É difícil para o torcedor de um time grande entender a alegria de quem vibra por uma equipe que disputa, a duras penas, a quarta divisão do futebol paulista. Expedito Barreto Galvão, de 83 anos, vai além e garante que recuperou a felicidade quando passou a acompanhar os jogos do Jabaquara Atlético Clube, time tradicional da cidade de Santos que tem jogado nas últimas divisões do Campeonato Paulista, principalmente nas duas últimas décadas. A última vez que o Jabuca, como é chamado, atuou na primeira divisão foi em 1963. O time ainda passou nove anos, entre 1960 e 1970, licenciado do futebol profissional.
Morador da Parada Inglesa, na zona norte da capital paulista, Barreto chega a acordar às 5 horas para ir aos jogos do Jabuca. Na quarta divisão, muitos jogos são pela manhã. Ele vai de metrô até a rodoviária e depois segue de ônibus para o local da partida. Como não sabe usar a internet, liga para a sede do clube ou para a Federação Paulista de Futebol (FPF) para confirmar os resultados dos jogos aos quais não conseguiu ir. No ano passado, por exemplo, Barreto diz que só não foi a dois jogos do clube, que acabou eliminado logo na primeira fase. Neste ano, o time conseguiu passar para a segunda fase. Seu principal título foi o de campeão da terceira divisão, em 1993.
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Apesar de forte, a paixão pelo Jabuca é recente, assim como o hábito de frequentar campos de futebol. Depois que sua mulher, Rosina, morreu, em 1998, Barreto ficou sete anos sem sair de casa. “Uma vez meu filho veio me visitar e, quando chegou, eu estava aos gritos com uma foto dela nas mãos. Foi uma fase muito difícil”, conta. Para complicar, em 2002, ele teve um infarto. Passado o período mais difícil, Barreto começou a participar de um grupo de terceira idade perto de sua casa e a viajar para a colônia de férias dos comerciários. Na Praia Grande conheceu Aldo Perez Urdiale, hoje com 62 anos, que se tornaria seu amigo inseparável. “Eu estava perto da colônia e tinha o hábito de andar com muitas correntes de ouro. Quando ele chegou perto, logo pensei que fosse me assaltar. Cheguei até a pensar se daria tempo de correr”, recorda-se. Aldo, por sua vez, diz que se aproximou para avisá-lo que era bom tomar cuidado para não ser assaltado.
A partir dessa conversa, começou a amizade entre esses dois homens muito diferentes. Barreto é de uma família portuguesa e tem dois filhos, um médico e um engenheiro. Diz que teve uma educação muito tradicional e rígida. Não costumava ir a estádios, nem frequentava festas populares. “Eu não gostava disso, achava coisa de maloqueiro, de vagabundo”, admite Barreto, que hoje conta orgulhoso das suas experiências no sambódromo e exibe a camiseta de uma das alas da escola que frequenta com o amigo. De longe, torcia pelo Corinthians e pelo Benfica, de Portugal. Foi diretor acionista da Dias Martins S/A, empresa de secos e molhados que era da família de sua mulher. Gosta de falar não só do sucesso profissional de seus filhos, como de parentes que ocupam cargos importantes em outras regiões do Brasil.
Descendente de espanhóis, Aldo nasceu em Álvares Machado, na região de Presidente Prudente, e migrou com a família para São Paulo quando tinha três anos. Com oito irmãos, estudou apenas até o quarto ano primário, teve de deixar a escola para ajudar no sustento da família. Trabalhou na linha de produção da Philips, fez muitos bicos e, apesar de estar aposentado, ainda trabalha como vendedor de produtos de Natal.
Aldo nunca se casou e nem teve filhos. Desde que chegou a São Paulo, vive na região da Penha, Zona Leste. Toca saxofone e violão e conta que costumava participar de bandas. Frequenta a quadra da escola de samba Nenê da Vila Matilde e garante que torce pelo Jabaquara desde a infância. Os irmãos e sobrinhos são em sua maioria corintianos, mas há também são-paulinos e palmeirenses. Diz que é anarquista e fã do revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara.
Viu pela primeira vez um jogo do Jabuca em 1960, uma vitória por 3 a 2 contra o Corinthians. Desde então, por influência da origem espanhola, é fanático pelo time, que originalmente se chamava Hespanha e tem como cores o vermelho e o amarelo, como a Fúria, apelido da seleção da Espanha. No dia em que encontrou o repórter e o fotógrafo que o acompanhariam ao estádio para ver o jogo entre o Jabaquara e o Jacareí, fez questão de entregar uma pasta com 20 páginas com as histórias do time, escritas à mão. Na capa, desenhou o leão, mascote do clube e seu brasão – três círculos com as letras J, A e C, de Jabaquara Atlético Clube. Sua intenção é deixar a casa em que mora como herança ao Jabuca.
Os amigos vão juntos a teatro, shows, ensaios e apresentações de escolas de samba. Mas o Jabaquara é a prioridade. O clube tem até um estádio, o Espanha, no bairro Caneleiras, que passou por uma reforma, mas ainda não recebeu autorização da federação para promover os jogos do campeonato. O Jabuca, que já foi chamado Leão do Macuco, bairro em que ficava sua sede, hoje é o Leão de Caneleiras.
Aldo sai de sua casa na véspera do jogo e vai dormir na casa do amigo. Lá, tem até um quarto para ele. “Logo que casei com a Rosina, perdemos um filho. Hoje, para mim, o terceiro filho é o Aldo”, diz Barreto. Assim, os dois podem sair cedo no dia seguinte. Uniformizados, com faixas e bandeiras, seguem para o jogo.
No caminho, falam do ambiente familiar da torcida e do clube e me convidam para o baile anual do Jabaquara, realizado sempre em novembro, mês de sua fundação. “Os meninos da Fúria Rubro-Amarela e da Jovem Jabuca (as torcidas uniformizadas) são muito legais. A gente pede para não falarem palavrão durante o jogo porque há muitas mulheres na torcida”, afirma Aldo.
Os dois contam que se tornaram recentemente conselheiros do Clube e falam do grande projeto da atual diretoria: fazer com que o time dispute a primeira divisão do Paulista em 2014, ano do centenário do clube. Para isso, o Jabaquara conta com a parceria do Litoral Futebol Clube, time criado por Pelé e pelo ex-ponta-direita Manoel Maria, com quem jogou no Santos.
O grande terreno da sede do clube, em Caneleiras, região pobre de Santos, foi um dos atrativos que levaram o Litoral a fechar parceria com o Jabuca, que começou efetivamente no ano passado, explica Manoel Maria, gerente de futebol do time. O Litoral também ajuda na reforma do estádio Espanha e ainda está construindo ao lado um centro de treinamentos com alojamento, que será utilizado pelo time profissional do Jabaquara e para a formação de novos jogadores. O centro e o estádio ficarão nas mãos da parceria em regime de comodato. Quando algum dos atletas formados pela parceria for vendido, o clube deverá ficar com um percentual do valor. Por enquanto, parte dos treinamentos é dada no estádio Espanha e a outra metade no campo do Litoral.
Nada mais irônico que uma parceria entre Pelé e o Jabaquara. O craque, segundo as lendas, ameaçou voltar para Bauru, onde sua família morava, depois de perder uma cobrança de pênalti em um jogo de juvenis contra o time aurirrubro, em 1956. A defesa do goleiro Fininho, segundo alguns, garantiu a vitória do Jabuca. Outras versões garantem que o Santos venceu por 4 a 2.
No ano seguinte, o Santos, mesmo com Pelé, Pepe, Zito e Pagão em campo, sofreu uma das maiores derrotas para o rival: 6 a 4, na Vila Belmiro. O Pelé do jogo foi o atacante Wilson Sório, o Melão, do Jabaquara, autor de quatro gols (três, segundo outras fontes).
Antes de entrar no estádio, paramos em um boteco ao lado. Aldo toma umas doses de jurubeba, comemos alguns salgados e tomamos cerveja. “A gente sempre para aqui, não vou fingir que não bebo porque estou com vocês. Não quero sair na reportagem diferente do que sou”, afirma.
A partida é no Ulrico Mursa, estádio da Portuguesa Santista. Os dois conversam com integrantes da comissão técnica, outros dirigentes e a maioria dos torcedores que lá estão. As torcidas decoram a arquibancada com faixas e bandeiras.
Márcio de Miranda, presidente da Jovem Jabuca, leva a bandeira que é um dos orgulhos dos jabaquarenses: o rosto em vermelho, com um fundo amarelo, do jovem Gilmar dos Santos Neves. O goleiro, bicampeão mundial pelo Santos (1962/1963) e pela Seleção Brasileira (1958/1962), é o maior craque revelado pelo clube.
Baltazar, o Cabecinha de Ouro, que fez sucesso no Corinthians e disputou as copas do mundo de 1950 e 1954, e Pagão, do Santos e do São Paulo, são outros exemplos de grandes jogadores que passaram pelo Jabuca. Pagão é o grande ídolo de Chico Buarque no futebol. Outro nome importante da história do Jabuca é Filpo Nuñez, técnico a quem é atribuída a criação da Academia de Futebol do Palmeiras, como ficou conhecido o time que fez sucesso nos anos 1960 e 1970. Argentino, Filpo foi o único estrangeiro a dirigir a Seleção Brasileira. Aconteceu em 1965, quando o elenco completo do Palmeiras representou o Brasil contra o Uruguai na inauguração do Mineirão. Vitória brasileira (palmeirense) por 3 a 0.
Mas o presente não tem o mesmo charme do passado. O gramado não faz jus a esse título. No meio do barro, o jogo é pegado. Está mais para as crônicas em que o dramaturgo Plínio Marcos falava sobre o seu querido Jabuca. Nelas, relata um time que se impõe muitas vezes pela garra e força, com alguns toques de malandragem. Ele próprio chegou a ser ponta-esquerda do time juvenil. Aldo e Barreto se esquecem do manual de boas maneiras sugerido por eles mesmos e são os primeiros a xingar o árbitro. Ainda mais quando, no primeiro tempo, ele expulsa um jogador do Jabuca, em um lance que poderia ser punido apenas com o cartão amarelo. Minutos depois, o homem do apito expulsa um jogador do Jacareí. A sensação dos torcedores é de que foi uma maneira de compensar o excesso de rigor do lance anterior.
Após o intervalo, os jogadores do Jabaquara voltam com camisetas limpas, mas continuam com os calções sujos da lama do primeiro tempo. Reforçada por um torcedor da Portuguesa Santista, a banda da Fúria Rubro-Amarela não para de tocar e cantar refrões de incentivo ao time. Alguns torcedores berram o espanholado “Arriba, Jabuca”. No meio dessa pressão, em um lance mais de raça que de talento, sai o gol do time santista. Felizes com a vitória suada, Aldo e Barreto garantem que viajarão para o próximo jogo, que será no Vale do Paraíba. Eles contam que, em algumas partidas pelo interior e Grande São Paulo, chegam a ser os únicos torcedores a acompanhar a equipe. Dez dias depois, com duas derrotas no interior, o time era eliminado na segunda fase do campeonato, mas o projeto para 2014 continua.
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