As cartas e os livros

Há bastante tempo, eu perambulava pela desfigurada praça Alfredo Issa, em São Paulo, quando comprei em uma banca de livros usados Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio, de Raymundo Faoro. Mais que a obra, chamou-me a atenção uma carta lá dentro. Envelopada, com destinatário e o nome do remetente. Sem resistir, cometi o crime de abri-la.

A missiva era a de um filho na capital paulista para uma mãe no Nordeste. Informava que tudo corria bem. Estava datada de oito anos antes. Decidi selar e enviá-la pelo correio. Estaria ainda viva a mãe? E o missivista? Que efeito teria causado uma carta que por oito anos adormecera em um livro? Fiz certo ao mandá-la? O leitor irá perdoar a decisão de um jovem adolescente numa época em que ainda se escreviam cartas.

Os livros devem muito a elas. A epistolografia pode mesmo ser um gênero literário exercitado com beleza. Há poucos anos, a publicação da correspondência de Gabriela Mistral para sua secretária Doris Dana “abalou” a imagem de um ícone nacional da literatura chilena.

Mas haverá futuro para esse tipo de livro?

A caligrafia, a letra cursiva e a comunicação por carta manuscrita sobreviveram até recentemente. Nem o telefone lhe pôs um fim. Mas hoje nos parece improvável que as cartas sobrevivam ao e-mail, ao SMS e a outras formas que virão. Decerto, ainda há os resistentes e os excluídos do universo virtual. Mas seus dias parecem contados.

É possível que e-mails perdidos em servidores inapetentes ou corroídos em discos rígidos imprestáveis causem desencontros assim? Outros serão os tempos e as vontades. Diríamos mais: as velocidades. O ato de abrir o envelope ou simplesmente ocultar o papel comprometedor desaparecerá.

Conta-nos o historiador Karl Brandi que, no século 16, o Conde Frederico, cavaleiro do Tosão de Ouro, aproveitava as festas da corte para aproximar-se da princesa Leonor, irmã do futuro imperador Carlos V. Em uma ocasião, deu-lhe furtivamente uma carta de amor que Leonor escondeu no seio. Mas o irmão viu e a obrigou a lhe entregar. A princesa nunca a leu, mas os historiadores hoje sabem o seu conteúdo. O amante usava expressões como “ma mie, ma mignone” e “pertenço-vos e vós a mim”. Um simples pedaço de papel escondeu por séculos o que só a história nos podia revelar.

Se a leitura de livros, jornais e revistas ainda resiste em papel, as missivas já se renderam. Ninguém mais recordará a sensação de uma carta que poderia ter mudado tudo. No livro Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, havia uma carta assim. Era de Nhorinhá, no sertão das Gerais. Mudando de muitas mãos, ela só chegou a Riobaldo oito anos depois,  quando já casado ele se lembrou que a amara.

*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo.


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