Artigo: Por que o operativo da prefeitura no bairro da Luz foi bem-sucedido

Cracolândia - Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil (21/01/2013)
Cracolândia – Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil (21/01/2013)

Desde que o programa De Braços Abertos foi implantado, a Polícia Militar parou de assediar os moradores da chamada cracolândia. No centro do denominado fluxo, organizou-se um corredor onde pessoas sentadas atrás de mesinhas ofereciam, em pratos, pedras de crack bem maiores que as costumeiras. Os vendedores não eram, como antes, pessoas que chagavam a pé ou em bicicleta para oferecer pedras e iam embora. Quem os garantia?

Essa situação atentava contra o programa De Braços Abertos (DBA), pois esses vendedores convocavam para o trabalho de comercialização de crack e outra drogas ilegais infinitamente mais rentáveis que o da varrição, produção de mudas na “Fábrica Verde”ou qualquer outro proposto pelo projeto. A prefeitura não podia permitir essa ocupação do espaço público, mesmo porque quando foi desmanchada a primeira favela e iniciado o programa com ingresso aos hotéis, trabalho, alimentação, tratamento de saúde, saúde mental e saúde bucal, foi acordado que eles não iriam montar mais barracas.

Por isso foi organizado um mutirão que contou com a participação dos dois consultórios na rua que operam na região, os técnicos de saúde mental dos CAPS do centro, os técnicos da Secretaria da Assistência Social, os da Secretaria de Trabalho, os da Secretaria de Direitos Humanos e a Guarda Civil Metropolitana. Foi montada uma intervenção em vários passos: primeiro limpeza da área, retirada das barracas ao passo que foram incluídas 80 pessoas novas no Programa de Braços Abertos, com prioridade às grávidas e pessoas mais debilitadas. Outros foram acolhidos pela Secretaria de Assistência Social.

Tudo foi negociado e o grupo de trabalhadores da prefeitura operou de maneira integrada, com autoridade, firmeza e sem autoritarismo.

A Folha de S.Paulo, capciosamente, disse que a prefeitura negociou com traficantes….. Ia negociar com quem? A absoluta maioria dos moradores da região vendem para poder consumir. E o processo, que interveio numa população problemática de aproximadamente 600 pessoas, deu certo porque atuou de modo planejado, integrado e com comando único. Na reunião preparatória levantamos o risco da entrada da Policia Militar na cena, porque a prefeitura não tem comando sobre uma corporação absolutamente despreparada para lidar com essas pessoas, e com triste história. Só para se ter uma ideia, os usuários narravam que, em 2011 e 2012, policiais competiam com estilingues para acertar “noias”. E prenderam inúmeros usuários se aproveitando das imprecisões da lei, que não diferencia claramente usuário de traficante.

Quando começou o DBA, foi feito um encontro com os trabalhadores do Estado e da prefeitura, suas respectivas autoridades, com o objetivo de operar de modo articulado como prevê o programa Crack é Possível Vencer (programa do governo federal), e como acontece a contento em várias cidades brasileiras, mas horas depois a policia civil estava jogando bombas de efeito moral no chamado fluxo.

Lembro-me também que antes de lançar o programa DBA foram feitas assembleias no Ponto de Apoio da rua Helvétia. Cada vez que os técnicos da prefeitura convocavam assembleia aparecia uma viatura de policia na porta desse centro. Mesmo assim os usuários foram se aproximando, as assembleias aconteceram e foi numa delas que se decidiu o nome do programa.

Merece destaque especial a atuação da Guarda Civil Metropolitana, que operou de maneira integrada sem responder a provocações. Podia-se ver os GCMs circulando livremente pelo território em meio a mobilização geral. Eles estão ganhando o respeito dos usuários à diferença do medo e ódio que manifestam pelos PMs e policiais civis de São Paulo. Em outras zonas de uso, como a de Recife, os policiais são respeitados e os usuários não fumam na frente de autoridades, nem de equipes de assistência ou saúde. Gostaríamos muito de ter uma polícia respeitável e sabemos da humanidade de tantos policias que fazem parto em viatura e têm senso de cidadania. A atuação da Guarda Civil Metropolitana, acostumada a outras práticas, foi um dos grandes trunfos da ação.

Em vez de competir com o município e de bombardear o principal programa de tratamento de moradores de rua que usam drogas adulteradas e nocivas, o Estado deveria operar de maneira integrada e reconhecer que seu Programa Recomeço é um fracasso: não é com “crueldade e sofrimento” e sem a necessidade do consentimento do usuário, como afirmam Ronaldo Laranjeira e Marcelo Ribeiro no livro Tratamento do Usuário de Crack, que as pessoas mudarão de vida.

Não é com aumento do encarceramento que se diminui a violência.

O governador deveria conhecer o Programa Atitude iniciado pelo falecido Eduardo Campos, que mobilizando todas as instâncias da segurança, dos direitos humanos, conselhos e outros representantes da sociedade civil e perante a constatação de altos índices de violência e mortes de usuários e pequenos traficantes, organizou um programa de diminuição da mortalidade e encarceramento que conseguiu, em quatro anos, reduzir esses índices pela metade. Resultado: Pernambuco foi o único Estado do Nordeste onde se diminuiu a violência segundo os dados de 2014.

A prefeitura devia se preocupar também com essa situação, pois uma alta porcentagem de beneficiários do DBA está presa. Este é um verdadeiro buraco do Programa DBA. E os que trabalhavam nas barracas, sem usar e ganhando importantes somas de dinheiro, estavam lá garantidos vai saber por quem.

Está na hora de ter ousadia e aumentar o número e a qualidade de moradias. Tem muita gente nas ruas e os abrigos são equipamentos antiantropológicos. Eles não querem ir para esses locais.

Esta na hora de lançar Salas de Uso Seguro. Só dessa forma é possível cortar a relação de dependência com os traficantes e diminuir o dano por drogas adulteradas, como já foi mensurado Foi constatado, no mundo inteiro, que são esses adulterantes os que provocam overdoses e outros agravos à saúde.

Mas as drogas não só alteram a percepção dos drogados, também afetam os não drogados, recentemente um deputado do PDT parabenizou o fuzilamento de um compatriota esquizofrênico.

Talvez esse seja o maior desafio: parar de tratar pobres que usam drogas como inimigos e combater a ignorância.

*Antonio Lancett é psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec)  

Psicanalista Antonio Lancetti - Foto: Reprodução/camara.sp.gov.br
Psicanalista Antonio Lancetti – Foto: Reprodução/camara.sp.gov.br

 


Comentários

4 respostas para “Artigo: Por que o operativo da prefeitura no bairro da Luz foi bem-sucedido”

  1. Avatar de Eduardo Losicer
    Eduardo Losicer

    Leitura obrigatória

  2. Avatar de Elissandra
    Elissandra

    Para leitura!

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