Apaixonado pelo Brasil

Raras vezes na minha já longa caminhada pelo jornalismo, que neste mês de outubro completa 45 anos, tive a oportunidade de ouvir um depoimento tão contundente como este do Elifas Andreato, tamanha sua paixão pelo Brasil e pelo seu trabalho, razão da sua permanente luta contra o desânimo e o alcoolismo.

Elifas é, acima de tudo, um cidadão brasileiro. Fez da terra onde nasceu sua profissão de fé na vida, que nenhuma dificuldade, seja de grana ou de saúde, como as que está enfrentando no momento, é capaz de abatê-lo. Dono de espantosa franqueza, ele fala de conquistas e derrotas com o mesmo entusiasmo, sem deixar de sorrir em nenhum momento, certo de que amanhã será um dia melhor.
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Vale a pena conhecer a sua trajetória. Do menino criado na roça, que começou a trabalhar aos oito anos e nunca foi à escola, ao adolescente torneiro-mecânico numa fábrica de fósforos em São Paulo. Do jovem prodígio que, em pouco tempo, se tornou um dos maiores nomes das nossas artes gráficas, valioso combatente da cultura brasileira, ao senhor de cabelos brancos que resiste à frente do Almanaque Brasil.

Por isso, peço ao leitor um pouco de paciência. A caminhada dele é longa, mas vale ir até o final desta entrevista, para conhecer melhor este “pé vermelho”, nascido em Rolândia, no norte do Paraná. Jeito e esperança de menino ainda, aos 63 anos, ele é o dono das mais belas capas de discos, livros e revistas já feitas no país, entre suas muitas outras obras.

Com a ajuda dos dois filhos, Bento e Laura, à frente de uma equipe de doze jovens, ele hoje toca a revista Almanaque Brasil, que é distribuída há mais de dez anos aos passageiros da TAM, graças a uma parceria que Elifas fez no início com o comandante Rolim Amaro – outro destes valentes brasileiros que não surgem todo dia e fazem muita falta quando vão embora.

Defender a arte e a cultura brasileiras pode não fazer bem para a saúde nem para o bolso, como é possível constatar na entrevista, mas o exemplo de Elifas Andreato é a prova vivida de que vale a pena resistir.

Brasileiros – Como é que está a vida, Elifas?
Elifas Andreato – Bom, você sabe perfeitamente dessa nossa vocação de lutar pela construção da pátria livre sonhada por todos. Na nossa geração, nós batalhamos muito por isso. E eu acho que a gente acabou ganhando essa batalha. Mas a guerra ainda está distante do final. O momento atual, Kotscho, é de extrema dificuldade. Ao me dedicar a divulgar a nossa arte, a nossa identidade cultural, eu não queria restringir isso a um círculo ao qual pertenço, que me deu muito apoio e me enriqueceu como profissional, como ser humano. Quando eu digo defender a nossa identidade cultural, essa cultura multifacetada riquíssima, foi uma opção que, no princípio, parecia algo fácil de realizar. Imaginava que, assim como eu, muitos empresários, muitos publicitários apoiariam esse projeto, mas isso não aconteceu.

Brasileiros – Vamos localizar esse momento que você, no auge de uma bem-sucedida carreira, resolveu se dedicar a resgatar a nossa identidade cultural e investir nisso. Quando, como e por que isso aconteceu?
E.A. – Em 1989, eu estava trabalhando no SBT, dirigindo o programa do Rolando Boldrin, quando foi feita uma pesquisa por uma agência de propaganda, que eu não me lembro qual é. Ela revelava que 73% dos jovens brasileiros gostariam de ter nascido em outro lugar. Isso me causou um enorme constrangimento, um desgosto tremendo, porque eu não podia imaginar tamanha quantidade de jovens desejando ter nascido ou desejando ir viver em um outro país. Quando vi aquilo, eu pensei numa campanha cívica no próprio SBT. Era uma coisa que começou com o nome de Acredite no Brasil. Depois, o Boldrin acabou utilizando isso para uma campanha do Bamerindus. Era uma série de pequenos filmes que mostravam a importância de recuperarmos a autoestima e os símbolos nacionais. Mas, infelizmente, naquele momento eu estava no lugar errado na hora errada. Estava ali tentando fazer um programa infantil para discutir meio ambiente, ecologia, valores humanos, etc., numa televisão que contemplava a estupidez, a programação mais ordinária que havia então na televisão brasileira.

Brasileiros – Você chegou a falar com o Silvio Santos sobre isso?
E.A. – Com o Silvio Santos não havia possibilidade de conversa. Quando eu fui para lá, tinha feito um especial na Globo sobre os direitos das crianças, junto com o Toquinho. Escrevi uma fábula chamada Canção de todas as crianças, em que traduzi os dez princípios da Carta dos Direitos das Crianças da ONU para letras de música, e o Toquinho fez as melodias. Nós recebemos da ONU uma carta de reconhecimento por esse trabalho. Depois que o programa foi ao ar na Globo, o Silvio Santos me chamou para fazer o mesmo no SBT. Os personagens do meu programa estavam preocupados em preservar o meio ambiente, em valorizar a infância, prevenir os acidentes domésticos, todas essas questões que hoje estão aí. Mas naquele tempo não havia a menor possibilidade de fazer isso no SBT. Havia uma espécie de suborno branco montado para facilitar a manutenção desse esquema podre, perverso contra a criança.

Brasileiros – Como era esse programa, chegou a ir ao ar?
E.A. – O programa tinha o Gargalhada, a Corbélia e o Charlito, que era um mímico, homenagem ao Chaplin, um vagabundo grã-fino. Foi a ferramenta mais eficiente do programa. Mas comigo na direção, só durou três meses, eu não suportei… Depois disso, o Silvio Santos cometeu uma porrada de erros, e o mais grave foi que se ganhava dinheiro com merchandising. Eu proibia no programa anúncio que fizesse mal à criança, porque isso ia contra aquilo que havia sido combinado inicialmente com o próprio dono da emissora.

Brasileiros – A gente pode dizer que esse programa que durou só três meses na sua mão, vinte anos atrás, foi o embrião do Almanaque Brasil, a sua obra mais permanente em defesa da cultura e da arte brasileiras? Que balanço você faz desses 125 números da revista?
E.A. – Pode dizer, sim, começou lá. Do meu ponto de vista, faço um balanço absolutamente positivo. Consigo separar hoje todas as dificuldades que a gente enfrenta com a falta de anúncios, com a falta de recursos, diante da missão a que nos propomos. Precisamos encontrar para o Almanaque uma gaveta onde ele se encaixe, porque é uma publicação tão diferenciada no mercado editorial brasileiro que os mídias não sabem direito onde está. Nós lidamos com isso há mais de dez anos e nesse tempo todo eu venho investindo tudo o que eu tinha, tudo o que eu podia vender. Os meus desenhos, eu vendi a preço de banana, vendi para preservar o Almanaque, e por quê? Sempre vi no Almanaque a ferramenta que eu visceralmente preciso para defender o meu País, para defender as glórias, a sua cultura rica, os seus grandes feitos, os seus grandes personagens, embora me dê uma baita dor de cabeça e, muitas vezes, noites de insônia. São dívidas acumuladas pela incompreensão de muita gente, especialmente de empresários, que podiam ficar um pouco mais sensibilizados com esse empenho e a repercussão que a revista já tem. Mas, a cada edição impressa, sinto um baita de um orgulho de estar fazendo isso.

Brasileiros – Cada edição é um parto…
E.A. – É um parto, mas é maravilhoso. Dá uma satisfação tão grande você ver, apesar de tudo, que tem a seu lado uma moçada que está aí começando, batalhando com a gente… Eu consegui implantar esse espírito na molecada que trabalha comigo, que realiza comigo esse sonho mensal, esse parto mensal que é o Almanaque Brasil. Tive a sorte de conseguir juntar não apenas os meus filhos, o Bento e Laura, que naturalmente estariam compartilhando comigo esse sonho, mas os meninos todos que estão aqui, todos muito jovens. E, o que é mais gratificante, são jovens que compartilham comigo o mesmo ideal, que é protegermos o Brasil. Qual é o método que nós adotamos? Nós adotamos o método de enaltecê-lo, de buscar na história aquilo tudo que há de bom, de exemplos com ensinamentos. Na verdade, a essência desse nosso empenho está na crença de que o exemplo é o melhor ensinamento. Temos na história brasileira exemplos extraordinários que mensalmente nos ensinam e passamos isso para os nossos leitores. Assim conseguimos conquistar o nosso prestígio, mas nós sobrevivemos hoje ainda com grandes dificuldades, dependentes de instituições que são periodicamente mudadas, ligadas a governos e tal, o que nos deixa fragilizados. Trabalhamos com a certeza de que nós estamos fazendo o que tem de ser feito, eu acho que esse trabalho é necessário.

Brasileiros – Mas isso tem um custo pessoal alto também. Você é um cara apaixonado pelo que faz, apaixonado pelo Brasil, como é que fica a tua vida?
E.A. – O custo é alto, aí eu teria de admitir… Eu sofro muito, porque dói saber que você faz parte de um grupo muito pequeno de brasileiros que acreditam nesses ideais, que acreditam na possibilidade de um futuro melhor para o País e que é preciso batalhar pela educação.

Brasileiros – Além de você e da tua equipe, quem mais no Brasil faz parte desse pequeno grupo?
E.A. – São muito poucos… Que batalham da mesma maneira tem vocês da revista Brasileiros, tem o Museu da Pessoa, instituições assim como o “0 a 6”, que foi um instituto que eu ajudei a fundar para assistir crianças carentes de zero a 6 anos. Tem o Antonio Nóbrega, outro grande batalhador, o Chico César, que agora está lá como secretário de Cultura na cidade dele (João Pessoa), tem o próprio Rolando Boldrin, que luta com enorme dificuldade para preservar o seu programa. É aquela história, você diz assim: “Eu não estou sozinho, mas o meu exército é muito pequeno…”. E fica fragilizado porque o poder do dinheiro está nas mãos de outros grupos, alguns mais competentes do que eu para lidar com isso. Admito que muitas vezes a minha paixão pelo Brasil acaba suplantando a visão prática e comercial do negócio. Esse meu sofrimento custa muito mensalmente porque é doloroso fazer o trabalho que a gente faz aqui e, de repente, chega na hora do fechamento você não tem os anúncios suficientes para pagar a conta e você tem de pagar os salários das pessoas. Também vivo disso aqui. Não tenho bens, não acumulei riquezas, passei a minha vida toda praticando o meu ofício dessa maneira.

Brasileiros – Quer dizer que ser apaixonado pelo Brasil e defender a nossa cultura não faz bem para a saúde?
E.A. – Não faz, não faz bem para a saúde, não. Mas faz bem para a alma… Eu sou um brasileiro que, quando o corpo sofre muito, padece porque não dorme direito, muitas vezes acaba caindo ou recaindo no alcoolismo, no estresse, às vezes até no que eu chamaria de desânimo. Às vezes, eu me pego desanimado, mas essa coisa ruim de repente acaba, a esperança sempre me alcança, é uma coisa que me acompanha desde menino. A tal da esperança é uma companheira fiel. Nos piores momentos que eu vivo, ainda hoje, já quase velho, é ela quem está sempre me puxando. Eu fico falando para mim mesmo: “Você dedicou toda a sua vida, todo o seu trabalho foi dedicado a contar a história do seu povo, você teve a disposição de lutar ou na prancheta ou criando coisas ou desenhando, registrou esse tempo da sua vida e dedicou seu tempo a registrar a história do seu povo, da sua gente… Então por que diabo agora esse desânimo?” Levanta, porra, vamos à luta! Se eu fosse um homem religioso, chamaria isso de “uma benção”, algo divino, que supera todas as minhas dificuldades.

Brasileiros – Que dificuldades você enfrenta para editar a revista, além da falta de anúncios?
E.A. – São as porras das certidões que você não consegue tirar porque não pagou um imposto, ou não conseguiu pagar uma conta em dia. Quer dizer, tudo é montado para que você seja um eterno refém desse poder estabelecido, que cria regras extremamente rígidas para certas coisas e nada para as coisas fundamentais para a nossa identidade cultural, para a simplificação da vida das pessoas dispostas a trabalhar pelo bem do país, pela construção de um país melhor. Aí você encontra um número enorme de dificuldades, tem o seu CPF cancelado, não tem mais conta em banco. Você perde muito tempo para enfrentar as burocracias que atrasam de maneira absurda uma certidão que precisa para entrar na Lei Rouanet e viabilizar um projeto do qual depende para pagar o salário do mês que vem. Isso a gente enfrenta cotidianamente, não é uma coisa que acontece de vez em quando.

Brasileiros – Algumas semanas atrás, fomos entrevistar o vice-presidente José Alencar, que é um outro grande brasileiro, e aí ele começou a falar da infância dele em Minas, para explicar onde buscava forças para enfrentar o câncer. Parece que com você acontece a mesma coisa em relação à esperança…
E.A. – …Que eu trago lá de trás. Eu era o filho mais velho de uma família de seis irmãos, de um pai alcoólatra ausente e de uma mãe desesperada. Com oito anos, eu já trabalhava na roça num vilarejo chamado Maria Helena, perto de Cruzeiro d’Oeste, num sítio aberto pelo meu avô Luca. Eu nasci em Rolândia, mas meu pai era um pouco nômade e andava por aqueles fundões do norte do Paraná com um caminhão puxando toras de madeira, ajudava a derrubar árvores, montar serrarias. Até ali eu não tinha muita ideia do que estava acontecendo. Só sabia que eu era muito pobre e que a vida era muito difícil. Não havia possibilidade de estudar. Quando meu pai adoeceu, então nós voltamos para Rolândia.

Brasileiros – Que idade você tinha quando a família se mudou para São Paulo após a doença do teu pai e o que você veio fazer aqui?
E.A. – Fui trabalhar na Fiat Lux, uma fábrica de fósforos na Vila Anastácia. Quando cheguei aqui num trem de terceira, com os meus irmãos, eu estava com 12 para 13 anos. Desde pequeno, eu tinha certa habilidade manual para fazer pequenas esculturas. A gente morava num cortiço na Vila Anastácia, ao lado de uma fábrica chamada Sofunge, que jogava aquele gesso da fundição na beira de um riacho perto de casa. Eu pegava aquele gesso e esculpia, criava então umas coisinhas da minha cabeça.

Brasileiros – Foi assim que você começou na vida artística?
E.A. – Não, não, antes disso eu trabalhei vários anos como torneiro mecânico na Fiat Lux. Lá no cortiço, morava um húngaro, o senhor Sabas, que trabalhava na Fiat Lux e era mestre de uma escola para mecânicos dentro da fábrica. Eram doze meninos aprendizes estudando com ele, cada um aprendia uma coisa lá. Eu fui aprender a ser torneiro mecânico, queria aprender uma profissão, até machuquei alguns dedos… Foi o meu primeiro emprego com carteira assinada como operário. Como eu tinha essa habilidade com as mãos, eu já comecei do contra… Vou explicar: os operários tinham um jornalzinho feito no mimeógrafo ainda, e eu fazia a minha chargezinha lá. Um dia, um subgerente novo, o doutor Paulo, chegou na fábrica para inaugurar um refeitório e começou a procurar o desenhista do jornalzinho. Os operários me esconderam porque achavam que o homem ia me mandar embora. É que eu fazia charges com críticas à fábrica… Mas depois ficaram sabendo que o doutor Paulo não queria saber do desenhista para mandar embora. Ele queria chamar o desenhista para decorar o salão do refeitório novo porque aos sábados pretendia promover bailes para os funcionários.

Brasileiros – Você lembra dos teus primeiros desenhos? Em que ano foi isso?
E.A. – Aí nós estamos em 1963, véspera do golpe, mas eu não sabia nada de política. Nem de desenho de decoração… Fui lá fazer os desenhos que me pediram sem nenhuma noção de nada. Nessa época, eu estava aprendendo a ler em um curso de alfabetização para adultos na Sofunge, à noite. Então, minha cabeça começou a abrir… Fazia uns painéis de madeira, esticava papel kraft com grampeador, metia tinta branca e comecei a pintar quadros para decorar o salão para os bailes. Como eu estava começando a ler, começando a conhecer coisas, passei a criar temas para os bailes, os bailes passaram a ser temáticos, veja que chique… Por exemplo, o primeiro conto que eu li me foi dado por um marginal que vivia com a gente na Vila Anastácia, que era um bairro barra pesada. Ele era conhecido por Caipirinha e, quando descobriu que eu já sabia ler, me deu Noites Brancas, de Dostoiévski. Meu primeiro grande baile pintado foi em cima de Noites Brancas. Tem aquela cena à beira do parapeito para se suicidar… Criei um mundo com desenhos toscos, mas o pessoal da fábrica gostou. Virei ídolo, comecei a pintar toda semana, a decorar esses salões com grandes painéis. Fiz Uma noite no Rio, com barracos de favela nesses painéis e cruzei o salão todo com varais de roupas…

Brasileiros – Você já conhecia o Rio?
E.A. – Que nada, eu só tinha 15 anos…

Brasileiros – E quem foi que descobriu tua arte lá na fábrica? Como é que você passou de metalúrgico a artista plástico?
E.A. – Começou a vir gente para ver os painéis e, para o meu espanto, uma noite chegou a Marli Medalha, irmã da Marília Medalha, a grande cantora, que era crítica de arte do Diário da Noite. No meu tempo vago, eu pintava uns quadros em que retratava a minha infância pobre e tal. Ela ficou tão impressionada… Tinha um quadrão grande de um menino chorando numa favela. Marli me deu meia página no Diário da Noite e logo me convidaram para dar entrevista na televisão. Virei menino prodígio, mas aí eu não acreditei nessa história, é engraçado… Não é possível que eu seja tudo isso que estão falando, não. Pensei comigo: vou continuar quietinho no meu canto aqui na fábrica porque já queriam expor meu trabalho, me levar para não sei aonde…

Brasileiros – Em 1964, quando veio o golpe militar, você ainda trabalhava na fábrica. Você era ligado ao sindicato, a algum partido?
E.A. – Nada, nada. Nem tinha consciência de nada. A oportunidade que surgiu ali de pintar, de desenhar e fazer aquelas coisas todas, foi apenas uma possibilidade que eu via, se eu me aplicasse bem, de melhorar a vida de minha mãe e de meus irmãos. Quando você é pobre, não pode perder as chances que a vida dá. Em 1964, a fábrica completou 50 anos no Brasil, os ingleses vieram para cá, fiz um cenário bonito para a festa com grandes caixas de fósforos. Nós montamos um grupo de teatro formado por operários, que era comandado pelo Isaac, sujeito alto e magro, um grande palhaço. A fábrica tinha muita mulher, umas 800 mulheres funcionárias, e uma oficina mecânica de manutenção, que era onde eu trabalhava. Foi ali que eu conheci a minha atual mulher, a Cleide. Aos 14, 15 anos, a gente já namorava. Casamos cada um para seu lado com outras pessoas, nos separamos e nos reencontramos 23 anos depois. A minha atual mulher foi a minha primeira namorada…

Brasileiros – Como você fez essa passagem de menino prodígio na fábrica para a Editora Abril, onde logo ficou famoso?
E.A. – Os ingleses, quando viram o cenário, ficaram impressionados com esse menino de 15 anos, não acreditaram, falaram: “Esse menino não pode ficar aqui, ele tem de estudar arte”. E deram um jeito lá de eu ser demitido, entre aspas, para ter uma indenização e ir para uma escola de arte. Foram muito generosos comigo. Mas o meu pai bebeu essa grana toda da indenização, e eu fiquei desempregado. Fui atrás de pequenos estúdios, fui desenhar varejão no estúdio do Pingo, essas coisas de liquidificador, geladeira. Tudo era desenhado para virar clichê e ir para o jornal. Foi então que, no início de 1967, quando estava trabalhando numa agência chamada Bergamasco Publicidade, que ficava ali na 7 de Abril, perto dos Diários Associados, conheci o Hélio Ribeiro, dono da Rádio Piratininga, o grande locutor da época.
Ele queria fazer uma propaganda da rádio e encomendou para essa agencia aí. Criei um outdoor que foi visto pelo Atílio Basquera, diretor de arte da Abril, a grande empresa de comunicação em ascensão naquela época. O Atílio mandou procurar a pessoa que tinha feito aquele outdoor. Olha como a sorte sempre me ajuda, como muita gente me ajudou na vida… Fui chamado por um assistente do Atílio e, em 1967, eu entrei na Abril como estagiário, direto para a revista Claudia, onde tinha um time respeitável.

Brasileiros – E pouco tempo depois você participaria da criação do projeto gráfico da Veja, que seria lançada no ano seguinte. Como foi isto?
E.A. – Participei ativamente com o Fortuna da criação de todo o projeto. Eu fiz uma carreira na Abril impressionante, sem sacanear ninguém. Porque é aquela história, eu volto a dizer: surgiu a oportunidade, tem de aproveitar. Em casa, eu não tinha quarto para dormir, não tinha mesa, não tinha papel, não tinha nada. Quando eu fui para a Abril, o mundo virou uma coisa gigantesca, era aquela fartura… Tinha papel para caramba, tinha tinta, tinha revista, gente camarada que me dava dicas. Então, o que eu fazia? Ficava desenhando o tempo todo, mesmo depois que terminava o meu expediente como estagiário. Fazia todo tipo de desenho. Amontoei desenho para caramba, estudei tudo o que eu pude, me agarrei naquilo, porque eu percebi que era a minha chance. Meu grande sonho era comprar uma casa para a minha mãe. Aí a esperança vem junto de novo, eu era pouco mais do que um estagiário. Um sujeitinho ignorante como eu, quase analfabeto, passou a conviver com Ignácio de Loyola Brandão, João Antonio, Mino Carta, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, gente da mais alta competência e sabedoria.

Brasileiros – Essa foi uma época de grande criatividade em todas as áreas, não só no jornalismo, mas também no cinema, no teatro, na música. Depois é que fechou tudo com o AI-5.
E.A. – A Veja começa em 1968. Aí, quando o menino já informado toma conhecimento do que estava acontecendo com o País, mais uma vez o Brasil, eu falei: “Não quero esse Brasil para mim, não, cara. O Brasil para mim é outro, ele é livre, não pode viver sob esse signo de violência, sob esse fogo, sob essa maldade, sob essa perversidade”. Com a fotógrafa Iolanda Huzak, minha ex-mulher, mãe dos meus filhos, nós fomos fazer o Jornal Libertação, que era da Ação Popular, uma dissidência do PC do B. Nós fazíamos esse jornal clandestinamente. Ainda mantinha meu emprego na Abril, mas o meu negócio já era lutar contra a ditadura.

Brasileiros – Só então caiu a ficha sobre o que estava acontecendo no País…
E.A. – A ficha caiu e eu resolvi junto com muita gente lutar para mudar isso. Foi uma loucura porque eu, pobre como fui, demorei para conseguir ter algum dinheiro e, de uma hora para outra, quando fui colocado contra a parede, um dia renunciei à grana. Deixei o salário de diretor de arte da Abril Cultural, depois de ter feito Claudia, Realidade, Quatro Rodas, Veja, Placar, a MPB Compositores, a história da música popular brasileira. Em 1973, largaria tudo para ficar apenas no semanário Opinião, do Fernando Gasparian.

Brasileiros – Nessa época, você já devia estar ganhando um salário respeitável.
E.A. – Ganhava. Pô, quando eu me tornei chefe de arte, com um ano e meio de Abril, fui para um grupo de publicações femininas, onde caiu o Bom Apetite, que sustentou a Veja no começo. Os fascículos vendiam um milhão de exemplares por semana. De tão importante que era para a Abril, o Bom Apetite, o seu Victor botou a mulher dele, dona Silvana, como chefe de redação. Como diretor de arte, eu passei a conviver com a família Civita. O seu Victor me adotou, me dava conselhos. Devo muito a ele por um ensinamento que me deu: “Cara, não se iluda com conversa de jornalista, de diretor de arte, de que tudo acaba na prancheta ou na máquina de escrever. Isso é bobagem. Vai começar lá em baixo, lá na gráfica, é lá que você aprende o teu ofício.” Eu moleque ainda, um homem dessa importância dizendo isso para mim, certamente ele está me fazendo um bem, pensei. Isso foi a minha loteria. Na coleção História da Música Popular Brasileira, eu fiz um trabalho gráfico revolucionário. Até hoje, eu olho aquilo e acho bacana, ainda é um negócio muito moderno, e isso me abriu todas as portas.

Brasileiros – Essa coleção contando a história da música popular brasileira marcou mesmo a tua carreira para o resto da vida…
E.A. – Eu era muito xereta, me metia em tudo. Tinha de acompanhar a repórter para vasculhar o arquivo pessoal dos compositores que era o meu material para ilustrar a coleção. Então o que eu fazia? Participava das entrevistas, passei a conhecer essa gente toda da música. E vou dizer o que mais: os velhinhos todos já estavam esquecidos. Em 1970, ninguém mais se lembrava do Nelson Cavaquinho, do Cartola, do Lupicínio, do Assis Valente, do Ataulfo Alves. De novo, o que aconteceu? Eu tinha verdadeira paixão por esse trabalho. E aí de novo o Brasil na minha vida… Passei a ser o cicerone deles. Eles vinham lançar o fascículo aqui em São Paulo e era eu que andava com eles, tinha o maior orgulho de chegar ao Jogral com o Lupicínio Rodrigues, com o Cartola ou com o Nelson Cavaquinho.

Brasileiros – Como foi a experiência do Opinião, um jornal de resistência à ditadura, que você ajudou a fazer nos fins de semana, ainda permanecendo um bom tempo na Abril, enquanto deixaram.
E.A. – Eu fundei o Opinião junto com o Fernando Gasparian, o Raimundo Pereira e o Tonico Ferreira, em 1970. O jornal ficava no Rio e eu ainda trabalhava na Abril, em São Paulo. Durante três anos, eu não dormia às sextas-feiras. Saía da Abril, pegava um avião quando dava, quando não dava ia de ônibus, e a gente fechava o jornal no fim de semana. Juntei uns amigos voluntários, como o Cássio Loredano, o Chico Caruso, o Angeli, o Laerte, essa corja toda, cada um com uma calça jeans e duas camisetas Hering, dormíamos no chão. Era toda uma nova safra que surgia. Todos eles fizeram parte desse processo, assim como na música surgiu uma geração da qual fiz parte, como o Chico, o Caetano, o Gil.

Brasileiros – Você foi cúmplice dessa turma toda…
E.A. – Eu fui indo junto. Assim também aconteceu com as capas de livros, nos cartazes e cenários de teatro. A minha geração combatente antiditadura estava na literatura, na música, no teatro, estava em toda parte na cultura brasileira – Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Othon Bastos, Antonio Fagundes, Antonio Abujamra, Flavio Rangel… No livro Impressões, da Editora Globo, os textos deles a meu respeito estão todos lá e me deixaram comovido, a ponto de eu chorar com cada um deles. E eu apenas estava ali fazendo a minha parte. Essa é que era a minha sensação, era o meu sentimento. Fazia o que me cabia fazer. Fazia com coragem, mesmo correndo riscos, e não foram poucos. Quando nós fizemos o Livro Negro da Ditadura Militar, que tinha aquela capa da caveira com o quepe, eu fui perseguido porque um companheiro caiu e, sob tortura, nos entregou. Foi editado pela Ação Popular. A capa é minha e o texto final é do Carlos Azevedo. Esse livro causou profundo incômodo aos militares. A partir daí, quando eles descobriram quem tinha feito, passaram a nos perseguir. Eu ainda trabalhava no Opinião e a minha situação ficou complicada. Um dia, o Roberto Civita me colocou na parede: eu tinha de escolher entre a Abril, onde eu era diretor de arte, e o Opinião, não podia mais ficar com um pé em cada canoa. Escolhi ficar no Opinião. A partir daí, como eu já sabia o que queria da vida, resolvi ajudar a consertar o Brasil…

Brasileiros – Só para a gente fazer um balanço final, vamos aos números da tua obra.
E.A. – De capas de disco, minha filha contou umas 600. Tenho perto de 200 capas de livros, uns 150 cenários e cartazes para teatro…

Brasileiros – Você tem toda uma trajetória vitoriosa ligada à arte brasileira, à nossa história. O que ficou de tudo isso?
E.A. – Hoje, eu tenho o Almanaque Brasil, que é a minha tribuna, onde eu posso fazer o que gosto. Chega até ser uma coisa meio egoísta, no sentido de que eu tento preservá-la a qualquer preço. Às vezes, eu recebo conselhos de muita gente: “Pô, desista, cara”. Mas eu não posso viver sem esse espaço para contar a boa história brasileira. Eu escrevi isso recentemente: “Não sei viver sem trabalhar, sem estar dedicando o tempo de vida que me resta ainda à construção do País que eu sonhei para as futuras gerações”. E não vou desistir disso, não. Todas as vezes que me bate um desânimo, ou uma crise de alcoolismo, tem uma coisa tão forte nisso, que eu digo para mim mesmo. O alcoolismo não vai me derrubar, embora eu lute contra ele todo o tempo. Quando eu percebo que ele está vencendo a batalha, que ele está me deixando enfraquecido, desanimado e fragilizado, eu corro para uma clínica, me recupero e volto aqui para continuar a minha batalha. Quer dizer, eu me preservo para continuar a minha luta.

Brasileiros – Você saiu ontem de mais uma internação e já parece bem animado…
E.A. – Eu estava me afundando, bebendo todos os dias, de desespero, de desânimo. E sempre foi assim. Mas, cara, como é que eu vou fazer? Vou me entregar dessa maneira? Não, eu vou lá e me entrego aos tratamentos, volto sadio para continuar a minha luta. Para isso, eu preciso estar inteiro, estar sadio, eu preciso estar bem, com a cabeça em ordem para orientar a moçada, para preservar a minha capacidade de resistir.

Brasileiros – Valeu, Elifas, obrigado.

Segue-se o silêncio.


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