As celas deram lugar aos livros

“A detenção tem mais gente do que muita cidade. São mais de 7 mil homens, o dobro ou o triplo no número previsto nos anos 1950, quando foram construídos os primeiros pavilhões. Nas piores fases, o presídio chegou a conter nove mil pessoas.”

A contabilidade está no livro Estação Carandiru, lançado por Drauzio Varella, em 1999. Mas o terrível presídio faz parte do passado paulistano. No lugar de muralhas e vigias, há um parque e, agora, uma biblioteca.
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A Biblioteca de São Paulo, erguida em uma área de 4.257 m2, vem funcionando há pouco mais de um mês. Com um projeto arrojado, iluminado e moderno, assinado pelo arquiteto Dante Della Manna, ela inaugura no Brasil um conceito inovador de bibliotecas, inspirado nas experiências de Santiago (Chile) e Bogotá (Colômbia). Seu custo foi de cerca de R$ 12,5 milhões (R$ 10 milhões vindos do Governo do Estado e R$ 2,5 milhões, do Ministério da Cultura).

O espaço se assemelha ao ambiente das livrarias megastore, pois, segundo o secretário de Cultura, João Sayad, a população está lendo mais dentro das modernas livrarias que nas austeras e antigas bibliotecas. Dessa forma, foi pensado também o acervo, que não se foca nos clássicos, mas nos mais vendidos nas lojas, seguindo a ordem ditada pelo consumo. Mas, evidentemente, podem ser encontradas obras fundamentais, como as de Machado de Assis e Fernando Pessoa.

Por enquanto, são 30 mil exemplares, incluindo CDs, DVDs, além de periódicos e jogos. “O acervo é pequeno por dois motivos: por ser uma biblioteca nova e por esperarmos que seja construído segundo a demanda do público”, justifica Sayad. “Não queremos ditar nada nem ensinar a ninguém o que deve e o que não deve ser lido. Se o público procurar best-sellers, vamos ter mais best-sellers. Se forem livros didáticos, assim será o nosso acervo.” Seguindo a lógica do mercado até no design, a biblioteca dedica grande parte de seu espaço aos jovens, com pufes coloridos e áreas divididas por cores, para cada idade. A maioria dos livros está exposta em estantes para seduzir os leitores.

“A procura está superando as expectativas”, comemora Magda Montenegro, diretora da biblioteca. “No primeiro dia, foram emprestados mais de 50 livros e registradas mais de 400 carteirinhas. Até um morador de rua apanhou um livro emprestado. Eles podem fazê-lo, pois não exigimos comprovante de residência. Tenho certeza de que será o primeiro a devolver.”

Magda atribui o sucesso à nova concepção de biblioteca. “O processo de busca e leitura e até de empréstimo pode ser individual, sem a participação de um bibliotecário”, conta. “A ideia é ser um ponto de encontro e formação pelo gosto e cultura da leitura, com atividades paralelas. Fizemos questão de um ambiente acolhedor, pois as pessoas precisam aprender que a biblioteca não é um lugar chato.”

Tempos de cárcere
Construída na década de 1920, a Casa de Detenção, projetada pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo, por incrível que pareça já foi considerada até um presídio-modelo, ilustrando até cartões-postais da cidade. Mas, os problemas começaram na década de 1940, quando a penitenciária, conhecida popularmente por Carandiru, excedeu sua lotação de 1.200 detentos. Em 1956, em uma das várias tentativas de resolver a superlotação, foi construído um novo prédio, elevando a capacidade para 3.250 detentos. Claro, que a situação não foi amenizada e ao longo das décadas, o cenário só piorou.

O fundo do poço aconteceu no histórico massacre de 2 de janeiro de 1992, quando o complexo já não comportava os 8 mil presos amontoados. Naquela data, foram mortos, oficialmente, 111 presos. Fala-se em mais de 250 exterminados. Depois de quase duas décadas sem punição, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, no início de fevereiro, por unanimidade, que os 116 policiais envolvidos no massacre serão levados a júri popular. A data do julgamento não foi definida; e a defesa ainda pode recorrer da decisão.

Tempos de reconstrução
Dez anos depois do massacre, em 2002, iniciou-se o processo de desativação do Carandiru, com a transferência de presos para outras unidades. O Governo do Estado de São Paulo implodiu os dois primeiros pavilhões do total de nove que compunham o complexo. Foram necessários três anos e mais de 200 kg de explosivos para demolir quase todos – permaneceram apenas dois, que foram readaptados – e construir no lugar o Parque da Juventude, em uma área de 240 mil m².

Parte das ruínas da antiga Casa de Detenção foi mantida para visitação em um dos prédios que compõem o espaço de lazer, que, também abriga um complexo esportivo e recreativo, duas escolas técnicas, uma central do programa Acessa São Paulo, e, agora, a Biblioteca de São Paulo, solidificando o intento de se tornar um ponto de lazer na carente Zona Norte.

O ano é eleitoral, de entrega de obras empacadas, de melhorias e avanços para a cidade, de “presentes” e reformas. Tudo tem de ficar pronto a tempo de arrecadar votos, mas isso já é sabido. Ainda assim, trata-se de um ganho para uma cidade tão carente de espaços públicos. Durante toda a manhã e o início da tarde do dia 8 de fevereiro, o governador do Estado de São Paulo, José Serra, e o secretário da Cultura, João Sayad, inauguraram a mais moderna biblioteca do País. Houve a cerimônia solene para um grupo seleto de convidados e imprensa, com direito a comes e bebes finos e show da cantora Tulipa Ruiz.

A biblioteca é moderna não só por fora, mas também por dentro. Conta com 100 computadores novos, com acesso a internet, telas widescreen e recursos multimídia, além de rede sem fio em todo o parque. Houve investimento também em sete Kindles (o livro eletrônico da Amazon) e seis mesas adaptáveis para leitura de deficientes visuais. No futuro, haverá centralização virtual de informações sobre o acervo de todas as bibliotecas do Estado de São Paulo, facilitando a localização de qualquer obra de coleções públicas.

As atividades culturais que ocorrerem diariamente reforçam o objetivo de atrair o maior número de pessoas e incentivá-las à leitura. Na tenda externa, acontecem desde bailes da terceira idade até oficinas de grafite. Sem esquecer de contadores de histórias para crianças na sessão infantil, saraus literários na varanda superior, domingos musicais com shows diversos e debates e ciclos de cinema no auditório, com capacidade para 89 espectadores. Todos os serviços são gratuitos.

A Biblioteca de São Paulo é administrada em todos os seus espaços pela Organização Social Poiesis – a mesma que gere a Casa das Rosas e o Museu da Língua Portuguesa – e funcionará em horário mais flexível que o comercial. Em seu livro Estação Carandiru, Drauzio Varella, narrava: “Pego o metrô no largo Santa Cecília, na direção Corinthians-Itaquera, e baldeio na Sé. Desço na estação Carandiru e saio à direita, na frente do quartel da PM. Ao fundo, a perder de vista, a muralha cinzenta com os postos de vigia. Vizinho do quartel abre-se um pórtico majestoso: Casa de Detenção, em letras pretas.” Não há mais as muralhas cinzentas. Mas o livro de Drauzio, um único exemplar, pode ser encontrado na estante 365V42e da Biblioteca de São Paulo.


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