As canções de Machado de Assis

Dizem que Deus é brasileiro. Dizem, mas não provam. Já o Diabo, está na cara, é gringo. Mas Machado de Assis é nosso e está entre os melhores do mundo. A ironia fina, o profundo conhecimento da natureza humana, a elegante precisão no uso das palavras fazem com que a obra do primeiro imortal se mantenha atual e surpreendente. Hoje os tempos são outros, alguns novos imortais nem chegaram a nascer, do ponto de vista literário. Mas Machado permanece para nos mostrar o caminho. Isso todo mundo sabe. Que o escritor, ao longo de toda sua vida, manteve uma estreita relação com a música, que ela aparece constantemente em suas tramas regendo o ritmo da narrativa e que publicou nos jornais inúmeras críticas musicais e traduziu libretos de óperas, tudo isso também se sabe. Uma coisa, porém, que pouca gente sabe é que Machado escreveu letras para modinhas, valsas e outras formas de música popular da sua época.

Seus parceiros eram músicos e compositores atuantes no cenário musical brasileiro e que, em meados do século XIX, buscavam uma identidade artística nacional. O som das ruas, colorido pela variedade rítmica e pelas melodias “sincopadas” vindas da África, se mesclava com a música que se tocava nos salões, pura imitação da herança cultural européia. A chegada da polca, de origem austríaca, ao Rio, entre 1844 e 1846, facilitou a mistura. Seu compasso binário se mostrou mais propício para receber as variações rítmicas próprias da música africana. Era o começo da nossa linguagem musical: aos poucos, o maxixe invadia lascivamente os saraus das casas de família. E a música brasileira se tornava mestiça, mulata como Machado de Assis.

Bretão, não te beija os pés
O Machado que não se assumia mulato, que foi por muitas vezes acusado de antinacionalista e que revelava em sua obra a visível influência dos ingleses, estreou na música exatamente para defender o Brasil dos britânicos. O motivo foi a Questão Christie, uma contenda iniciada em 1861 e batizada com o nome do embaixador britânico no Rio de Janeiro à época, William Dougal Christie. O caso é que o embaixador reagiu com indignação à prisão de marinheiros de seu país acusados de fazer arruaça no Rio de Janeiro e exigiu a demissão dos policiais responsáveis pelas detenções, aproveitando para pedir indenização pela carga de um navio recém-naufragado na então Província do Rio Grande do Sul, o Prince of Wales.
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Em meio à batalha diplomática, que durou anos, a marinha da Grã-Bretanha prendeu cinco navios mercantes brasileiros. Dom Pedro II rompeu relações com a Inglaterra. Para ajudar o país a enfrentar o superior Exército britânico, o povo brasileiro passou a organizar manifestações de protesto e de arrecadação de fundos para a compra de armamentos. Uma dessas manifestações, ocorridas já em 1863, teve como palco o Teatro Ginásio e como atração principal a apresentação do “Hino Patriótico”, com música de Júlio José Nunes e letra de Machado de Assis. O maestro Júlio José Nunes regera a ópera A Noite do Castelo, de Carlos Gomes, em 1861, mesmo ano em que Machado publicou seu primeiro livro, Queda que as Mulheres Têm para os Tolos, no qual aparecia como tradutor.

Solteiro, aos 24 anos de idade Machado publicaria em 1863 seu primeiro volume contendo duas peças teatrais, O Protocolo e O Caminho da Porta, e dois anos mais tarde, em 1865, seu primeiro livro de poesias, Crisálidas. Os versos do “Hino Patriótico” figuraram anônimos em forma de anúncio no periódico Semana Ilustrada de 18 de janeiro de 1863, com o título “Hino dos Voluntários”. O produto da venda de certo número de exemplares, com ilustrações do artista Henrique Fleiuss, era destinado, pelos autores, à subscrição nacional em favor do armamento. Machado, como autor da letra, foi identificado nas páginas do Diário do Rio de Janeiro e no Correio Mercantil do dia 21 de janeiro. No Teatro Ginásio, o hino foi recitado e cantado pela atriz Emília Adelaide. O estribilho cantado em coro dizia:

Brasileiros! Haja um brado
Nesta terra do Brasil
Antes a morte de honrado
Do que a vida infame e vil

E numa das estrofes chama o inimigo pelo nome:

Pela liberdade ufana
Ufana de honradez
Esta terra americana
Bretão, não te beija os pés

Saraus e ceticismo
Mais um hino e também com um viés nacionalista, embora agora não político e sim literário, foi outra das composições musicais de Machado, a “Cantata da Arcádia”, em parceria com José Zapata y Amat. Don José Amat, como ficou conhecido por aqui, era um músico espanhol de espírito aventureiro que chegou ao Rio de Janeiro em 1848, foi parceiro de Gonçalves Dias e marcou presença em sua breve estadia de sete anos no Brasil antes de voltar à Europa, onde desapareceu sem deixar pistas. O ano era 1865 e Machado fundava a Arcádia Fluminense, espaço para a realização de saraus literários e artísticos nos salões do Clube Fluminense onde a “Cantata”, na verdade o hino da organização, foi apresentada no dia 25 de novembro. Três dias depois a seção Gazetilha do Jornal do Comércio publicou cinco versos da “Cantata”, que se perderam no tempo. Sobre a Arcádia, escreveu o próprio Machado sob o título “Propósito”, publicado na sua coluna Semana Literária, no Diário do Rio de Janeiro, em 9 de janeiro de 1866, criticando a falta de apoio à produção literária da época e citando a obra Iracema, de José de Alencar:

“A fundação da Arcádia Fluminense foi excelente num sentido: não cremos que ela se propusesse a dirigir o gosto, mas o seu fim decerto que foi estabelecer a convivência literária, como trabalho preliminar para obra de maior extensão. Nem se cuide que esse intento é de mínimo valor: a convivência dos homens de letras, levados por nobres estímulos, pode promover ativamente o movimento intelectual; a Arcádia já nos deu algumas produções de merecimento incontestável, e se não naufragar, como todas as cousas boas do nosso país, pode-se esperar que ela contribua para levantar os espíritos do marasmo em que estão.”

Tantas vezes acusado de despolitizado, Machado pode ser mesmo considerado “um conformista inconformado”, tão bem definido nas palavras de nosso grande poeta João Cabral de Melo Neto.

A pátria e a língua
Além de servir como sede da Arcádia, o Clube Fluminense era também o local em que Machado praticava mais uma de suas paixões e tema de sua literatura, o xadrez. O escritor foi provavelmente iniciado no esporte por outro de seus parceiros na música, o pianista e enxadrista português Arthur Napoleão, que havia chegado ao Rio de Janeiro em 1866. Músico reconhecido, Arthur tornou- se, no Brasil, comerciante de instrumentos e partituras, criando no Rio a Casa Arthur Napoleão & Co., que durante muitos anos estimulou e divulgou a música brasileira, atuando como editora.

A relação de Arthur e Machado foi além da música e do xadrez: a também portuguesa Carolina Xavier de Novais, futura mulher do escritor, veio para o Brasil em companhia de Arthur, na volta de uma das viagens do pianista à terra natal. Assim, em novembro de 1869, o casamento de Machado e Carolina teve como testemunha Arthur Napoleão dos Santos. Com ele, Machado compôs uma valsa para canto, flauta e piano que recebeu o nome de “Lua da Estiva Noite”. A obra consta no álbum de Arthur Napoleão Ecos do Passado, editado em 1881, mesmo ano em que Machado lançou o romance que marcou sua carreira e revolucionou a literatura brasileira, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A canção “Lua da Estiva Noite” até hoje é bem pouco conhecida, mesmo nos meios acadêmicos.

Lua da estiva noite
Que surges no horizonte
Vae por além do monte
Cahir! cahir! cahir!

Depois de fazerem parte da diretoria do Club Polythecnico, primeiro clube de xadrez da capital, Arthur Napoleão e Machado de Assis tornaram-se sócios do Clube Beethoven, fundado em 1882 para servir de palco para novos saraus. Foi no Beethoven que os torneios de xadrez da turma ficaram ainda mais freqüentes. Machado acabou por assumir o posto de bibliotecário do Clube, que tinha como professor de piano o compositor cearense Alberto Nepomuceno. O maestro foi o tradutor para o português do Tratado de Harmonia, de Arnold Schoenberg, que tentou em vão oficializar no Instituto Nacional de Música.

Nepomuceno estudou na Europa e adotou as idéias nacionalistas do compositor e amigo norueguês Edvard Grieg. Tanto é que voltou ao Brasil com o lema: “Não tem pátria o povo que não canta na sua língua”. Em 1899, Alberto Nepomuceno criou, como parte de sua obra Opus 18, uma melodia para o poema “Coração Triste Falando ao Sol”, o oitavo da “Lira Chinesa”, da coletânea Falenas, publicada por Machado em 1870. “Imitado de Su-Tchon” dizia o subtítulo do poema de Machado, pois tratava-se de uma versão em versos para a tradução francesa em prosa feita pela escritora Judith Gautier do poema do chinês Su-Tchon (séculos X/XI).

Judith Gautier (1845-1917) foi uma figura literária importante de sua época, conhecedora da língua chinesa e considerada a única mulher parnasiana. Aos 22 anos de idade, em 1868, ela publicou, sob o pseudônimo de Judith Walters, o Livro de Jade, em que Machado conheceu o tal poema em francês, língua que, diz a lenda, aprendeu na sua juventude humilde com a dona de uma padaria do bairro em que vivia. Da parceria entre Machado e Nepomuceno resultou “Coração Triste”, uma música melancólica em andamento bem lento que compara os ciclos da vida às estações do ano.

No arvoredo sussurra
O vendaval do outono
Deita as folhas à terra
Onde não há florir

Estruturada a partir das três estrofes do poema, “Coração Triste” não é uma canção de amor, mas no canto superior direito da partitura lê-se: “Dedicada à Miss Roxy King”. É uma das várias obras que Nepomuceno compôs especialmente para sua musa, a soprano e professora de canto madame Roxy King Shaw.

Lágrimas de Capitu
Musas ou virtuosas, aqueles anos não eram fáceis para as mulheres talentosas e nem para as sedentas de cultura e informação. O Clube Beethoven e os saraus, por exemplo, elas não podiam freqüentar. Era o caso de Luisa Leonardo, bisneta da Viscondessa de Nassau e afilhada de dom Pedro II, para quem se apresentou ao piano aos 8 anos de idade. Por seu virtuosismo precoce, seus estudos em Paris foram custeados pelo imperador. Em 1880, Luisa tornou-se pianista oficial da Real Câmara de Luis I em Lisboa. De volta ao Brasil, foi prestigiada pela intelectualidade da época, mas não encontrou espaço como musicista. Por isso passou a dedicar-se ao teatro musicado, ao lado de Chiquinha Gonzaga, e a contribuir para A Gazetinha com o pseudônimo de Vítor Luis.

No entanto, a irrequieta pianista, que conheceu a glória e a miséria, tem em sua profícua obra a canção “Inocência”, para a qual foi escrita uma letra em português por Louis Guimarães Junior e “paroles françaises” (conforme consta na partitura) de seu amigo Machado de Assis.

Ton âmeau ciel
Au sein dans ton sein
Ma bien aimé
Tu as la sainte
La sainte pudeur…

A culpa e a inocência, tema fundamental de Capitu, também foram assunto de outra canção de Machado, agora em parceria com Francisco Braga, maestro de origem humilde que conquistou reconhecimento internacional e foi o compositor do nosso belo “Hino à Bandeira”. Braga musicou o poema “Lágrimas de Cera”, outro que havia sido publicado em Falenas. Os versos se desenvolvem sobre uma melodia sofisticada e narram a cena de uma mulher que entra numa igreja e, não podendo denunciar seu pranto, chora através das gotas que escorrem da vela votiva acesa no altar.

O arrependimento expresso na letra, assim como o cuidado em esconder suas lágrimas, nos leva a pensar sobre qual deslize a mulher teria cometido. Seria a própria Capitu insinuando-se nas linhas da canção antes mesmo de surgir na páginas de Dom Casmurro?

… Da vela benta que ardera,
Como tranqüilo fanal
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.
Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, a chama a arder
Chorar é que não podia.

Tudo é música
A forma canção une melodia, harmonia e letra numa narrativa sintética (dois minutos em média) de forte apelo emocional que flutua no ar, passa pelas frestas da janela como o sedutor cheiro de torta de maçã dos desenhos animados. A letra viaja nas asas da melodia. Palavra alada: Ave, Palavra, para citar João Guimarães Rosa, outro de nossos grandes mestres. A canção talvez seja a forma de expressão artística com maior poder de comunicação em nosso iletrado país.

Como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade num poema que se transformou numa bela canção na voz de Milton Nascimento: “Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças”. Quanto à forma, a melodia deve ser marcante e original, mas temperada com certa dose de redundância para que os motivos musicais se desenvolvam com coerência e se fixem na memória. A letra habita uma linha tênue entre a poesia e a linguagem coloquial. Nem tão densa como a primeira, nem tão casual como a segunda. Muitos poemas musicados ficam pesados e não decolam. Assim como um texto desprovido de artifícios poéticos como métrica, rima e prosódia fica aquém das possibilidades musicais da língua cantada.

Boas canções são aquelas que, por serem verdadeiras, alçam vôo leve e fácil. Sobem alto e têm vida longa porque alcançaram a justa medida entre melodia, harmonia e letra. Nas letras criadas por Machado de Assis, as vogais se espicham melismaticamente nos contornos melódicos como nas peças escritas para canto lírico. Embora estivessem em busca de uma linguagem nacionalista, as canções compostas por Machado e seus parceiros eram adequadas aos saraus da intelectualidade burguesa, enquanto nas ruas o povo se entregava ao maxixe e celebrava o nascimento da música brasileira. E, para encerrar, fala o Machado mais uma vez, através do tenor Marcolini:

“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…”


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