Quem passa pelo sobradinho discreto no bairro de Pinheiros, em São Paulo, não imagina que está diante de uma produtora de projetos para ajudar a melhorar o mundo. Do lado de fora, apenas o nome indica a vocação do lugar: Instituto Vladimir Herzog. Criado há cinco anos para celebrar a memória do jornalista morto pela ditadura militar, o instituto investe em projetos vinculados a valores democráticos. Neste final de ano, o foco está na história recente do Brasil e na prática do respeito ao outro em escolas. As ações acontecem em três frentes: um livro com gravuras que marcaram época, um site interativo sobre a ditadura militar (1964-1985) e um projeto para transformar escolas municipais da capital paulista em espaço de educação em Direitos Humanos.
O livro, A Declaração dos Direitos Humanos – 30 Artigos Ilustrados por 30 Artistas, apresenta uma série de interpretações plásticas para a declaração adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro de 1948. A coletânea foi encomendada pela crítica de arte Radhá Abramo (1927-2013) no começo da década de 1990, quando ela dirigia o acervo artístico do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. A cada artista Radhá propôs um artigo da declaração dos direitos fundamentais do homem. Ao pintor e desenhista paulistano Gustavo Rosa (1946- 2013), coube, por exemplo, o artigo IX: “Ninguém será arbitrariamente preso, detido nem exilado”.
Conhecida tanto pelas gravuras quanto pela tapeçaria, a artista plástica gaúcha Zoravia Bettiol trabalhou com o artigo XIX: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independente- mente de fronteiras”. Criadas em litografia – técnica de impressão sobre pedra –, as obras reproduzidas pela editora do Instituto Vladimir Herzog integram o acervo do Palácio dos Bandeirantes.
“Ao conceber a série, Radhá resolveu adotar um mesmo formato e técnica (litografia), para criar uma unidade entre obras de artistas com diferentes linguagens”, lembra o organizador do livro, o museólogo Fabio Magalhães. Funcionou. Agora, além de ganhar uma edição de luxo, a série será também impressa em formato de livro para estudantes, para possibilitar a adoção por escolas. “Os trabalhos podem render debates interessantes em sala de aula, sobre todos os temas, do convívio social ao racismo, à violência, às relações de poder”, afirma Magalhães.
Na mesma linha, o instituto desenvolveu o portal Memórias da Ditadura em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. A plataforma, com maior potencial para atrair as novas gerações, mostra a trajetória do período que os militares ocuparam à força o poder e deixaram entre o legado mais de 400 mortos e desaparecidos políticos. Um deles foi justamente o jornalista Vladimir Herzog, que inspirou a criação do instituto. Em outubro de 1975, quando era diretor de jornalismo da TV Cultura, Herzog compareceu de forma espontânea para prestar depoimento em uma unidade do Exército, em São Pau- lo. Poucas horas depois, estava morto devido a torturas, aos 38 anos. Na época, a versão oficial era de que Herzog havia se suicidado.
Quatro anos depois, a falsa versão de suicídio foi desmascarada em processo na Justiça, aberto pela viúva do jornalista, a publicitária Clarice Herzog. O atestado de óbito com as verdadeiras causas da morte só saiu no começo do ano passado. Já a batalha para mostrar o que acontecia no período e o impacto da ditadura na vida dos brasileiros continua, por meio do instituto. Na prática, o portal Memórias da Ditadura é uma ferramenta para ajudar a trazer à tona facetas pouco conhecidas da história recente do País.
Por meio do portal, busca-se contextualizar os tempos da ditadura, mostrando as formas de resistência, manifestações culturais e biografias de personagens dos dois lados do cenário político. Ana Rosa Abreu, coordenadora executiva do portal, acredita que o vasto material passará por processo contínuo de enriquecimento, devido à interatividade. “As pessoas poderão deixar seus próprios depoimentos, gravados ou escritos. Na seção ‘Apoio ao Educador’, vamos mostrar algumas experiências, como um aplicativo produzido por estudantes de São Paulo”, diz Ana Rosa. “A ideia é de que outras experiências também sejam postadas.”
No âmbito escolar, o investimento do instituto é no projeto Respeitar é Preciso…, realizado em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo. No decorrer de 2014, cerca de 600 integrantes de 20 comunidades escolares participaram de cursos e oficinas sobre o papel da escola na educação em direitos humanos. “Nessa etapa, foi possível refletir sobre os problemas a serem enfrentados e as mudanças necessárias”, conta uma das coordenadoras do projeto, Neide Nogueira, do Instituto Vladimir Herzog. “Participaram gestores, professores, funcionários, líderes da comunidade, pais de alunos.”
O produto do debate está sendo transformado em cinco cadernos didáticos, divididos em temas como democracia na escola, respeito e humilhação, diferenças e discriminação. “Os cadernos estão sendo construídos em um processo coletivo. É um material em aberto, sujeito a críticas, a mudanças. Na próxima etapa, serão usados em pequena escala, para, depois de testados, serem adotados de forma mais ampla”, afirma Jonas Waks, um dos gestores do projeto, por parte da Secretaria Municipal de Direitos. Em um País onde falta material didático sobre a história e também sobre os direitos humanos, é uma aposta e tanto no futuro.
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