A primeira reunião formal para discutir o cenário de um possível novo governo começou, de forma discreta, em jantar realizado em 4 de agosto do ano passado, oito meses e meio antes da sessão da Câmara que aprovou a continuidade do processo de julgamento da presidenta Dilma Rousseff no Senado. Foi um dia depois da prisão do ex-ministro José Dirceu.
A crise econômica do País se agravava e havia indícios de que o cerco da Operação Lava Jato se fechava sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – a maior liderança petista. No apartamento do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), senadores tucanos receberam o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e integrantes da cúpula do PMDB – os mesmos que hoje articulam a formação do governo Temer.
O tema impeachment já estava nas ruas e nas conversas das oposições desde março daquele ano. Mas o jantar teve duas características inéditas: reuniu parlamentares da oposição e do governo e tratou do eventual futuro governo sob o comando do PMDB. Os antigos aliados do governo Fernando Henrique Cardoso concordavam em um ponto: o governo Dilma não conseguiria superar a crise econômica e o desgaste político gerado pela Lava Jato. Só que tinham dúvidas se seria aquele o momento de desencadear o processo legal de impeachment da presidenta.
Naquela noite fria e seca, o seleto grupo analisou, ainda de forma contida, os cenários de um possível novo governo liderado pelo vice Michel Temer. Todos sabiam que estava ali a futura base da sustentação política.
Os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e José Serra (PSDB-SP), especialistas em economia, descreveram um quadro grave, com a perspectiva de piora. Os investimentos públicos cairiam e aumentaria o desemprego. Com a perda de autoridade do governo, deputados começariam a praticar aventuras fiscais, com a aprovação de “pautas-bomba” que ampliariam o déficit orçamentário, alertou Serra. As previsões seriam confirmadas na sequência, mas, naquele momento do jantar, o grupo concluiu que o impeachment não estava maduro. No encontro, também estavam os líderes do Senado Eunício Oliveira, PMDB (CE), e Cássio Cunha Lima, PSDB (PB), além de Napoleão Bernardes, prefeito de Blumenau, Marcos Vieira, presidente do PSDB de Santa Catarina, Aécio Neves, presidente nacional do PSDB, e o senador Aloysio Nunes Ferreira (SP), ex-vice na chapa de Aécio nas eleições de 2014.
Já em dezembro daquele ano, logo depois de ser derrotado nas urnas, Aécio se manifestava de forma violenta contra o governo. Na véspera da votação do projeto que desobrigava o governo a economizar o que estava previsto no ano, o senador afirmou a seus aliados no Congresso: “Nós vamos perder, mas vamos sangrar esses caras até de madrugada”. Naquele momento, Aécio era o rosto da insatisfação com o governo. Três meses depois, em março, Aloysio Nunes afirmava ser contra o impeachment. Justificava: “Não quero que ela saia, quero sangrar a Dilma, não quero que o Brasil seja presidido pelo Michel Temer”.
Lenha na fogueira
A articulação pelo impeachment teve avanços e recuos. No final do mês de abril, discutia-se até a possibilidade de antecipar as eleições presidenciais. Uma semana depois do jantar em que foi servido tainha, peixe típico de Santa Catarina – sugestão de Jereissati e mencionada nos aventais usados pelos senadores, que também têm impressa a data do encontro –, Renan reuniu-se com Joaquim Levy, então ministro da Fazenda, e Nelson Barbosa, que era do Planejamento e hoje está na Fazenda, na residência oficial do Senado, e apresentou medidas para enfrentar a crise econômica, a chamada “Agenda Brasil”. As propostas ficaram no papel, em sua maioria, mas a mobilização deu novo fôlego a Dilma.
Porém, a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de propor a rejeição das contas da presidenta, em 7 de outubro, colocou lenha na fogueira do impeachment. O pedido formal de abertura do processo seria feito em 21 daquele mês e autorizado em 2 de dezembro pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), como resposta à decisão da bancada petista de votar contra ele no processo de cassação no Conselho de Ética da Casa. Mas o governo Dilma resistiu naquele final de ano. A oposição fez as contas e percebeu que não teria maioria de dois terços para aprovar o impeachment naquele momento. O PSDB chegou à conclusão de que seria melhor aguardar pela decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre supostas irregularidades nas contas eleitorais de Dilma.
O rompimento com Temer veio em seguida, em 7 de dezembro. Ele enviou a Dilma uma carta cheia de mágoas pelo papel “secundário” que tinha no governo. Ele seria apenas um “vice decorativo”. “Sei que a senhora não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã”, desabafou. Os meses seguintes mostrariam que a presidenta tinha razão na sua desconfiança.
O processo de impeachment foi ganhando força na Câmara na volta do recesso parlamentar. A crise econômica se agravou, os empresários perderam a confiança e começaram a ver um possível governo Temer como uma alternativa. Assim, foi se formando o caldo de cultura para o afastamento da presidenta. Grampos telefônicos comprometedores para Lula, divulgados pelo juiz Sergio Moro, foram a pá de cal. O PSDB esqueceu o julgamento do TSE e embarcou com tudo no impeachment. Seus líderes entenderam que a crise econômica se agravaria muito até que o tribunal tomasse uma decisão.
Enquanto ainda contabilizava os votos para a aprovação do impeachment na Câmara, a cúpula do PMDB preparava o seu programa de governo e escolhia os nomes para os principais postos. A base do plano é o documento Uma Ponte para o Futuro, lançado em setembro do ano passado, com foco na área econômica.
Se acontecer, o primeiro passo do novo governo será fazer um ajuste fiscal duro, rigoroso. Mas o principal destaque são as medidas liberais, para aumentar o espaço da iniciativa privada. A ampliação das concessões públicas tem como meta a arrecadação de bilhões de reais. Para tanto, serão impostas tarifas que atendam às expectativas das empresas, ou seja, com preços de mercado e sem subsídios públicos. Quem pagará o preço serão os consumidores dos serviços concedidos.
Algumas propostas são polêmicas e de difícil aprovação no Congresso Nacional, como a elevação da idade mínima de aposentadoria para 65 anos no caso dos homens e para 60 para as mulheres. As desvinculações constitucionais das verbas destinadas à saúde e à educação também terão uma tramitação complicada no Parlamento. Programas sociais, como o Bolsa Família, também devem sofrer alterações. Essas conquistas foram asseguradas na Constituição de 1988.
O plano Temer prevê ainda o fim do regime de partilha no setor de óleo e gás, retornando ao regime anterior de concessões. Na área de comércio exterior, ele pretende buscar acordos com os Estados Unidos, Europa e Ásia, mesmo sem a participação do Mercosul. Para os trabalhadores, novas perdas: flexibilização na área trabalhista, com as convenções coletivas prevalecendo sobre as normas legais, e o fim de indexações para salários e benefícios previdenciários.
Os deputados do PT e demais partidos de esquerda sabem desses planos e se preparam para uma feroz oposição no Congresso, enquanto a presidenta aguarda o julgamento pelo Senado, previsto para este mês de maio. Os líderes do PMDB apostam na unidade da frente parlamentar que apoia o impeachment para aprovar no Congresso as medidas amargas que se avizinham. “Para curar, o remédio tem que ser amargo”, argumenta um integrante da cúpula peemedebista. Mas a turma de Temer tem um temor: os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Primeiro porque o atraso em algumas obras antevê dificuldades operacionais. Eles também têm informações de que movimentos sociais, como o MST e a CUT, estão se preparando para vigorosos atos de protesto na sede dos jogos, com visibilidade mundial.
Michel Temer se prepara para assumir a Presidência arquitetando seu time. Para a área econômica, seu nome preferido era Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central no governo FHC, bem aceito pelo mercado financeiro internacional. Com a recusa do economista, o preferido agora é Henrique Meirelles, ex-presidente do BC no governo Lula. José Serra desejava o cargo, mas Temer prefere contar com ele em qualquer outra pasta. Nem o PSDB quer o senador na Fazenda. Para o partido, se a economia melhorar em um eventual governo Temer, apenas Serra lucraria com isso, com vista a 2018 – assim como aconteceu com Fernando Henrique Cardoso em 1994. Mas, se não der certo, a legenda também perderia na próxima disputa presidencial.
Os ex-ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco, do PMDB, deverão ocupar a Casa Civil e a Secretaria-Geral da Presidência. Franco foi o coordenador do plano básico do possível governo Temer, elaborado pelos economistas Delfim Netto, Marcos Lisboa e José Márcio Camargo. Ex-ministro nos governos FHC e Dilma, Nelson Jobim foi cotado para o Ministério da Defesa, pela liderança junto aos comandantes militares. Mas pode ser uma opção também para o Itamaraty. Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ajudaria a desconstruir internacionalmente a imagem de que o impeachment é um golpe de estado disfarçado.
Temer quer formar um ministério com “notáveis”. Cabe nessa lista o nome do ex-presidente do STF Ayres Britto, lembrado para o Ministério da Justiça. Na mesma categoria, o ex-ministro de Lula Roberto Rodrigues poderá ficar com o Ministério da Agricultura. O problema é que o governo deverá ter, no máximo, 22 ministérios. E precisará abrigar os políticos que apoiam o impeachment. Assim, também podem ficar com a Agricultura os deputados Marcos Montes (PSD-MG), coordenador da Frente Parlamentar da Agropecuária na Câmara, ou Arnaldo Jardim (PPS-SP), ex-secretário de Agricultura de São Paulo.
Os temores de Temer
Se o afastamento de Dilma Rousseff for aprovado pelo Senado, o governo provisório de Temer terá início imediato, mas enfrentará duas ameaças. A primeira será a abertura de um processo de impeachment pela edição de decretos com abertura de créditos sem autorização do Congresso, no dia 7 de julho no ano passado – semelhantes aos editados por Dilma e que embasaram o pedido do seu impeachment.
As fontes de financiamento dos decretos da presidenta e do vice são as mesmas: superávit financeiro, excesso de arrecadação e anulação de dotações orçamentárias. Ao propor a rejeição das contas de Dilma, em 7 de outubro de 2015, o TCU desconsiderou as anulações de dotações porque não implicam acréscimo de despesas. As duas primeiras fontes foram consideradas irregulares.
Em resposta a ofício enviado ao TCU pelo deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA), o procurador de contas Júlio Marcelo de Oliveira afirmou que os decretos assinados por Temer foram editados antes do envio ao Congresso do projeto de lei de alteração da meta fiscal de 2015 (PLN 5/2015), em 27 de julho. A decisão do TCU no julgamento das contas presidenciais considerou apenas os decretos editados após o envio do PLN 5, todos assinados por Dilma.
Júlio Marcelo foi quem descobriu e denunciou ao TCU a prática de novas “pedaladas fiscais” e a edição de decretos sem autorização legislativa por Dilma em 2015. Questionado se é certo que o governo não sabia, em 7 de julho, quando Temer assinou os decretos, que haveria mudança da meta fiscal, o procurador responde: “Teria de haver produção de provas. O projeto de lei é uma prova direta, é uma confissão. Pode ser que dois meses antes já soubesse, mas teria que buscar elementos de prova”.
Ele acrescenta que o vice-presidente não tem nenhuma influência na gestão da máquina pública. “Em geral, não participa da gestão. O documento chega com parecer do Ministério da Fazenda, do Planejamento. Então, não é razoável imaginar que um vice-presidente vá sentar ali e querer entender profundamente tudo aquilo. É melhor não assinar. Eles não deviam assinar. Para fins de impeachment, de acordo com o que o Cunha entendeu no despacho dele, não haveria nem um ato atribuível a ele (Temer)”.
Os decretos assinados por Dilma e Temer foram editados sem número – embora tenham uma numeração para controle interno. Não se trata de uma ilegalidade, mas essa prática diminui a transparência do processo. Seria mais fácil encontrá-los se tivessem número.
A segunda ameaça a Temer é o processo que julga as contas da campanha de Dilma no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Temer quer ser julgado separadamente. E já surgem brechas para salvar o vice-presidente. Questionado sobre o tema recentemente, o ministro Gilmar Mendes, que vai assumir a presidência do tribunal em 12 de maio, lembrou de uma decisão que poderia ser usada como referência.
Trata-se do caso envolvendo o ex-governador de Roraima Ottomar Pinto e o seu vice Anchieta Júnior. O governador eleito em 2004 morreu três anos depois, quando respondia a processo por abuso de poder econômico e político nas eleições. No TSE, Anchieta foi absolvido das acusações contra a chapa. “O tribunal respondeu que as imputações não eram transferidas ao seu vice porque a prática é atribuível ao titular”, afirmou Mendes.
Mas a decisão do TSE, tomada em dezembro de 2009, diz que, de acordo com o princípio da “indivisibilidade” da chapa única majoritária, “a apuração de eventual censura em relação a um dos candidatos contamina a ambos”. O acórdão lembra que o artigo 91 do Código Eleitoral diz, expressamente, que os registros de candidatos a presidente e vice-presidente ocorrerão “sempre em chapa única e indivisível”. Anchieta foi absolvido, na verdade, porque o tribunal considerou inconsistentes as provas apresentadas contra a chapa Ottomar/Anchieta.
Deixe um comentário