De um lado, a multinacional Rhodia querendo mudar o gosto brasileiro por tecidos naturais pelo fio sintético, criado em laboratório. De outro, as propostas pouco convencionais do publicitário italiano Livio Rangan. Essa parceria revolucionou a comunicação da marca, e a Rhodia, que nunca fez moda, ironicamente acabou fazendo história ao unir, no início dos anos 1960, indústria têxtil, artes plásticas, teatro e música. As roupas criadas apenas para divulgar a então nova tecnologia saíam das tesouras de costureiros (ainda não existia o termo estilista), a partir de estampas criadas por artistas plásticos, e eram apresentadas em desfiles-espetáculos que marcaram época.
A temporada de desfiles, de fato, colocou o fio sintético no armário predominantemente feminino em peças além das íntimas, como vestidos, saias, calças e blusas, como a cacharel – quem lembra? Mas, em 1972, dois anos depois da saída de Livio Rangan da Rhodia, parte das coleções acabou acomodada no acervo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Pietro Maria Bardi (1900-99), que dirigiu o museu desde sempre, enxergou nelas potencial de obra de arte. Estava certo. Agora, depois de 43 anos, voltam a ser expostas em manequins estáticos. São 79 roupas em que prevalecem, no corte e nas estampas, os conceitos artísticos da época – a op art, o pop, o cibernético, o figurativo.
Patricia Carta, diretora da Harper’s Bazzar no Brasil e uma das curadoras da exposição, enaltece a importância de abrir esse acervo. “Esta é uma mostra inédita e um dos desejos do Bardi era justamente travar uma discussão entre arte e outros campos artísticos, apesar de as roupas não terem sido pensadas nem como arte nem como varejo.”
Mas o cenário da época era bom para a indústria no País. Brasília tinha acabado de ser inaugurada, a economia crescia e havia uma forte intenção de imprimir uma identidade nacional. A Europa, que já usava minissaia, tinha Pierre Cardin, Paco Rabane, André Courrèges. A moda brasileira também sonhava com uma cara própria e contava com desenhos de Dener Pamplona, Clodovil Hernandez, Guilherme Guimarães e Alceu Pena. Rangan e eles já entendiam o corpo como suporte de novas propostas de percepção. Somado a essa ideia, um time de artistas plásticos, especialmente do Nordeste, criou estampas para traduzir o momento brasileiro.
O cearense Aldemir Martins, por exemplo, usou cangaceiros, cactos e futebol em suas estampas. Carmélio Cruz, também do Ceará, se inspirou em motivos afros. Os pernambucanos Francisco Brennand, Gilvan Samico e Lula Cardoso Ayres usaram flores, cores e também futebol, nessa ordem. Carlos Vergara, gaúcho de Santa Maria, brincou com cores, assim como os paulistanos Hercules Barsotti e Nelson Leirner. Até Carybé, que nasceu na Argentina, mas se naturalizou brasileiro, entrou no time da Rhodia.
O primeiro desfile aconteceu em 1961 na Fenit (Feira Internacional da Indústria Têxtil), no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Impactou, mas não muito. Depois, no entanto, com a coleção Brazilian Look, o evento da Rhodia ganhou proporções. Com cenário que enaltecia o Brasil, o desfile recebeu mais um ingrediente importante: as jovens modelos apresentaram as roupas com cortes geométricos, retos e simplificados, confeccionadas com os fios sintéticos, ao som do pianista Sérgio Mendes e do Sexteto Bossa Rio.
Depois vieram outros artistas. Rita Lee fez seu primeiro show solo, sem os Mutantes, em um desfile da Rhodia. O jornalista e crítico musical Carlos Calado, em A Divina Comédia dos Mutantes, conta: “Além de cantar e dançar, interpretava o papel de uma garota caipira, a Ritinha Malazarte, acompanhada por um bandinha interiorana. A coleção exibida por Rita e as manequins do elenco (entre elas Mila Moreira, que depois veio a se tornar atriz) adaptavam para o contexto brasileiro a moda paysan, inspirada no vestuário das camponesas europeias”.
A máquina de vender o fio sintético também criou a Brazilian Octopus, banda instrumental de Hermeto Pascoal que foi formada sob encomenda por Rangan para tocar nos desfiles e chegou a lançar um álbum em 1970. Mas muitos outros passaram por ali: o produtor Roberto Palmari, os maestros Rogério Duprat e Diogo Pacheco, o bailarino Ismael Guizer, o ator Paulo José, os cantores Jorge Benjor (que era só Jorge Ben) e Tim Maia, entre outros.
As criações, claro, atiçaram o mercado editorial e as revistas Claudia, do grupo Abril, Jóia, da editora Bloch, e O Cruzeiro, dos Diários Associados, também foram grandes parceiras.
Nos anos 1980, a Rhodia era mesmo sinônimo de modernidade. Montou um casarão na avenida Brasil, em São Paulo, onde organizou outros eventos de moda badalados, mas sem a riqueza dos espetáculos de Rangan, que seguia na publicidade com a Gang Propaganda – na agência, ele deu vida a personagens memoráveis, como a “barata falante” do inseticida Rodox, numa experiência que durou até a sua morte, em 1984.
Há pouco mais de quatro anos, a Rhodia foi adquirida pela belga Solvay – o Brasil é o único país a manter a antiga marca da empresa francesa, quase centenária no mercado local. Renato Boaventura, presidente da unidade global de negócios, afirma que os tempos de glória na Fenit foram um momento de a Rhodia trazer tecnologias para o Brasil. “Agora, é a partir do Brasil que desenvolvemos tecnologia para o mundo.”
Ele se refere aos fios inteligentes que a empresa desenvolve em Santo André, na Grande São Paulo. O amni soul eco é o primeiro do mundo que tem a qualidade de ser biodegradável. Foi lançado no ano passado durante a São Paulo Fashion Week, em uma parceria com o estilista Ronaldo Fraga. O outro é o emana, que possui aplicações em roupas e acessórios, como lingeries, jeans e moda fitness. “Introduzimos minerais nessa fibra que interagem com o corpo, melhorando a qualidade da pele, a firmeza e a elasticidade, além da circulação sanguínea”, garante Boaventura.
Arte na Moda: Coleção Masp Rhodia
Masp – Avenida Paulista, 1.578, Cerqueira César, São Paulo.
De 23 de outubro a 14 de fevereiro de 2016.
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