As donas do carnaval

Na madrugada de 17 de fevereiro, quando cruzarem a faixa amarela que dará início ao desfile das escolas de samba em São Paulo, cerca de quatro mil componentes da Vai-Vai, uma das mais tradicionais da cidade, vão cantar em homenagem às mulheres, embalados pelo enredo Mulheres que Brilham. É uma espécie de justiça às milhares de meninas, muitas delas jovens e outras nem tanto, que fazem do Carnaval brasileiro uma das maiores festas do mundo – se não a maior.

De acordo com um levantamento da prefeitura de São Paulo, realizado no ano passado, mais da metade dos profissionais carnavalescos é do sexo feminino. No Rio, não há dados precisos e, portanto, impossíveis de comparação, mas existem indícios de que os números sejam parecidos. Seja como for, o rigor feminino invade as quadras das escolas nas duas cidades.

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É o caso da paulistana Rosas de Ouro, que tem como presidente Angelina Basílio desde 2003. Fundada em 1971 na Brasilândia, a escola foi campeã do grupo especial por sete vezes – a última em 2010, mas no ano passado, ficou em 8o lugar. “Chego a ser até meio louca com os detalhes. Gosto muito dessa área organizacional.”

Assim que assumiu a escola, Angelina chegou a pensar que não daria conta do volume de trabalho. Para piorar, logo sentiu o peso de estar no comando de uma das maiores escolas da cidade – antes, ela era a vice-presidente de seu pai, Eduardo Basílio, e assumiu o cargo quando ele morreu. O problema foi que muita gente achou que ela estava despreparada. “Ainda existe um machismo impregnado no inconsciente coletivo que dificulta a chegada de mulheres a postos mais altos”, afirma Hiram Araújo, diretor cultural da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Contra Angelina, a resistência apareceu de onde ela menos esperava. “Fui contestada até por gente da minha família.” Como resposta aos críticos, profissionalizou a gestão da escola, que hoje é apontada como uma das mais organizadas de São Paulo. “Juntei minha formação em Administração de Empresas com os aprendizados sobre o Carnaval que tive com meu pai.” Ela não conta detalhes do desfile deste ano, mas adianta que a Rosas de Ouro terá um carro alegórico com aroma de floresta. “Quero conquistar todos os sentidos do povo e trazer a taça de volta para cá.”

A carioca Salgueiro também tem uma mulher no comando. Regina Celi, aliás, é a única a chefiar, desde 2009, uma escola do grupo especial. “Ser presidente de escola de samba no Rio de Janeiro é um cargo de grande poder”, afirma a antropóloga Olga Von Simson. “Por isso, os homens dificilmente abrem mão desse espaço.” No caso de Regina, para conquistar o cargo, ela teve de disputar a eleição Luis Augusto Duran, o Flu, seu ex-marido e antecessor na presidência da escola.

Considerada um dos maiores nomes do Carnaval brasileiro, Iranette Ferreira Barcellos, a Tia Surica, da carioca Portela, já viu muita coisa em seus 67 anos de escola. Para ela, é bobagem contestar a capacidade de alguém comandar uma escola de samba por conta do sexo. “Não faz diferença se é homem ou mulher. Faz diferença se é competente ou incompetente. Somos nós que organizamos a festa. E também damos graça a uma boa roda de samba.” Ela, que começou a sair na Portela aos 4 anos, hoje é responsável por organizar a feijoada mais famosa de Madureira, o bairro sede da azul e branca.

Antes de comandar o fogão das festas, em 1966, foi convidada para ser uma das intérpretes do samba enredo Memórias de um Sargento de Milícias, de Paulinho da Viola. O enredo e a potente voz de Tia Surica garantiram o título para a escola. É bom lembrar que, no começo da década de 1960, portanto antes de Tia Surica, Ivone Lara já havia marcado a história na Império Serrano, ao ser a primeira mulher a compor o clássico samba-enredo Não Me Perguntes.

Na harmonia
Mesmo que muitas resistências já tenham sido quebradas, ainda há espaços a serem conquistados. Mulheres em posições que exigem o rigor de seus ocupantes, como mestre de bateria e diretor de harmonia, ainda são peças raras. Uma exceção é Sara Manuela, diretora de harmonia da paulistana Tom Maior. Sempre com o apito pendurado no pescoço, ela é uma das responsáveis pela manutenção da ordem e da disciplina nos ensaios e na avenida. Há três anos no cargo, Sara não se lembra de ter sido contestada por ser mulher. “Se fizeram isso, foi pelas costas.”

Quando começou a frequentar a Tom Maior, há cinco anos, Sara não conhecia direito o universo do Carnaval. “Comecei como componente, mas me envolvi e me apaixonei pela harmonia.” Não tinha consciência também dos espaços que as mulheres poderiam ou não ocupar. Deu sorte de chegar à Tom Maior, uma escola acostumada com a participação feminina. Já na década de 1970, a vermelha e amarela do Sumaré teve na presidência duas fundadoras da agremiação, Virgínia e Dona Amélia. Hoje, o cargo é ocupado por Luciana Silva.

Amigas e concorrentes
Na história do Carnaval, Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, aparece como a primeira mulher a fundar e comandar uma escola de samba em São Paulo. Nascida em Piracicaba, interior paulista, ela tomou essa decisão depois de passar o Carnaval de 1936 no Rio de Janeiro. Um ano depois, surgia na região da Liberdade a Sociedade Recreativa Beneficente Escola de Samba Lavapés, a mais antiga escola de samba da cidade e que está em atividade até hoje.

Mais que realizar o sonho de ter a própria escola, Eunice foi uma das responsáveis pela oficialização do Carnaval em São Paulo. Ao lado de outros nomes famosos, como Seu Nenê da Vila Matilde e Seu Carlão da Peruche, ela lutou para que o então prefeito Faria Lima reconhecesse os festejos e, assim, garantisse verbas, espaço e prestígio para as escolas de samba e cordões carnavalescos. De lá para cá, a Lavapés foi 19 vezes consecutivas campeã do Carnaval de São Paulo – número até hoje imbatível.

As imagens daquela época ainda estão vivas na memória de Emília Feliciano Ferreira, a Dona China, primeira porta-bandeira a desfilar carregando o estandarte preto e branco da Vai-Vai e amiga de Eunice. Aos 83 anos, 75 deles no samba, Dona China se lembra com detalhes de cada lugar por onde passaram os desfiles das escolas de samba paulistas. “Antigamente, era mais fácil porque não precisava de tantas plumas e paetês. Mas o samba de São Paulo evoluiu muito.”

Ao lado de Mestre Gabi, da Camisa Verde Branco, o mais conhecido de São Paulo, Dona China foi a responsável pelos cursos que formaram muitos dos casais que, com seu balé sambado, encantam as arquibancada do Anhembi. “Tem muito casal nota 10 que saiu daqui, ó”, afirma, batendo no peito.

Em Salvador é diferente

Enquanto no Rio e em São Paulo tudo gira em torno das escolas de samba, em Salvador são os trios elétricos que comandam os foliões. Até o ritmo é um pouco diferente. As baterias das agremiações paulistas e cariocas ditam os rumos a serem seguidos na avenida. Na Bahia, já faz uns anos que são os mega shows das cantoras e bandas de axé que, do alto dos trios elétricos, levantam a multidão. A organização das festas também é distinta. As escolas de samba e blocos carnavalescos do Rio e de São Paulo normalmente são estruturas nascidas no seio de comunidades e comandadas por gente de lá. Em Salvador, a festa é administrada como um grande festival de música. Músicos, produtores e empresários são os donos dos trios elétricos e camarotes e os responsáveis pela programação e venda dos abadás (as camisetas que dão acesso à folia). Apesar das diferenças, os carnavais do Rio e de Salvador têm algo em comum: os dois se proclamam os maiores e melhores do Brasil. Até 2008, quem frenquetava as páginas do Guiness Book como maior carnaval do mundo eram os baianos. Agora, os detentores do posto são os cariocas, que atraem cerca de dois milhões de pessoas por dia para seus blocos e para o desfile na Marquês de Sapucaí.

 


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