Aqui vive um brasileiro indignado

Lá em cima daquela serra mora um dos maiores atores brasileiros.

Sempre quis viver como um daqueles personagens românticos e solitários que moram no alto de uma montanha. O fascínio vem mais da solidão do que da geografia. Robinson Crusoé numa ilha deserta, Axel Munthe em Capri ou o conde Drácula em seu castelo na Transilvânia são igualmente fascinantes como personagens. Olhamos com benevolência e uma ponta de inveja para esses personagens, reais ou fictícios, que nos religam com a natureza, relembrando-nos o quanto o convívio forçado das cidades estraçalha a quietude de que precisamos para manter o equilíbrio psíquico.

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Aos 76 anos, Walmor Chagas vive há 12 em uma casa de varanda/sala de estar/cozinha, sala de trabalho e quarto, com teto de vidro no banheiro, na Vila Pirutinga, uma fazendola de 33 alqueires, encravada na Serra da Mantiqueira, com o Vale do Paraíba aos pés e a visão de Guaratinguetá e Aparecida no horizonte.

Tinha decidido encerrar minha carreira de ator de teatro. Nos primeiros tempos, nem eu mesmo conseguia compreender o radicalismo de dependurar as chuteiras aos 60 anos. “Por quê?” – perguntavam-me sempre.

Depois, cansei de ouvir: “Velho aos 70? Um ator com 70 anos pode-se achar velho?”. Eu já tinha a resposta pronta:

– Só quem fez 70 sabe o que é começar a ficar velho!

Deve haver na televisão um computador com as características de cada ator. Eu brinco que a minha são três Ms. Sempre me dão papel de milionário, mulherengo e mau-caráter. Milionário, tudo bem: a gente veste as roupas e bebe os drinques como deve ser. Mau-caráter, também: a gente sacaneia os outros e tudo. Mas mulherengo é a parte mais complicada. Eu acho sempre um pouco ridículo um ator velho aos amassos com jovenzinhas na televisão, acho uma coisa meio grotesca. Dá pena ver um velho trepando com uma mocinha.

Não se vislumbre uma nesguinha sequer de moralismo na constatação desse ator que começou a fazer teatro na Porto Alegre dos anos 50 do século passado e brilhou no mitológico Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) de São Paulo antes de passar a dividir palco, cama e mesa com Cacilda Becker, que muitos consideram a maior atriz brasileira de todos os tempos.

Há uma profunda ligação entre o ato sexual e o ato teatral. Produzem-se na mesma usina, irradiam o mesmo calor e aquecem igualmente o parceiro. O que comove o público é a capacidade do ator de se comover e destilar emoções por duas horas.

Sempre desconfiei de que a ereção da emoção tem alguma relação com a ereção propriamente dita. Para Jean-Louis Barrault, o ato teatral equivalia a um coito. Com o tempo, por mais que se insista – e alguns velhos atores continuam insistindo -, fica cada vez mais difícil obter uma boa performance. Em ambos os casos. É claro que a experiência fornece técnicas que mascaram boas atuações no palco ou na cama. Mas, num caso e noutro, o apogeu não resiste à idade.

Representar é um ato hipnótico, como o ato sexual entre animais, mas, quando vejo em documentários aqueles animais que hibernam e parecem mortos por meses e meses, sempre penso que tenho a mesma necessidade de morrer para o mundo de vez em quando.

Algum tempo depois da morte de Cacilda, em junho de 1969, em decorrência de um aneurisma que a derrubou no intervalo da encenação de Esperando Godot, Walmor já tinha se retirado do dia-a-dia do mundo do espetáculo para viver na chácara de sua família em Porto Alegre. Transformou o estábulo numa casa charmosa e tranqüila para morar com a filha Maria Clara, trabalhou como apresentador na TV Guaíba e, aos poucos, retomou o gosto pelo teatro em espetáculos inspirados pelos grandes poetas da língua portuguesa – Camões, Fernando Pessoa, Drummond e Bandeira, principalmente.

Acabou voltando para a agitação. Instalou-se no Rio, primeiro na Barra, depois no Jardim Botânico, fez alguns filmes e novelas, novos espetáculos de poesia e construiu na Tijuca o Teatro Ziembinski.

Walmor tem alma de construtor e pretendia levar para a zona Norte do Rio o espírito dos antigos grupos de teatro, reunidos em torno de um bom repertório.

Como é ator acima de tudo, fez uma sala de espetáculo com poucos lugares na platéia, não mais do que 154, e um palco suficientemente grande para abrigar as mais complicadas encenações de uma ópera.

Walmor dirigiu o Teatro Ziembinski entre o final dos anos 80 e o começo dos anos 90, até que, em 1992, resolveu novamente mudar de vida.

Ao pé da Mantiqueira, é outro o ritmo. A estrada acabava ali, mas ainda tínhamos pela frente mais quatro quilômetros, atravessando fazendas e córregos, até chegar aonde seu Zé morava com a mulher e dois filhos. Ele nascera naquelas abas da Mantiqueira, onde, havia mais de um século, já viviam seus avós e pais. Agora, cabia a ele vender parte das terras que herdara.

Subimos até o alto da serra, em mulas e cavalos. Antes mesmo de chegar à entrada da Vila Pirutinga, eu já estava impressionado com a beleza e a grandiosidade da paisagem. Arrisquei uns berros para ouvi-los repercutir entre as montanhas do outro lado do grande grotão de onde desce o ribeirão Gomeral.

A acústica me fez lembrar Flávio de Carvalho – que tinha, em parceria com o maestro Eleazar de Carvalho, o projeto de montar uma universidade internacional de música ao ar livre nessas montanhas de Guaratinguetá, mas os eternos problemas de verba inviabilizaram o projeto que, anos mais tarde, se transformou no Festival de Inverno de Campos do Jordão. Eles sabiam o quanto é límpido o som que se propaga entre essas rochas acústicas da Serra da Mantiqueira.

Montado na mula, serra acima, passou-me pela cabeça: o que pensaria Cacilda me vendo subir, depois de 50 anos, as mesmas montanhas de Guaratinguetá em que Flávio de Carvalho sonhou produzir música? Nunca lhe perguntei, mas sabia que ela e Flávio tiveram um caso amoroso que, por obra da mãe dele, não acabou em casamento.

Muito antes de ser o grande amor de sua vida e sua principal parceira de palco, Cacilda Becker tinha sido uma espécie de revelação para o jovem gaúcho que, de passagem por São Paulo, foi vê-la em Pega-Fogo.

Abriu-se o pano para um cenário simples – um quintal pintado, com um menino magro batendo no cabo de uma enxada. Depois de meia hora de espetáculo, eu estava em prantos. Nunca tinha acontecido isso comigo em público. Só havia chorado sozinho, por mim, na frente do espelho do banheiro, com a porta fechada a chave. Era a primeira vez que sentia lágrimas rolarem pelo meu rosto sem que pudesse estancá-las.

Naquela noite, Cacilda Becker me modificou, me revelou um eu que eu não conhecia, um percurso novo da minha emoção, de mim.

É como se eu tivesse entrado no teatro uma pessoa e fosse outra a que estava saindo depois do espetáculo, pela mesma porta, tomando a mesma condução, indo para o mesmo hotel da noite anterior.
Não sabia que estivera, pela primeira vez, diante de uma obra de arte dramática.

Tantos anos, alegrias e tristezas depois, aquela noite ainda marca a vida do ator que, tanto quanto curte a solidão na Serra da Mantiqueira, revive as lembranças em que se misturam amor e arte.

Cacilda Becker é uma presença tão definitiva em minha vida quanto estas montanhas que me rodeiam. Fui um ajudante de missa dessa grande sacerdotisa do teatro por um grande período de nossas vidas. Amei-a sempre, cada vez mais, como continuo amando a cada dia. Ela tinha fúria de vida, por ter passado fome e suas conseqüências. Enquanto vivemos juntos, com filhos e cachorro, procurávamos dar toques de lirismo à paisagem trágica que nos envolvia. Fazíamos da realidade um cenário.

Vida e teatro: a profundidade emocional com que carregava a interpretação de seus personagens era fruto do senso de responsabilidade advinda de uma profunda compaixão pelo ser humano. Ela iluminava os personagens. O que a distinguiu sempre, e continuará pela história a distingui-la entre todas as atrizes brasileiras, é o sentimento trágico da vida. Cacilda era uma rara atriz trágica que levava o público a se extasiar diante do patético maravilhoso que é estar vivo à beira da morte. No palco, ao oficiar o rito de cada noite, religava teatro e religião.

O teatro atiça a inteligência. Os dramaturgos são poetas que dialogam. O maior poeta inglês é dramaturgo: Shakespeare. Não escreveu em seu nome, fez-se Hamlet, Macbeth, Julieta. O teatro, generoso, retrata todos os homens. É universal – atiça porque nos ensina a acompanhar o tempo do pensamento antes do tempo da palavra. A fala, ou a palavra, matéria da poesia e do teatro, vem depois do raciocínio.

Os atores, velhas raposas, sabem o privilégio que é captar o raciocínio que brota do nevoeiro do inconsciente e dar um ritmo diferente a cada emoção. Ator é aquele que vê e ouve os homens. Da extensão e profundidade desse olhar e desse ouvir dependerá a qualidade da interpretação. Diante de um silêncio ou da descrição de um sonho, cabe ao analista, ou ator, reconhecer, no esqueleto mental, o desvio que desequilibra o comportamento de um personagem.

O encadeamento de falas, respostas e silêncios radiografa um caráter, uma pessoa. Em 40 ensaios, um bom ator “levanta” um personagem de sua tumba impressa, mas quanto tempo será preciso para tirar um homem real da tumba da depressão?

Ah! Se a vida imitasse a arte!

Talvez seja o que faça Walmor Chagas ao brincar de Robinson Crusoé, Axel Munthe ou Drácula nas montanhas de Guaratinguetá. Ele precisa dos dias de solidão tanto quanto do ar puro que lhe limpa os pulmões sobrecarregados pelos mais de 20 cigarros de cada dia.

No começo do ano, entre uma participação especial nos primeiros capítulos da novela Pé na Jaca e outra nos últimos de Páginas da Vida, passou um mês em Caçapava do Sul, a 270 quilômetros de Porto Alegre, filmando Valsa para Bruno Stein, que o diretor Paulo Nascimento pretende lançar no Festival de Gramado.

O filme é uma adaptação do romance escrito em 1986 pelo gaúcho Charles Kiefer e mostra a fria convivência de três gerações de uma família numa isolada vila do interior gaúcho, até que o protagonista Bruno Stein, interpretado por Walmor, se apaixona pela nora, Valéria (Ingra Liberato), e passa a viver um enorme dilema com suas convicções de protestante fervoroso.

Walmor curtiu o projeto, encantou-se com a chance de voltar a fazer o papel principal quatro décadas depois do sucesso no clássico São Paulo S.A., tornou-se até co-produtor do filme, mas não suportava mais a convivência com tanta gente. Queria voltar para sua solidão.

A filmagem acabou em 23 de janeiro. Avisei à equipe:

– Vou-me embora amanhã.

– Por quê? Está com saudade do quê?

– Eu quero ajudar a economizar, pois trabalhamos com baixo orçamento, estou com saudade da minha solidão.

Eu não podia dizer para eles que não agüentava mais a convivência com 60 pessoas o dia inteiro. Chega uma hora em que a gente não agüenta mais. Não quero conversa. As pessoas acabam dizendo todos os dias a mesma coisa, repetindo… A paciência tem limite. É por isso que os velhos são mais calados, ouvem mais do que falam. Trato todo mundo bem; saí de lá com bebedeira, festinha e tudo.

Eles não sabiam que eu estava de saco cheio. Não é com eles. No Projac, acontece a mesma coisa. Você está sempre cercado de um monte de gente, tem que ser agradável com todas as pessoas, cumprimentar todas as pessoas: “como você está bem, você está ótimo”. Ninguém acredita em nada do que diz ali.

Chega uma idade em que você tem de economizar energia. A vida social faz a gente perder muita energia. Bobamente. Eu tenho de poupar a minha energia. Emendei o fim de uma novela com o filme. Então, me digo: “sossega o pito”. Eu já tenho um marca-passo, onde é que eu vou parar?

Meu limite é esse. 76 anos é mais do que tinha programado para viver. Estou com vida sobrando. O que fazer com as sobras?

De volta à Vila Pirutinga e a suas sete fontes de água mineral que o fascinam a ponto de lá ter construído uma pousada, que logo desistiu de tentar administrar, Walmor compartilha a solidão com o mundo.

Acorda cedo, lê a Folha de S. Paulo e as revistas Carta Capital e Caros Amigos, publicações que um empregado vai buscar no vilarejo mais perto da fazenda, liga-se na CNN, tem certeza de que Lula será o Getúlio do século 21, defende Fidel Castro e Hugo Chávez como governantes que trabalham pelos interesses de seus povos, lamenta que o teatro esteja se afastando da política.

Nossos autores não aprenderam nada com Brecht. Preferem Gastão Tojeiro e os probleminhas familiares. Teatro político virou palavrão e, sem política, não pode haver teatro. A gente não tem dramaturgia. Não abrimos a cortina para nosso passado e, portanto, não temos pano de fundo. Nosso pano de fundo para qualquer grande personagem seriam os anos da ditadura. Já imaginou a gente colocar um torturador no palco defendendo a sua linha-dura? Isso, sim, seria um personagem.

A Alemanha tem um teatro forte porque até hoje discute como o nazismo influencia a vida de cada alemão. O nosso pano de fundo é novela, futebol e carnaval. Como é possível haver dramaturgia sem política?

O teatro aderiu ao famoso mercado. O teatro, hoje, é um produto de mercado. Tudo depende de patrocínio. Quem decide o teatro que se faz hoje são os marqueteiros das empresas. Ou ele é profissional neste sentido, patrocinado, ou é experimental, sempre um pouco amador, com música, expressão corporal, sem jamais aprofundar os grandes temas nacionais.

Esses temas são mais aprofundados até na política. O teatro mais interessante que está acontecendo no Brasil de hoje é no Congresso.

Lá em cima daquela serra mora um brasileiro indignado.


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