As formas do livro

Sobre os mistérios que guarda a forma do livro, muito se escreveu. Pensemos na própria “lei de Gregório”, relativa a um aspecto curioso, senão, miraculoso do livro. A dobra das folhas de pergaminho fazia tocar, invariavelmente, os mesmos lados da pele, donde a fórmula “carne contra carne”, “flor contra flor”.

Esses muitos mistérios nos remetem à própria origem da forma livro e sua longa duração na história ocidental. Sabe-se que o códice ou livro formado a partir da dobra e junção das folhas apareceu na Roma Antiga, no primeiro século de nossa Era. Demorou pelo menos quatro séculos para superar o rolo, ou volumen, formato que nos parece hoje um tanto desajeitado, pois obriga o leitor – à semelhança do que faz diante da tela de seu notebook – a “correr” o texto no sentido vertical, em um prolongado desenrolar da página.

Entre as muitas hipóteses formuladas em torno da vitória do códice sobre o rolo, duas sortes de argumentos saltam às vistas: aquele que vincula o novo formato às práticas cristãs de leitura do Evangelho; e, no extremo oposto, a disseminação de seu uso entre leitores de literatura, ou seja, o códice voltado para a fruição das letras. Fixemo-nos neste último caso, ainda que pareçam tênues os limites entre os usos sagrado e profano do livro por nossos personagens.

Sabe-se que este mesmo formato conduziu à perdição Paolo Malatesta e Francesca da Rimini, no Canto V do Inferno, de Dante. Enquanto liam o livro de Lancelote, este lhes fugiu das mãos no momento em que o cavalheiro beijava a rainha Ginevre. O beijo de um livro se prolongou n’outro e Dante se limitou a dizer que a leitura não foi adiante. Francesca apenas acrescenta que Paolo com “la bocca mi basciò tutto tremante”. O verso dispensa tradução, mas nós sabemos que aquela leitura provocou o ciúme e a violência mortal de Gianciotto, o marido traído. A punição do casal foi a de serem eternamente lançados pelo vento de suas paixões sem jamais se tocarem.

Como o corpo da pessoa amada, abrimos o livro e lhe acariciamos as páginas com emoção. É verdade que a exemplo dos “encontros” virtuais, existe a literatura sem o velho suporte de papel. E há quem a prefira. Mas é difícil acreditar que um beijo virtual seja melhor do que aquele que condenou Paolo e Francesca. As formas do amor são tantas quanto os modos de ler. Assim amor e livros guardam para si seus mistérios.

*Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros títulos, de O Império dos Livros. Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista, Edusp/Fapesp, 2011 (vencedor do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda – Melhor Ensaio Social 2011, da Fundação Biblioteca Nacional). Editora da Revista Livro, do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária -USP).


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