A um mês de completar 100 anos, a artista produz série de pinturas monocromáticas, como a que está atrás da Strelitzia reginae natural, que decorava seu ateliê em uma tarde de setembro. Por enquanto, são telas verdes, azuis e amarelas
Enquanto espera pelo próximo dia 21 de novembro, quando entra em seu centésimo ano de vida, Tomie Ohtake segue pintando. Em uma tarde abafada de setembro, o ateliê dela já abrigava uma dezena de telas, algumas penduradas, outras encostadas nas paredes, todas com vigorosas pinceladas de azul, amarelo e verde. Mas, ela avisa, outros tons podem surgir, sem dar mais pistas do que poderá acontecer daqui para frente. “Gosto de todas as cores.” Essas obras serão apresentadas ao público apenas no próximo ano, em mostra programada para o instituto em São Paulo que leva o nome da artista. Por isso, ela demonstrou certa preocupação com os cliques que Hélio Campos Mello – meu publisher e fotógrafo veterano – fazia dos novos trabalhos. “Não pode mostrar tudo, são para a exposição.” Tomie fala mal o português, nunca se adaptou ao nosso idioma, embora viva no Brasil há mais de 75 anos. Mas estranhamente ela se expressa com extrema clareza.
A série de telas azuis, a maior de todas até agora (há quadros de diversos tamanhos), é encantadora. Soube mais tarde que nessas obras, apesar de o espectador enxergar tons de preto, só existem variações de azul. O quadro amarelo é vibrante e chama muito a atenção, tamanha sua luminosidade. Ao perceber que nossos comentários não incluíam a tela verde, Tomie tratou de dizer: “Chaia gosta do verde”, referindo-se ao amigo Miguel Chaia, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e colecionador. “A série toda é excepcional, mas o quadro verde é muito propício às transparências, indo do verde marítimo ao vitral. Os verdes por ela escolhidos dão um valor autônomo a cada pincelada. Além disso, Tomie sempre explorou pouco essa cor em seus trabalhos, preferindo o vermelho, o amarelo e o azul”, explica Chaia. Para ele, a artista está no momento da “pintura máxima”, em que não precisa de tema nem assunto para se expressar. Ou melhor: “O tema é a pintura e o assunto, a pincelada”.
O amplo ateliê faz parte da casa onde Tomie mora, em São Paulo – projeto dos anos 1970 assinado pelo filho mais velho, Ruy, nome forte da arquitetura brasileira com centenas de obras no Brasil e no exterior. Essa área de trabalho é uma espécie de anexo, feito em concreto (como a casa), exceto pelo teto e a parede de vidro que, na verdade, é uma generosa porta que permite enxergar a luz do dia, a piscina, o jardim e tudo o que por ali aparecer espontaneamente – beija-flores, borboletas, insetos. Nada escapa ao olhar atento de dona Tomie, como a chamo desde que nos conhecemos, há alguns bons anos. Apesar de ela dispensar sinceramente qualquer tipo de formalidade, acostumou-se com meu chamado.
Hélio e eu chegamos à casa no Campo Belo, região centro-sul da cidade, um pouco fora do horário combinado por causa do trânsito. Tomie nos esperava justamente no ateliê, acompanhada de Marcy Junqueira, também jornalista, nossa amiga e nora da artista – ela é mulher do caçula da pintora, Ricardo, também arquiteto, mas com um percurso importante na condução de políticas culturais, além de diretor-geral do Instituto Tomie Ohtake que, neste ano, completa dez anos de atividades.
Levamos um pequeno buquê de flores apropriadamente amarelas. Era um gesto simples para iniciar o encontro, um mimo à dama da pintura. Ela agradeceu, percebeu o suave perfume que exalavam e, para nossa surpresa, quis saber que flores eram aquelas. Só que estávamos desprevenidos para a resposta. Agora, sabemos: são frésias, dona Tomie, um gênero da família das iridáceas, originária da África do Sul.
No ateliê, absolutamente organizado, raramente faltam flores, um capricho (simpático) da artista. No dia de nossa visita, um vaso acolhia uma única, mas exuberante, Strelitzia reginae, conhecida por ave do paraíso, por seu formato que lembra um pássaro e, coincidentemente, também vem da África do Sul e sua flor é amarela. Os pincéis, de tamanhos e modelos variados, as cartelas de cores, as canetas coloridas e as tintas (muitas tintas) em tubo ou potinhos ficam dispostos em prateleiras extremamente arrumadas – não havia nada sobre as duas mesas, a retangular, de trabalho e toda respingada de tinta, como Hélio observou, e outra menor, cercada de cadeiras, onde nos sentamos para tomar café e beliscar tradicionais biscoitinhos orientais à base de arroz levemente apimentados, que são uma delícia.
Em uma das paredes, ao lado de um painel recheado de objetos em miniatura, há uma camisa verde e amarela com o número 9 e o nome Tomie impresso nas costas – 9, em geral, é a camisa de atacantes. Em um sobrevoo por ali, descobre-se mais: dona Tomie é leitora de Haruki Murakami, escritor japonês, um de seus preferidos. Existem também alguns cacarecos, como porta-papel em formato de coração, relógio de pulso de plástico e algumas caixas maiores fechadas com tampas. O que estaria guardado ali?Naquele dia, Tomie estava disposta e parecia querer falar mais que de costume. Começou mostrando as fotografias de sua mais recente obra, que foi instalada em agosto último no espaço público de um megacomplexo de edifícios e escritórios do bairro de Roppongi, em Tóquio, recentemente revitalizado. É uma enorme escultura em forma do símbolo do infinito, que desafia a lei da gravidade – está instalada em pé e inclinada. Mais uma vez, Tomie brinca em equilibrar o desequilíbrio. Depois, fez questão de mostrar a maquete da obra. “Está no Japão.”
Em seguida, apontou para outra maquete, uma que está pendurada em um dos tubos do teto do ateliê e será a sua próxima escultura. Tomie explicou que a peça foi feita com arame maleável, que ela distorceu com as mãos até chegar à forma que desejava. “Faço assim”, demonstrou, sorrindo – aliás, dona Tomie é sempre sorridente. Nossa conversa foi interrompida uma única vez, quando Ricardo telefonou para falar com a mãe. Os dois conversaram em japonês e, evidentemente, não entendemos nada.
O amarelo
A Tomie Nakakubo nasceu na cidade de Quioto, no Japão, em 1913. Veio para o Brasil de navio quando tinha 23 anos. Aportou em Santos, litoral de São Paulo, para visitar um irmão. “A cor que vi foi a amarela”, diz ao se lembrar da primeira impressão em solo brasileiro. Levada para almoçar em um restaurante ainda no litoral, aceitou a sugestão para saborear um bife a cavalo, que nunca tinha experimentado. Não deu outra: até hoje, sempre que pode, ela se serve desse prato. “Bom, muito bom.”
A estadia no Brasil, que duraria um, dois anos no máximo, acabou sendo definitiva. “Não voltei por causa da guerra. Meu irmão não deixou.” Logo conheceu o agrônomo Alberto Ohtake, com quem se casou. “Escolhi o mais bonito de todos”, conta fazendo uma carinha malandra. Mas a conversa não passa disso.
Dona Tomie é uma mulher discreta, não fala quase nada sobre a vida familiar ou pessoal. Sabe-se apenas que cuidou dos “meninos” (Ruy e Ricardo), da casa e do marido antes de se entregar à pintura. Sabe-se ainda que Tomie ficou viúva em 1961. Assunto encerrado.Nessa época, ela já pintava, mas sem destaque. “Comecei tarde, com 40 anos. Aprendi com Sugano”, diz referindo-se ao pintor e professor de arte Keisuke Sugano (1909-1963), também japonês, que permaneceu um período em São Paulo no início da década de 1950. “Não tinha ateliê, nada. Empurrava a mesa da sala e achava um espaço para pintar.” Desse início, apareceram algumas pinturas figurativas e paisagens – dona Tomie deixa algumas expostas no ateliê, sobre a porta de vidro. “Todo mundo fica louco por essas telas”, diz Marcy. Mas dali não saem de jeito nenhum.
Pouco mais adiante, ela fez parte do então prestigioso grupo Seibi, que reunia artistas plásticos na zona sul de São Paulo. Além de Tomie, aderiram ao grupo Flávio-Shiró, Minoru Watanabe, Manabu Mabe, entre outros conterrâneos – a associação só aceitava artistas japoneses ou descendentes. Mas, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra ao lado dos aliados, as atividades do grupo ficaram limitadas e a turma acabou se dispersando. Nem por isso, dona Tomie parou de criar. Ingenuamente, perguntei se ela tinha ideia de que se tornaria uma das principais representantes das artes plásticas. Dona Tomie, abre um sorriso largo, balança a cabeça negativamente e, categoricamente, afirma: “Não”. O que me levou a pensar que ela sempre criou suas obras com a alma.
A artista
Outras técnicas surgiram a partir dos anos 1970 – serigrafia, litogravura e gravura em metal. Mais tarde, ela se apropriou de forma mais intensa das gamas cromáticas e das formas orgânicas – a estátua Estrela do Mar, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, é de 1985. Inútil listar todas as obras ou os prêmios que Tomie Ohtake recebeu ao longo da vida. Foram muitos.Alguns episódios, no entanto, são bacanas de serem lembrados. Em 2000, ela apresentou a sua primeira instalação em São Paulo e no Rio de Janeiro. Eram 12 aros circulares de ferro, com cerca de 4 m de diâmetro, com formas diferentes e ondulares. Uma obra gigantesca, que inspirava suavidade, leveza – essas aparentes incompatibilidades que dona Tomie trata de tornar compatível, como a maneira de ela se comunicar. Dispostos próximos uns dos outros, com espaço para caminhar entre eles, os aros faziam um movimento pendular quando tocados. Na ocasião, perguntei (novamente de forma totalmente ingênua) o que a tinha motivado a fazer uma instalação. Veio a resposta: “Precisava fazer uma coisa diferente”.Em outro momento, em um encontro inesperado em alguma exposição em São Paulo, dona Tomie me chamou de lado e me deu conselhos matrimoniais – sou casada com o artista Artur Lescher e raramente o acompanho em vernissages de outros artistas. Ela me disse que eu não podia deixar Artur sair por aí sozinho, que ele já está famoso e, portanto, cobiçado. Era mais do que necessário ficar de olho nele. Dona Tomie é assim.
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