Nenhum país que sonhe em vencer uma crise econômica pode conviver com um rombo de R$ 124,9 bilhões, valor estimado pelo Tesouro Nacional para o déficit do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) em 2016. O Brasil está se transformando em um país de idosos, que terminarão seus dias à beira da miséria se esse buraco não for preenchido com o dinheiro que vai entrar em caixa depois de uma reforma urgente e sem concessões. A previsão catastrófica e a receita indigesta é do mercado financeiro, que, depois de arrancar do governo certa flexibilização de leis trabalhistas no ano passado, sonha agora com a tão adiada reforma da Previdência. O que o mercado não diz é que esse déficit não passa de uma maquiagem de números: e se em vez de devedor o INSS for superavitário?
O ano de 2015 começou e terminou sob um ajuste fiscal que desaqueceu a economia à base de cortes sociais. Sob as rédias do então ministro Joaquim Levy (Fazenda), o tempo mínimo para pedir seguro-desemprego triplicou, e até o pagamento de pensão por morte sofreu restrição. Tudo isso antes do pacotaço de R$ 30,5 bilhões anunciado em setembro, que atingiu em cheio a Saúde e os salários de servidores. Mas ainda faltava “atacar a Previdência”. Especialista em contas públicas da Tendências Consultoria, Fabio Klain defende a reforma. “A Previdência acaba sendo de novo a prioridade zero para equacionar as contas”, diz ele ao se lembrar das “insuficientes” minirreformas implantadas pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, em 1999, e Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004.
No final da década de 1990, FHC mexeu na aposentadoria privada ao criar o fator previdenciário – a inclusão na conta de dados do IBGE sobre a expectativa de vida: quanto maior ela for, mais tarde se aposenta, ou recebe apenas o proporcional. Lula se concentrou na aposentadoria do setor público. Desde 2004, a União cobra 11% dos inativos, a idade mínima para concessão subiu (60 para homens, 55 para mulheres) e o valor do benefício foi equiparado ao teto do INSS (R$ 5,1 mil).
A última novidade foi a aprovação da chamada “Regra 85/95”, sancionada por Dilma Rousseff em junho do ano passado. A partir de então, só se aposenta quem atingir um número mínimo de pontos, resultado da soma da idade e tempo de contribuição. A mulher precisa de 85 pontos, o homem, 95. Esses pontos aumentarão gradativamente até 2022, quando homens terão de somar 100 e mulheres, 90. Nem assim agradou. “O resultado é intermediário”, avalia Klain. “Antes se aposentava com 52 anos com desconto de 20% na aposentadoria. Agora faz sentido ficar mais quatro anos trabalhando e contribuindo para ter o benefício de 100%. Mas, no longo prazo, as pessoas terão aposentadoria cheia aos 75 anos.”
O economista toca em um assunto que pouca gente no mercado se atreve: a Previdência Urbana é, na verdade, superavitária. O déficit seria apenas na Previdência Rural. Em 2014, por exemplo, os pagamentos no meio urbano ficaram positivos em R$ 25,8 bilhões, enquanto os rurais ficaram negativos em R$ 84 bilhões, resultando em um déficit oficial total de R$ 58,1 bilhões na Previdência. A razão é simples: muitos trabalhadores rurais trabalharam a vida toda na informalidade e chegaram à velhice sem direito à aposentadoria. Nos anos 1990, decidiu-se pagar um salário mínimo a esses funcionários do campo. A decisão, de cunho social, melhorou a vida de muitos idosos e ainda colocou dinheiro nas economias locais. Klain reconhece a intenção, mas não descarta mudanças: “De alguma forma, os trabalhadores precisam contribuir ao longo de sua vida laboral. É necessário formalizar a relação no campo para que não tenham tratamento diferente em relação a outros contribuintes”.
Acontece que nem mesmo esse déficit rural existe, defende outra corrente de economistas. O professor da Unicamp Eduardo Fagnani é um deles. “A história do rombo é um mito”, garante. Ele explica que a Previdência integra a Seguridade Social, que, “como em diversos países do mundo”, é financiada por três contribuintes: empresas, empregados e União. Esse modelo existe no Brasil desde a era Getúlio Vargas, permaneceu durante o regime militar e foi reafirmado pela Constituição de 1988: “Mas o mercado só contabiliza a contribuição das empresas e dos empregados. A parte que cabe ao Estado eles dizem que é rombo”. O financiamento estatal deveria sair da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e as receitas de concursos de prognóstico, resultado de sorteios, como loterias e apostas. “Esse dinheiro é recolhido, mas é desviado para outras funções”, lamenta.
Não é o único. Professora de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Gentil dedicou sua tese de doutorado para defender “a farsa do déficit previdenciário”. Ela explica que a manobra está em tirar a Previdência dos cálculos da Seguridade Social. O que aconteceria, no entanto, se as receitas estatais passassem a ser computadas, como pede a Carta Magna? O rombo oficial de R$ 54,5 bilhões de 2013 se transforma em superávit de R$ 68 bilhões; os R$ 58 bilhões do déficit de 2014 ficam positivos em R$ 56 bilhões – Previdência Rural inclusa.
Denise não acredita em ingenuidade do mercado, que acena com estudo do IBGE segundo o qual mais da metade da população brasileira será de inativos em 50 anos. “É incrível que a burocracia estatal e o mercado se preocupem tanto com o que acontecerá daqui a 50 anos. Subitamente, foram acometidos por um senso de responsabilidade com o futuro que não dedicam à Educação, Segurança, Saúde… Só ocorre com o futuro da Previdência. Não é suspeito?”, ela pergunta. Fagnani acha que sim. “Eles vendem a ideia de que a dívida pública não se estabilizará sem que a Constituição de 1988 seja revista.”
Com expectativa de vida em 72,7 anos, o brasileiro deverá ficar cada vez mais tempo recebendo benefício. Para o economista da Tendências, “isso tem de ser equilibrado”. “A geração ativa hoje paga os aposentados de amanhã. A próxima vai sustentar a atual. Se tem mais gente aposentada do que na ativa, a pressão sobre as gerações futuras será absurda.” Já a professora acha que o governo deveria se concentrar em retomar o crescimento econômico para gerar caixa ao INSS. “A população envelhecerá, mas o que precisaremos não é de uma reforma previdenciária, mas de uma política macroeconômica voltada para o pleno emprego.” Ela defende aumento da produtividade do trabalho com investimentos em educação, ciência, tecnologia e estímulos à infraestrutura. “Cada trabalhador será mais produtivo e produzirá o suficiente para elevar a renda e redistribuí-la entre ativos e inativos. Não podemos ficar presos a um determinismo demográfico.”
Fagnani, da Unicamp, sugere um enfoque de dar calafrios no mercado. Por que, em vez de mexer na aposentadoria, o governo não reduz as isenções fiscais para grandes empresas? “O agronegócio não paga Previdência Rural, por exemplo. Só em 2012, o governo isentou 60 setores de contribuição patronal para a Previdência, gerando prejuízo de
R$ 50 bilhões.” Em 2014, essa isenção chegou a R$ 60 bilhões, segundo a Receita Federal, R$ 2 bilhões acima do déficit oficial. Quando todas as isenções – ou gastos tributários – são computadas, chega-se a um montante de R$ 263,1 bilhões em benefícios fiscais em 2014, último dado disponível.
Blindada, pouca gente fala em reformar a aposentadoria de militares. Além de descansarem mais cedo (30 anos homem, 25 mulheres), as filhas de militares que ingressaram no serviço antes de 2001 têm direito a pensão vitalícia, se não se casarem. Para Denise, não adianta espernear. “A conta sempre ficará para os trabalhadores do setor privado.”
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