[04 de 100] As aventuras do herói beatnik real

Ao morrer de overdose à beira dos trilhos de uma linha férrea, no México, no dia 4 de fevereiro de 1968, aos 42 anos de idade, o americano Neal Cassady nem fazia ideia de que a eternidade o esperava, graças ao único livro que escreveu. Nem mesmo sabia se o mesmo seria publicado. Somente um ano depois, o manuscrito do que seria a história de sua vida foi encontrado em uma gaveta de sua casa. O material editado só chegaria às livrarias americanas em 1971. Quem leu ficou com um profundo pesar de ele não ter vivido para contar o resto – isto é, ter escrito o complemento que prometeu. O próprio Cassady denominou a obra de O Primeiro Terço, com a aparente terça parte de suas memórias – embora termine quando tinha apenas 8 anos de idade. 

 O gosto de quero mais dos leitores se deve ao fato de que o breve volume havia se mostrado uma pequena joia de qualidade narrativa e literária das mais prazerosas, além de seu valor histórico inestimável. Em 1979, uma nova versão foi encontrada, mais trabalhada e completa, a mesma que seria lançada no Brasil em 1986, pela editora gaúcha L&PM. Caroly Cassady, sua viúva, afirmou depois que o texto de O Primeiro Terço permitia obter “uma compreensão e uma comunicação íntima com Neal, como ele era de fato”. Cassady foi fundamental para a obra e a vida errante de poetas e escritores que, nos anos que seguiriam ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), fundariam a geração beat ou movimento beatnik. Tanto que foi citado diversas vezes em romances e poemas desses escritores.

 O mais importante, porém, foi que Jack Kerouac se inspirou nele para criar Dean Moriarty, protagonista de On the Road (Pé na Estrada), livro capital dos beats. Allen Ginsberg também o cita no poema “Uivo”. Como autor, Cassady publicou em vida um único poema, escrito a quatro mãos com Kerouac, Pull My Daisy. Com essa turma, ele viveu intensamente entre caronas, roubos de carros, prisões, consumo de drogas etc. Não estava ali por acaso porque tinha também pretensões literárias e chegou a escrever um pequeno ensaio, A História da Geração Hip, de 1952.

Em suas memórias, Cassady escreveu a história como um romance de aventura, instigante e sedutora, ao dar vida a si mesmo em terceira pessoa, pelo olhar de um contador de história, na longa introdução. A narrativa principal parte da preocupação de um biógrafo em contar o que interessa: o caminho errante que sua vida tomou na infância e que, na juventude, levou à sua amizade com os beats. O Primeiro Terço é um livro que se lê como um filme noir do final da década de 1940, em um mundo marginal e paralelo à prosperidade que a guerra fria vendia ao mundo, cheio de estradas tortuosas, caminhos incertos e buscas por um destino imprevisível.

 No livro, esse universo é mostrado pelo ponto de vista de uma criança, cuja sensibilidade se volta para o lado menos feliz e vencedor de uma América que quer liderar o mundo: “Entre as centenas de criaturas solitárias que assombravam a parte baixa do centro de Denver, não havia nenhuma tão jovem quanto eu. Dentre aqueles homens sombrios que haviam se dedicado, cada um por sua própria e boa razão, à tarefa de terminar seus dias como bêbados sem vintém, eu sozinho, ao compartilhar de seus modos de vida, lhes apresentava uma réplica da infância para a qual eles podiam, diariamente, voltar um olhar desamparado e, ao ser assim transplantado para o meio deles, tornei-me o filho desnaturado de algumas dezenas de homens derrotados.” Na prática, quando o narrador já era adulto, à margem da conduta moral que se impunha pelas diversas formas de artes, tanto Cassady quanto seus amigos colocaram à prova a tal liberdade que era viver nos Estados Unidos movida pelo consumo intenso de álcool e drogas e até pequenos delitos, como furtos de carros, por exemplo.

 Diferentemente dos seus parceiros, o narrador escreveu para ser facilmente compreendido, em uma linguagem confessional, focada na percepção de uma realidade cruel, carregada de emoção pela escolha cuidadosa das palavras e da formação de frases. “Desde que nos juntamos pela primeira vez à brigada de vagabundos da Larimer, meu pai tinha aguardado impaciente pela chegada do verão e a minha liberação na escola, para que pudéssemos então começar nossa viagem para o leste, pois ele tinha falado do Missouri durante todo aquele ano, e da agradável visita que faríamos especialmente da comida boa e abundante”, anotou ele, sobre o início da aventura em que sua vida se transformou.

A relação do escritor com os amigos beats aparece explicitamente nas poucas cartas trocadas entre eles e reproduzidas no final do livro. Em uma delas, dirigida a Kerouac, de 1947, Cassady revela bem a vida desregrada que levavam, porém de modo despreocupado e descompromissado com o que acontecia à sua volta. “Estou sentado num bar na Rua Market. Bêbado; bem, ainda não, mas logo vou ficar. Estou aqui por duas razões; tenho que esperar 5 horas pelo ônibus para Denver e, em segundo lugar, mas, principalmente, estou aqui (bebendo) por causa, é claro, de uma mulher e que mulher!”. Personagem genuíno de uma época de incertezas, o garoto que nesse livro viveu e cresceu entre vagabundos e pequenos delitos faz aflorar nesse livro comovente a essência de uma revolução literária.

Última edição em português:

L&PM – Coleção Pocket, 1999.

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