Quando olha as fotografias que fez, Aracy Esteve Gomes, ou dona Ciça, como é conhecida, sorri e se transporta para outra época: “Saudade, memória, revivo um tempo”. Hoje, às vésperas de completar 90 anos, mantendo ainda o porte ereto e os olhos brilhando, vê sua produção fotográfica exposta na Pinacoteca de São Paulo, na mostra Do Retrato Interior ao Exterior do Retrato: Coleção José Esteve e Aracy Esteve Gomes 1920-1970, com curadoria e pesquisa de Diógenes Moura. Mas dona Aracy não está sozinha nessa exposição. Está acompanhada pelas fotos de seu pai, José Esteve, um catalão que desembarcou no Rio de Janeiro em 1914. Como muitos naquela época, ele queria fazer a América. Dois anos depois, transferiu-se para Salvador, mas não se fixou por lá. Mudou-se para o interior, mais precisamente para Santo Antônio de Jesus. É nessa cidade que ele se casou, teve filhos e começou a construir sua carreira de narrador fotográfico. De 1920 a 1934, registrou sua família, os amigos, o cotidiano da cidade. Imagens que foram preservadas por sua filha, Aracy Esteve Gomes. Químico por formação, José construiu sua própria câmera fotográfica e seu laboratório. Foi ele quem transferiu para Aracy a paixão pela fotografia. A menina ficava olhando o pai, que registrava tudo ao seu redor. Com olhar glamouroso e de fotógrafo amador, ele construiu não apenas a história de sua família, mas também nos traz toda a história de uma época, com romantismo e sofisticação. Infelizmente, os negócios não foram favoráveis para José Esteve e, em 1934, ele abriu falência e decidiu se transferir com a família para Salvador. Dez anos depois, morreu. Foi, então, que dona Aracy resolveu retomar a paixão do pai: “Quando eu me casei, em 1950, fui morar em uma fazenda, onde passei um ano e levei uma máquina que eu tinha. Montei meu laboratório por lá e levei todo o material que papai tinha deixado. Os livros de fotografia dele, os químicos, tudo, tudo. Comprei um ampliador e levei”. Dessa forma, começou a registrar a vida na fazenda: “Para mim, era uma brincadeira, mas às vezes ficava no laboratório até 2, 3 horas da manhã”. Ao voltar para Salvador, pediu ao marido uma Rolleiflex e lá também montou seu laboratório: “Foi então que procurei melhorar, ler a literatura sobre isso. Adoro fotografia em preto e branco e fiz toda uma biografia fotográfica dos meus filhos”.
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Dona Aracy guardou sempre consigo as fotos do pai e guardou com carinho também sua produção. E é com orgulho que repassa imagem por imagem, como se tivesse sido fotografada ontem: “Assim, posso explicar certas coisas para os meus netos, como era o baleeiro, a praia na minha época, tem de mostrar”, afirma orgulhosa.
Se sua imagem é da área da afetividade, da vida cotidiana, do entorno pessoal, o tempo lhe agregou um valor maior e sua fotografia se tornou documento de uma época, de uma Salvador dos anos 1950 aos 1970.
Sempre à frente de seu tempo – foi a primeira mulher a dirigir um automóvel em Salvador –, Aracy queria estudar engenharia: “Mas sabe como é, naquele tempo…”. Decidiu, então, se tornar professora de matemática e, durante 44 anos, lecionou: “Gosto de lógica, acho que tenho uma cabeça lógica”. E é à geometria que ela atribui a boa resolução das suas imagens: “A matemática, por desenvolver nosso raciocínio lógico, faz com que a gente encontre o caminho a ser seguido de forma mais rápida, mas, na verdade, foram os livros que meu pai me deixou que me ajudaram”. Hoje, não acha muita graça na fotografia: “É tudo muito automático, tudo igual. Eu entendia de fotografia, hoje acho que as pessoas não entendem”. Mesmo assim, tem uma câmera digital que a acompanha. E, para as novas gerações de fotógrafos, ela aconselha: “Faça tudo com paixão e lembre-se de que nada fala melhor do que uma foto”. Paixão, aliás, que está estampada em cada uma das 80 imagens expostas, tanto às do pai como às da filha. Uma verdadeira arqueologia do tempo.
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