoli. Fiz um curso para treinador e comecei com times de adultos na quinta categoria. Fui coordenador técnico do Aversa, região de Capri, e passei a técnico. No Sestri Levante, estou há dois anos.
Brasileiros – Pensa em voltar ao Brasil?
Juary – Sempre penso. Vivo aqui com minha mulher, filhos e netos que me dão muita força, mas tenho saudade. No entanto, só volto se houver uma boa perspectiva de trabalho. Recentemente, a vontade voltou bateu forte, mas já passou.
Brasileiros – O que houve?
Juary – No jogo da semifinal da Copa da Itália, em janeiro de 2011, a bola saiu meio metro. O juiz não deu nada, o cara cruzou e outro fez de cabeça. Perdemos. Cheguei em casa de cabeça baixa e encontrei minha mulher chorando, dizendo que queria voltar para o Brasil. No outro dia, procurei um amigo, Antonio Sivori, que era diretor do clube. Fomos até o presidente, Mario Arioni, e coloquei que o time deveria ser mudado ou eu saía. Ele ponderou, disse que, em 11 anos no clube, nunca havia alterado o time no meio da temporada de um campeonato. Por outro lado, também achava que não era o momento para eu deixar o projeto. Ele, que é conhecido por não manter técnico por mais de um ano, aceitou minha proposta. Eram jogadores bons, mas não remavam na mesma direção. Rescindimos o contrato de 11 jogadores e montamos uma base. Hoje, temos um time tecnicamente até inferior ao do ano passado. Mas são jogadores dignos e unidos em torno dos nossos ideais.
Brasileiros – É um momento tão importante quanto o da época de jogador?
Juary – Se eu tivesse de escolher entre ganhar a Copa dos Campeões como jogador ou a Excelência (quinta divisão) como treinador, preferiria ganhar este campeonato que ganhamos agora. É uma emoção diferente daquele Paulista de 1978, primeiro campeonato que venci na vida e me projetou mundialmente. Mas ganhar um campeonato com seis rodadas antes da final, com 18 pontos à frente, sendo líder do começo ao fim, com o melhor ataque e melhor defesa… Não dá para pesar a emoção de um e de outro, mas agora extravasei mais na conquista desse título do que naquele Campeonato Paulista.
Brasileiros – A primeira vez que você chamou a atenção foi à custa de uma falha de Luiz Pereira, zagueiro do Palmeiras e do Atlético de Madrid?
Juary – É verdade. Despontei em 1977, com 18 anos, quando era reserva do Santos e participei de um torneio no Brasil, em que disputamos com o Atlético de Madrid na final. Luiz Pereira, que era zagueiro do time espanhol, em vez de dominar uma bola recuada para ele, fez graça, levantando o pé e deixando a bola passar em direção ao goleiro. Saí numa baita velocidade, peguei a bola antes e concluí para o gol. Ele só perguntou como eu tinha conseguido. Isso me aproximou muito do Luizão. Fiquei amigo dele, que abriu as portas do Atlético de Madrid, onde fui visitá-lo várias vezes.
Brasileiros – Uma vítima mais constante sua era Valdir Peres, goleiro do São Paulo.
Juary – Com Valdir Peres, que chamávamos de Babão, foi diferente. Eu fazia muitos gols nele e, entre uma jogada e outra, ele me perguntava onde íamos depois do jogo. Depois, a gente saía com Paranhos, Gilberto Sorriso, Teodoro, Chicão e a turma do Santos. Mais tarde, fui jogar com ele na Portuguesa. Aí, ele me disse: “Oba, pelo menos não vai fazer mais gols em mim”. Respondi: “Nos treinos, eu te pego”.
Brasileiros – Por que essa “predileção” por Valdir Peres?
Juary – Acho que ele foi o goleiro que mais tomou gols meus. Coincidência. Nada contra, pelo contrário. Pelé não se dava melhor contra o Corinthians? Contra o São Paulo, eu podia até perder, mas deixava o meu. Só Deus sabe o motivo.
Brasileiros – Você conviveu pouco com Pelé?
Juary – Sim, mas aprendi muito com ele. Tive um prazer enorme de conviver com Edson Arantes do Nascimento e de jogar com Pelé, que são diferentes. Para mim, Pelé é o melhor jogador do mundo de todos os tempos e Edson, um homem extraordinário. Tinha uns 14 anos, estava na Vila Belmiro e sofria com a falta da minha família. Saía da concentração, tentava fugir para a minha casa. Um dia, estava sentado na calçada da Vila, meio triste, Pelé passou e disse: “Está fazendo o que, menino?”. Respondi, chorando: “Estou aqui, né…”. E ele: “Vem cá, vamos dar um volta”. Ele me levou a um orfanato e só disse: “Veja essas crianças”. Logo percebi que a visita não estava programada. As crianças fizeram a maior festa, e Pelé conversava com os meninos, perguntava sobre a vida deles e olhava para mim. Na volta, perguntou: “Falta alguma coisa para você?”. Eu, mais do que depressa, respondi: “Não, não falta nada”. Ele arrematou: “Então, agradece a Deus e segue em frente”.
Brasileiros – Essa visita mudou seu comportamento?
Juary – Não vi mais problemas em morar debaixo da arquibancada da Vila Belmiro, de dividir quarto com o Tiãozinho (centroavante), levar puxões de orelha do seu Olavo (treinador), do seu Antonio Gaia (diretor). Dali em diante, eu fiz uma opção de vida. Perdi muitos amigos, que partiram para a marginalidade. Hoje, sou exemplo para os que sobreviveram. Não fosse o futebol, não sei o que seria de mim.
Brasileiros – Você jogou com Pelé?
Juary – Sim, na despedida dele do Cosmos de Nova York, em 1977. O treinador era Oto Glória, cheio de história. Sabia que ele dormia no banco de reservas? Dormia mesmo. Acordava com o barulho do gol, perguntava quem tinha feito e, se era do Santos, dizia: “Tá bom, manda marcar”. Eu, com 18 anos, fui com o time para a despedida do Pelé no Cosmos. No intervalo, ele entrou no nosso vestiário com a camisa 10 do Cosmos, pois tinha jogado o primeiro tempo no time americano, mas voltaria para o campo com a 10 do Santos. Eu era reserva e não joguei no primeiro tempo. No início do segundo, Oto mandou eu me aquecer. Minhas pernas tremeram, mas entrei em campo. Numa jogada, peguei a bola no meio do campo e Pelé fez um movimento que deu para tocar para ele. Saí, pensando: “Ele vai enfiar a bola para mim e eu estou consagrado. Vou entrar para a história, fazendo gol na despedida do rei”. Mas ele demorou para enfiar a bola e, quando a lançou, eu já estava voltando. Perdi o tempo da bola. Ele me xingou, ele era assim, não gostava de perder nunca. Olhei para ele e disse: “Você tem razão, mas te dei a bola, corri e, com todo o respeito, se você me devolvesse a bola no tempo certo teria feito o gol”. Aí, ele me falou: “E você não viu o Beckenbauer por trás de mim, correndo para lhe tirar a bola?”. Não vi nem a bola, quanto mais Beckenbauer. Ele esperou o alemão passar para depois me entregar a bola. Só que eu estava de frente para o Beckenbauer e não o vi. Pelé, de costas, viu. Só respondi: “Por isso, você é o Pelé e eu sou Juary”. Ele começou a rir. Perdemos de dois a um. Ele fez o gol de falta pelo Cosmos.
Brasileiros – Pelé sempre foi um atleta aplicado, além de gênio.
Juary – Mesmo quando estava de férias no Cosmos, ele treinava diariamente na Vila. Em 1976, seu Formiga marcava nosso treino entre 14 e 15 horas. Folgados, nós chegávamos sempre faltando 15 minutos para as três. Um dia, vimos um cara correndo do outro lado do gramado. Perguntei ao Sabuzinho, que cuidava da gente, quem era aquele cara. “Não está vendo que é o rei?” Era Pelé treinando nas férias. Conversamos com ele: “Pelé, você está quase parando e ainda fica treinando como louco? Vai passear, rapaz”. E ele respondeu: “Tudo que sou e tenho foi graças ao meu físico”. No treino seguinte, chegamos às 14h30. Ele se espantou com a pontualidade e falei: “Se tu, que é o rei, chega às 14h30, porque vamos chegar às 14h45?”. Mesmo assim, a gente acabava o treino, tomava banho, se trocava e Pelé ficava treinando.
Brasileiros – Como se deu a formação dos primeiros meninos da Vila?
Juary – O mérito pela formação dos meninos da Vila, de 1978, foi do Zito. Um mérito dentro da necessidade, já que o clube não tinha dinheiro para contratar. Zito, o presidente Rubens Quintas, seu Olavo e Pepe bancavam a garotada. Vínhamos dos juniores, bem cuidados por seu Olavo. Teve jogador que não se consagrou, como Tiãozinho, que estava na minha frente. Um grande centroavante, chutava com as duas, mas machucou o joelho e eu subi. Um dia, o presidente juntou a direção, seu Antonio Gaia, Rubens Marino, Zito e Formiga na beira do campo e disse que estava em um beco sem saída, pois não tinha dinheiro para contratar. Nós, os juniores, estávamos treinando e Zito disse: “Tem saída, sim. Olha lá a garotada. Vamos promovê-los”. O presidente respondeu: “Traz eles para cima que nós seguramos a bomba”. E deu no que deu.
Brasileiros – Essa moçada jogava com descontração.
Juary – Era só alegria. A gente saía da concentração da Chácara Nicolau Moran (no alto da Serra, em São Bernardo), entrava no ônibus, colocava a fita cassete e ia até o Morumbi cantando. Todo mundo junto. Entrava no vestiário contando piada, todo mundo rindo. No aquecimento e, depois, no túnel, a gente olhava um para o outro, olho no olho, com alegria. Não havia medo nos olhos. Havia respeito e união. Os mais velhos sempre diziam: “Nos meninos ninguém toca”. De vez em quando, tinha uma bronquinha: “Chegou tarde ontem, hein? Olha as noitadas. Estamos de olho em vocês”.
Brasileiros – O time levou o nome de Meninos da Vila, mas havia velhinhos…
Juary – Tinha jogadores experientes que nos davam tranquilidade, como Clodoaldo, Nelsinho Batista, Vitor, Neto, Gilberto Sorriso, Joãozinho, Ailton Lyra… Eles diziam: “Vocês precisam se divertir. Quando vocês não se divertem em campo, a gente perde”. Lyra e Pita eram fenomenais. Eles diziam que eu, Nilton Batata e João Paulo tínhamos de ficar lá na frente. Lyra só falava isso: ‘‘Quando eu ou Pita pegarmos na bola, não quero saber para que lado vocês vão. Só quero que corram. A bola vai encontrar vocês’’. Era um alvoroço total na zaga adversária. Pena que o grupo não ficou muito tempo junto, pois o clube precisava de dinheiro. Não é como hoje que Neymar está permanecendo e fazendo mais história no Santos. Outra safra como aquela demorou para surgir, só em 2002, mais de 20 anos depois. Agora demorou menos. O Santos hoje trabalha bem a categoria de base e os frutos estão aí. I
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