Aqui, de onde o olho mira

“Suas fotos são um milagre do olho esquálido e atento, atendido pela graça desatenta dos deuses em transe.” Palavras do músico e ex-ministro Gilberto Gil, sobre a fotógrafa, amiga e conterrânea, Lita Cerqueira, 57. De fato, a fotógrafa baiana é uma figura incomum. Sua lente já clicou nomes como Nelson Pereira dos Santos, Win Wenders, Waldick Soriano, Gal Costa, Moraes Moreira e até Harry Dean Stanton – aquele do filme Paris Texas. Mas ela prefere retratar gente mais simples, principalmente dos rincões do Brasil, lá “onde as pessoas são espontâneas, fazem pose e se divertem quando fotografadas”, diz Lita.

Distante dos holofotes e com sua fotografia popular, ela transita por um universo paralelo ao dos fotógrafos que se dedicam a captar cenas e retratos instantâneos nas ruas. O menino tocando berimbau, a garota sorrindo, a vendedora de bananas, os trabalhadores criando arte com barro, a mesma arte que encontra a religiosidade em praças e ruas. São cenas como essas, eternizadas pela lente de Lita, que podem ser conferidas na exposição A fotografia como Eu Sou, em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, até fevereiro de 2010. A mostra reúne cerca de 55 imagens, fruto das andanças da artista, entre 1976 e 2002, por lugares como Bahia, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro.
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As fotos selecionadas para a exposição – que celebra o mês da consciência negra – destacam o universo afro-brasileiro. A religião, a arte e o cotidiano do negro no Brasil. Mas nada em sua fotografia tem a ver com as imposições que o mundo contemporâneo vem fazendo às imagens, em que as questões técnicas se sobrepõem à intuição, observa o curador da mostra, Diógenes Moura. “Quem olha para sua câmera, olha para ela, a mulher que está por detrás do visor.” O resultado é uma imagem mais forte do ponto de vista intuitivo do que propriamente técnico. “Ela se coloca ao lado do outro, é uma arte de encontros”, acrescenta.

Por trás do cotidiano simples retratado nas imagens de Lita há muito dela própria. A infância no bairro de Caixa D’Água, em Salvador, quando por lá ainda circulavam bondes – período em que fez teatro infantil na escola e começou a se interessar por arte. “Queria conhecer tudo sobre cinema, teatro, arte em geral”, recorda. A adolescência na Ladeira do Carmo, em frente à escadaria da Igreja do Paço – cenário do premiado filme O Pagador de Promessas, de Dias Gomes.

As dificuldades financeiras de então eram vistas com normalidade, afinal, a família não era pequena. Lita é a sétima de onze filhos – oito homens e três mulheres. “Muito bem criados por dona Maria”, ressalta a fotógrafa. Ela conta que vem de uma família da zona rural. A mãe, Maria Almeida, era de Amargosa, interior da Bahia, e o pai, de Baixa Grande, no sertão. “Os dois viveram, até adultos, cada um em suas fazendas, quando um dia se encontraram e viveram juntos até a morte do meu pai, em 1966.”

Mas o estilo de fotografar se moldaria mesmo no estilo de vida que adotou, após algumas rupturas. Não se esquece do olhar de sua mãe, quando em 1971, deixou escola, família e trabalho para botar o pé na estrada. “Comprei uma sandália feita de pneu e fui pra Arembepe” (pequena vila, localizada a aproximadamente 30 km de Salvador, onde surgiu a primeira comunidade hippie). “Uma menina que tinha tantos sapatos”, resmungou a mãe com ar triste. Já na aldeia bicho grilo, hospedada na casa da atriz Sônia Dias, Lita se tornou amiga da nata do cinema brasileiro da época, como Cláudio Marzo e Vera Barreto Leite.

No mesmo ano, foi cicerone de jornalistas que cobriam a volta dos baianos exilados em Londres (Gilberto Gil, Caetano Veloso, entre outros). Foi quando conheceu Amâncio Chiodi, que se tornaria o pai de seu filho. “Era o fotógrafo da turma e me convidou para morar na casa dele.” Na verdade, uma comunidade no bairro da Aclimação, em São Paulo, onde viviam jornalistas das saudosas revistas Bondinho e Grilo. Durante o romance com Chiodi, começa seu flerte com a fotografia. Lita afirma que a paixão por fotógrafos foi decisiva em seu caminho. “Tive romances com três excelentes fotógrafos”, revela.

Foi a liberdade, entretanto, que a fez optar pela profissão. “Sempre fui rebelde, não conseguia ser dirigida ou ter patrões.” Em 1973, grávida, muda-se para o Rio de Janeiro. Depois que começou a fotografar o filho Pedro, sua câmera não parou mais de trabalhar – de forma autônoma, vale destacar, como sempre quis. Até hoje, boa parte de sua renda vem dos cartões-postais que produz, vendidos em bancas de jornal e revistas de grandes cidades do Brasil e de vários países. “Consegui, com muita luta e sorte, fazer uma carreira independente das grandes estruturas.”

Entre seus melhores momentos, Lita destaca duas ocasiões. A cobertura da chegada de Peter Tosh ao Brasil durante uma turnê no final da década de 1970, a convite da atriz e jornalista Scarlet Moon de Chevalier. “O cantor acendeu um baseado e ofereceu a todos os jornalistas presentes, ninguém aceitou, mas aproveitei a oportunidade para fazer um postal que hoje é famoso entre os fãs do músico.” Outra lembrança marcante foi quando fotografou Caetano Veloso dando um beijo na boca de seu pai. “Por coincidência, ele tinha acabado de compor uma música em que cantava ‘ele me deu um beijo na boca‘, a foto virou a contracapa do disco.”

Lita diz que não tem do que reclamar. Sua vida hoje é “trabalhar e trabalhar”. Em 2008, fez as fotos da minissérie Ó Paí, Ó, da Globo, dirigida por Monique Gardenberg, e atualmente vive entre o Rio, Salvador e São Paulo, onde seus postais são vendidos também em livrarias e cinemas. E acaba de retornar da França, onde recebeu um convite para expor em Paris. Acredita que o bom momento é ideal para realizar um antigo desejo. “Adoraria fazer um livro com meu trabalho fotográfico”, diz. Enquanto espera, deixa a vida seguir e, com seu estilo singular, prossegue, clicando gente trabalhando nas feiras, fazendo artesanato, entre outros tipos interessantes que encontra no caminho.

“As fotos de Lita Cerqueira são a resultante da sensibilidade de um olhar trabalhado na ânsia e na argúcia de um povo oprimido, mas altivo e paciente”, afirma Gilberto Gil.


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