Aqui tem um bando de guerreiro

Pinceladas nervosas de amarelo e laranja rasgam, no horizonte, os estertores da noite. Sete da manhã, quinta-feira, 23 de fevereiro (horário de verão em vigor). Bairro de Itaquera, em uma ponta da Zona Leste de São Paulo onde a Radial já trocou várias vezes de nome. A alvorada que se anuncia, lentamente, em nesgas coloridas, impõe um silêncio meio tristonho, como que a respeitar o bocejo dos preguiçosos e o sono dos retardatários.

Assim se comportam os homens que vêm chegando, em pequenos grupos, sussurrando olás e bons dias, agora compenetrados na tarefa de vestir o uniforme de tiras fosforescentes, as botas, o capacete, as viseiras. Uma ou outra conversinha aflora, quase sempre comentários sobre o jogo da véspera. O Corinthians venceu a Portuguesa, 2 a 0. Lidera o campeonato. Tem gente feliz ali.

A peãozada vai se aglomerando sob o galpão de madeira. Uns 800, por aí. A placa anuncia “O Recanto do Guerreiro”. Às 7h30 vai começar o turno da manhã, mas, antes disso, os tais guerreiros matutinos que vão literalmente meter mãos à obra sujeitam-se a um ritual de 10, 15 minutos, destinado a preparar corações e mentes para mais uma jornada de trabalho. O nome técnico é DDS ou Diálogo Diário de Segurança. Se der para definir em cinco palavras, aquele ritual seria: segurança, segurança, segurança, segurança e motivação. Uma obra com tanto olho gordo e com tanta gente secando precisa ser impecável, inatacável.

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Existe um pequeno palco redondo no meio do galpão e nele vão se revezar os chefões da empreitada. Mestre Pará açula a massa: “Vamos lá, pelotão!”. Na preleção, recomenda cuidados específicos: alianças, anéis, adornos. Um perigo. “E sei que tem uma rapaziada aí que é chegada em um brinquinho.” Risadas. Prossegue: “Corrigir uns vazamentos”, “evitar contaminação do solo”, “colaborar com o meio ambiente”, “o caminhão-pipa não está conseguindo passar”. Anuncia a previsão do tempo: à tarde, chuva, “uns 15 mm”. A obra tem pressa, mas a gente sabe que verão no Brasil é assim mesmo.

Paixão pelo chão de usina

Mestre Pará, aliás, Francisco das Chagas Lopes, ganhou o apelido por causa de Paraíba, seu Estado natal. Paraibano de Sousa, com muito orgulho. Pará é o mestre-geral de obras. Tem 62 anos e começou pedreiro; 47 anos de São Paulo, 45 de profissão e 38 de Odebrecht. Com seu trabalho, conseguiu formar quatro filhos. Ele é o clássico cigano da construção. A paixão pelo “chão de usina” já o levou a construir metrô em São Paulo (a Linha Amarela), duas barragens no Chile (Concepción e Talca), uma no rio Tietê (Avanhadava), a Ponte Vasco da Gama, em Lisboa, e por aí afora.

Diz ter herdado a energia do pai que, aos 84 anos, acorda às quatro da manhã, põe a mulher na garupa da moto e vão, os dois, ordenhar 15 vacas e, depois, levar o leite para ser pasteurizado. Ele enverga uma camiseta estilizada da seleção alemã. É um figuraça. De vez em quando, rabisca um cordel (recita, acelerado, um deles, de sua autoria, que termina com um entusiástico: “Viva o povo brasileiro!”). A gente cutuca Pará com um tema melindroso: “É verdade que a grande maioria da peãozada ali é corintiana?”. Ele despista: “Tá na média de São Paulo. Deve ser uns 30%”. Diz que torce para o glorioso Sousa, o qual provavelmente deve estar se arrastando aí por alguma divisão bem inferior do futebol brasileiro. “Qua nada”, reage. “Fomos campeões da Paraíba em 2009.” Em seu site oficial, Sousa vangloria-se de ter revelado craques “a exemplo de Galeguinho, Juninho, Dôver, Inha, Welito, Rafael e outros”.

Bola, conversa e oração

Sobe agora o pódio Domingos. Pará brinca: “Pulou o carnaval no Rio”. “É ruim, eh?”, brinca Domingos Sávio de Araújo, que é o gerente administrativo-financeiro da obra. Vai falar pouco. Esse aí não esconde seu orgulho: veste uma camisa do Corinthians. Tem uma bola cheia de autógrafos na mão. Anuncia que, agora, são “quatro horários de comida” e “vem aí mais uma rampa”. Puxa um papelzinho do bolso e lê: “Você é do tamanho do seu sonho e jamais é necessário apagar a estrela do próximo para a sua brilhar”. A frase é assinada por Daniel de Assis, carpinteiro. “Cadê o Daniel, gente?” Ele se aproxima, timidamente. Muitos aplausos, “Daniel, Daniel”. Domingos pega o mote: cada humano pode crescer sem prejudicar o próximo.

Um varapau invade o palco, com uma bola na mão. Tem 1,97 m, mas é habilidoso, ensaia umas embaixadinhas, tenta prender a bola na nuca, à moda do ex-Ronaldinho Gaúcho. “Aí, doutor”, grita a peãozada. O doutor é o chefão-mor ali naquelas paragens. Frederico Barbosa, gerente de produção. Ele se diz “baianeiro”. Nasceu no norte de Minas, o que lhe confere um sotaque vagamente nordestino. Veio hoje dar boas notícias: “Tivemos alta produtividade no carnaval”, começa. “Nove paredes concretadas em quatro dias.” As paredes são pilares onde serão assentadas as arquibancadas. Fred está disposto de fato a motivar a moçada. Lança no ar uma citação: “Voe comigo, mas não segure minhas asas”.

Ah, ele ainda anuncia que o campeonato interno de futebol começa em abril e as inscrições estão encerradas. O campeonato ganhou o apelido “Brasileirinho”. Fred baixou o centralismo: ele escala os times. Vai ser a segunda temporada. No ano passado, no ainda precário roçado onde o gramado florescerá para a Copa, a peãozada da Odebrecht já experimentou a sensação que os craques da bola terão a partir de 2014. Campeonato do tipo mata-mata, 192 jogadores inscritos. No final, feérica confraternização em torno de um churrasco. “Se a gente tivesse um motivômetro, o futebol daria de goleada”, disse à Brasileiros o organizador (e, segundo ele, atacante de notável talento). Atribui-se o primeiro gol no Itaquerão a certo Baianinho, por sinal torcedor do Palmeiras. Há controvérsias. Por via das dúvidas, a bola do jogo número 1, devidamente autografada, repousa hoje sobre a mesa de Domingos.

A conversa está boa, mas o trabalho espera. Antes, os aniversariantes do dia recebem uma caixa de chocolate e, às cinco da tarde, antes do turno se encerrar (termina às seis), um bolinho e um parabéns irão homenagear, naquela quinta-feira, todos os aniversariantes de fevereiro. Mestre Pará puxa o Pai Nosso. Todos tiram o capacete e rezam, com convicção. “Mas e os evangélicos?”, a gente pergunta. “É a oração que fala no Deus Pai”, explica Pará. “E todo mundo acredita em Deus.” De todo modo, de vez em quando um pastor é recepcionado no galpão, para aspergir suas bênçãos ao seu rebanho específico.

Um mapa do Brasil em Itaquera

O Itaquerão – cujo apelido o Corinthians, com todo o respeito pela operosa comunidade de Itaquera, sonha em trocar um dia por alguma coisa mais lucrativa como, vá lá, Arena Ambev, ou, quem sabe, Monumental Itaú – vai hospedar o jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014. “A Copa de 2014 começa aqui”, anuncia o muro que pode ser visto lá debaixo, à saída do metrô e da linha de trem da CPTM. O relógio-torre fincado no ponto mais alto do promontório registra a contagem regressiva até aquele ainda remoto 12 de junho de 2014: “Faltam 894 dias”. A Construtora Odebrecht, única responsável pela obra, espera terminar tudo em 31 de dezembro de 2013. Para ele, o prazo é, portanto, 163 dias mais curto.

O marco zero aconteceu em 30 de maio de 2011. “A engenharia financeira demorou a ser definida”, explica o gerente de comunicação, Marco Antonio Antunes. O BNDES não pode emprestar para clubes esportivos nem para entidades religiosas. O Corinthians foi atrás de fundos de financiamento. A diretoria terá um dia de pagar a conta. Pode chegar perto de R$ 1 bi. Dizer que a Arena do Timão vai ser bancada pelo dinheiro público é intriga dos adversários. A obra começou com 20 trabalhadores e sete máquinas. Hoje, são quase 1.600 operários, mais de 150 máquinas de variado porte e só de caminhões de concretos entram ali, todos os dias, no mínimo 40.

O ceticismo de quem está muito à distância – e, claro, de quem torce contra – não parece combinar com o ritmo da obra e a disposição da brigada de pedreiros, carpinteiros e ajudantes de produção (só mais adiante é que chegará a turma mais especializada, os artesãos dos detalhes e do acabamento). “Temos um cronograma, vamos cumprir”, é a frase unanimemente repetida. São três turnos por dia, inclusive o que vai noite adentro, das 19h30 às 5 da manhã. No pico da obra, a previsão é de dois mil operários revezando-se dia e noite.

O Itaquerão nasceu no berço da polêmica e floresce no embalo da desconfiança. Tem gente que nem queria Copa do Mundo no Brasil – e tem lá suas razões. Eventos faraônicos costumam virar aqui ocasião para uma enxurrada de maracutaias e enriquecimentos súbitos. A reputação internacional do brasileiro não inclui a virtude da pontualidade. No caso específico do Itaquerão, por que a obsessão do Corinthians em erigir mais uma milionária arena futebolística em uma cidade que já tem um bom número delas?

Futebol é terreno em que a paixão cega a razão e a gente pode ficar discutindo até a Copa, com argumentos meramente emocionais, se o Itaquerão – ou o Fielzão, ou tenha o nome que tiver – deve ou não existir. Os rivais detonam e fazem vodu. O repórter de um matutino isento tuitou: “Torce para que as arquibancadas venham a ruir”. Depois disse que era brincadeira.

Se essa dúvida nem de longe passa pela alma de um corintiano, experimentem só apresentá-la aos moradores de Itaquera. Uma das periferias olvidadas de São Paulo reúne cerca de 250 mil de habitantes. A renda média de 60% deles é inferior a cinco salários mínimos. Tem a maior taxa de crescimento demográfico da cidade. Recentemente, o bairro ganhou seu segundo shopping, no raio de visão da Arena, encimado por uma pirâmide que, com alguma boa vontade, pode fazer a gente lembrar do Louvre. “Um empreendimento desses vai impactar economicamente cinco milhões de pessoas”, calcula o engenheiro Fred Barbosa, gerente operacional. Ou seja, se a Zona Leste fosse um município, seria o terceiro do País, depois de São Paulo e Rio.

O efeito é imediato. O governo estadual está construindo bem ao lado o novo complexo da FATEC – com seus cursos superiores de tecnologia. A prefeitura já começou a projetar alças de escoamento viário. Uma das alternativas de tráfego passará a ser a Rodovia Airton Senna. A Petrobras relocou, com segurança, a tubulação que passava ao lado do estádio. Quando uma comissão de técnicos da Odebrecht foi até o vizinho conjunto da Cohab – habitação popular que teve seu apogeu nos anos 1980 – para adocicar o humor dos moradores, agora sujeitos a um bate-estaca noite adentro, a recepção foi cordialíssima. “Nossas casas já valorizaram 50%”, anunciou um porta-voz da comunidade.

O orgulho local ganhou até versão on line, na figura do blog Itaquerão ao Vivo, que acompanha em tempo real o minucioso andamento dos trabalhos. Ideia do estudante Pedro Lima Salomão, 15 anos, que instalou a câmera na janela de sua casa. Com a ajuda do webdesigner César Carlos Souza, promove um aquecimento antecipado da Copa para internautas curiosos do mundo inteiro.

O Programa Acreditar, da Odebrecht, tratou de dar cor local à mão de obra: 300 operários moram ali na Zona Leste. Bem que Andrés Sanches, o falador presidente do Corinthians, tinha prometido. Mas o sotaque que prevalece – “98% dos casos”, calcula o engenheiro Fred – é “de Minas para cima”. A diáspora nordestina, mesmo aquela que se abriga em São Paulo há anos e décadas, emoldura o retrato fiel da nossa diversidade. Se a gente conseguisse precisar, ponto por ponto, cada uma das cidades de onde procedem os trabalhadores do Itaquerão seria como desenhar o mapa do Brasil. O que desmente uma das lendas acerca da obra: a de que aquilo ali é um ninho exclusivo de corintianos fanáticos. De Norte a Sul, tem time para todos os gostos.

Corintiano roxo

Ronnan Souza Silva não – ele é “Corinthians até morrer”. Uma dessas almas ciganas que, assim como acontecia com os construtores de catedrais da Idade Média, erram de lugarejo em lugarejo, de obra em obra, levando consigo sua disposição e sua experiência. Ronnan, nascido em Araçuaí, norte de Minas, filho de um mestre de obras hoje aposentado, separado, uma filha de 2 anos, está para fazer 30 e já perdeu a conta de quantos canteiros já foram irrigados pelo seu suor. Estradas, ferrovias, barragens (a hidrelética de Irapé, no rio Jequitinhonha, é, para ele, o estado da arte). Vai contando, 11, 12, talvez 13. “É gostoso, a gente faz muitas amizades, convive com culturas diferentes”, explica. A última obra, quer dizer, a penúltima foi a barragem de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia. Mas, em março de 2011, irrompeu um motim dos trabalhadores na vizinha barragem de Jirau, administrada pela Camargo Corrêa. Alojamentos queimados. O mal-estar chegou aos vizinhos. “Cheguei a São Paulo com a roupa do corpo”, diz Ronnan.

Ele é, porém, um desses artesãos que não se encontram por aí. Sua especialidade: pedreiro de acabamento. Vai assentando os blocos de concreto pré-moldado sobre os quais se estenderão as arquibancadas. Galga andaimes, a bordo de capacete com viseira, óculos especiais e cinto de segurança. Trabalha nas alturas. “Gosto de voar. Se um dia ganhar na Mega Sena, compro um helicóptero.”

Mídia, mídia, mídia

A Arena Corinthians já está 26% pronta, calculam os engenheiros da Odebrecht. A paisagem aparentemente não desmente. Já é possível até mesmo andar em uma das arquibancadas. Fred, o engenheiro-chefe, aquele das embaixadinhas na hora da preleção, acha que todo mundo ali comprou o desafio porque sabe que os olhos do mundo estão voltados para lá. “No dia do pontapé inicial, dei uma entrevista coletiva de oito horas, com a presença de 12 canais de TV”, relembra-se. Em seus 30 anos de Odebrecht, nunca participou de um empreendimento com tanta visibilidade, com tal superexposição de mídia.

Fred já passou por outros aperreios (para se ter ideia de sua disponibilidade, seu primogênito nasceu em um hospital de madeira, em Carajás), mas um estádio de futebol, e logo este, dá frio na barriga. O jeito é confiar em seus guerreiros de capacete na cabeça e ferramentas na mão. Ao lado de sua mesa, pendurou um pôster com fotos tiradas no refeitório da obra. O texto diz: “Sentamos na mesma mesa, comemos a mesma comida… Vestimos a mesma camisa!”.

A ala feminina do Itaquerão

De todas as 40 e poucas mulheres que circulam hoje pelo canteiro de obras, quase todas entregues a tarefas administrativas, no almoxarifado e, para variar, no bandejão, a mais graduada é “a peruana”. Juana Veronica Bernaola é engenheira formada pela Universidade de São Carlos, em São Paulo, e está há 15 anos no Brasil. Tem 41 anos. Não se sente nem um pouco inibida de frequentar aquele clube do Bolinha. Atravessa com passo firme e decidido aquelas armadilhas de vigas, peças de concreto, andaimes  gruas, guindastes. “Sinto-me perfeitamente à vontade.”

Faz sua estreia em uma obra da Odebrecht. Até então, tinha participado de obras pequenas (no Peru, sim, passou cinco anos à frente da construção do importante gasoduto de Camisea, 560 km entre a região de Cusco e a costa de Pisco). Juana diz que a construção de um estádio pode parecer simples, mas “é uma obra complexa, que demanda tecnologia de ponta e planejamento muito rigoroso”. Ela, que nem time tem no Peru, confessa que está feliz “de fazer parte de um projeto que envolve o Corinthians, por sua força, sua energia, seu coração”. Pelo jeito, “a peruana” se converteu.

 


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