Há tempos, Dominguinhos não viaja mais de avião. Ele não entrega se foi algum susto ou uma turbulência temerosa, diz apenas não querer mais. E como faz para tocar na Europa? Pergunto. “Não vou”, responde com um sorriso tranquilo no rosto. “Ou vou de navio”, acrescenta o mestre sanfoneiro, com toda a simpatia que lhe é peculiar, apesar do visível cansaço. Na noite anterior, o consagrado forrozeiro havia chacoalhado a pacata cidade de Juazeiro, na Bahia, com um arrasta-pé pra lá de arretado.
Nem por ar, nem por mar. Para participar da segunda edição do Festival Internacional da Sanfona, Dominguinhos foi é por terra mesmo. De São Paulo, onde mora atualmente, até Juazeiro, o pernambucano de Garanhuns encarou uma longa estrada de carro. Mas diz que valeu a pena. “É bom encontrar velhos amigos e conhecer outros artistas que estão descobrindo novos horizontes.”
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Entre os antigos companheiros que Dominguinhos reviu estava Mestre Camarão. Além de estradas e sanfonas, estão unidos também por lembranças em comum. Ambos tocaram com o rei do baião, Luiz Gonzaga. Ao que parece, só discordam em um ponto: nas semelhanças e diferenças entre sanfona e acordeom. “É tudo a mesma coisa”, defende Dominguinhos.
Segundo ele, sanfona é apenas um apelido dado por Gonzaga para tornar o instrumento mais popular. Mas Camarão discorda. “O acordeom tem muito mais recursos, claro que são diferentes.” Dominguinhos cede apenas em um detalhe. “A única diferença é o pé de bode”, afirma o sanfoneiro, se referindo à sanfona de oito baixos. Foi com uma dessa que ele começou a tocar, com sete anos de idade. “Já estou com muitos anos de sanfona nas costas”, diz.
Valorizar grandes mestres é um dos objetivos do Festival Internacional da Sanfona. Além de Dominguinhos, Oswaldinho do Acordeon também foi homenageado. Em sua segunda edição, o evento foi realizado em novembro, às margens do Rio São Francisco, alegrando durante vários dias e noites as cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) com diferentes atividades, como espetáculos, oficinas e debates. Tudo gratuito. Show de Hermeto Pascoal e uma exposição sobre Luiz Gonzaga abriram o evento.
Participaram também do festival músicos nacionais e estrangeiros, nomes conhecidos e talentos que começam a despontar no circuito sanfoneiro do Brasil e do mundo. Entre eles, Nando Cordel, os acordeonistas italianos Antonio Spaccarotella, Frank Marocco, Mirco Patarini, o argentino Hector Del Curto, Renato Borghetti, Cicinho de Assis, Toninho Ferragutti e Quinteto de Cordas da Paraíba, Orquestra Sanfônica de Aracaju, Flávio Baião, Waldonys, entre outros.
Abrindo caminhos
Quem teve a ideia do festival foi o compositor, sanfoneiro e cantor Targino Gondim, autor de Esperando na Janela, que fez sucesso na trilha do filme Eu, Tu, Eles, premiada com o Grammy Latino e regravada por Gilberto Gil. Desde então, o músico vem usando as portas abertas pelo sucesso para valorizar não apenas a sanfona, mas a rica cultura popular do Nordeste, abrindo caminho para que novos e velhos talentos possam mostrar também a sua arte.
Nascido em Salgueiro, bem no centro do sertão pernambucano, a 270 km de Juazeiro, Gondim começou cedo a trilhar os caminhos do arrasta-pé. “Minha história com a sanfona começa bem antes de mim.” Em um lugar distante, mas bem perto de Exu – terra natal do rei do baião. O gosto pela sanfona já estava no sangue. “Meu pai era doido por Luiz Gonzaga, comprava todos os discos, como era caminhoneiro, certa vez passando pelo Rio, não aguentou e comprou uma sanfona, mesmo sem saber tocar.” O instrumento não saiu mais do caminhão, recorda.
Conhecido como lançador de talentos, Luiz Gonzaga, na época, queria aumentar o número de sanfoneiros no Brasil. Gondim conta que Luiz Gonzaga deu mais de 300 sanfonas para talentos que cruzaram seu caminho. Um desses jovens talentos apadrinhados por Gonzagão (como também era conhecido) foi Dominguinhos. Aos oito anos, ganhou o apelido “Neném”, além da sanfona e dinheiro para tentar a sorte no Rio. “Quando via que tinha futuro, ele ajudava.”
Das centenas de sanfonas distribuídas pelo velho mestre, reza a lenda que a primeira teria sido dada ao filho adotivo, Eugênio Gonzaga, que por vacilo vendeu o instrumento, provocando um imbróglio familiar. Com a confusão, o jovem deixou o Rio e se mandou de volta para o Nordeste. Procurando comprar outra sanfona para desfazer o mal-entendido, acabou encontrando o pai de Targino, que era conhecido por sempre carregar no carro uma sanfona, mesmo sem saber tocar. “A amizade entre os dois foi instantânea, começaram até a viajar juntos”, lembra Gondim.
“Meu pai ensinava Eugênio a dirigir caminhão e ele ensinava meu pai a tocar sanfona”, diz. A escola era a estrada, e os palcos eram os cabarés e bares país afora. “Faziam a festa.” O encontro dos dois acabou promovendo a jornada iniciática de Gondim na genuína escola do forró. Ainda menino, tinha de ir a todos os shows de Luiz Gonzaga. E não bastava assistir ao mestre tocar. “Depois, ainda precisava ir cumprimentar ‘Seu Luiz’.”
Foi por obrigação, na zabumba, no triângulo ou no recorreco, acompanhando o pai, que tudo começou para Targino Gondim. Mas aos 12 anos, suas dúvidas se dissiparam quando escutou a clássica Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Foi fisgado pela sonoridade forrozeira. Logo depois, abraçou a sanfona – e seu destino – e não largou mais.
Sanfoneira arretada
O reduto masculino da sanfona está abalado. Nessa edição do festival, quem roubou a cena foi uma jovem paraibana arretada de 24 anos – que nem na programação estava. Entrou só para dar uma canja e arrebatou corações de marmanjos de todas as nacionalidades e idades que circulavam por Juazeiro durante o festival. Jovem e talentosa, Luciane Alvez, está invadindo um território tradicionalmente masculino. “Quando chego, não botam muita fé, perguntam se sou a dançarina”, conta.
Multi-instrumentista, Lucy – nome que carrega em sua sanfona – toca com a família no grupo paraibano de forró Clã Brasil e também arregaça no bandolim com a banda de chorinho Chourisso. Eclética, a jovem dança conforme o estilo. Do rock ao reggae, mas o que gosta mesmo é de forró, afirma. As apresentações são mais frequentes em Recife, mas já circulou com seus grupos por São Paulo e Rio.
Lucy conta com orgulho que já tocou com nomes como Dominguinhos e Sivuca. Com motivos de sobra, se diz realizada. “O que vier agora é lucro”, diz a sanfoneira. Brincadeiras à parte, ela sabe que para avançar na carreira musical terá de deixar a sua tão querida Paraíba. Embora celeiro de grandes talentos, a terra natal de muitos mestres da cultura popular nordestina, por ironia, carece de espaço e infraestrutura para seus artistas locais.
Com um brilho peculiar nos olhos e a firmeza de quem sabe o que quer, a jovem forrozeira não estremece. Com seis CDs e um DVD no currículo, revela que se prepara para novos horizontes, o voo solo e outras parcerias. “Quem sabe Yamandu Costa”, diz. Enquanto espera, prossegue cantando, tocando e embalando sonhos e desejos pelos rincões paraibanos.
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