Uma é mãe, a outra é filha. Uma, a extensão da outra, difícil destino que se entrelaça, revolta, recusa-se, esperneia, reflete-se, trapaceia. Uma é a outra amanhã, outra foi aquela ontem. Uma sabe, intui, adivinha o que a outra esconde, inverte, imita, finge que não é. Uma, menina, outra mulher.
Brincando de casinha de boneca, procurando estrela do mar, fazendo castelo, aprendendo a nadar.
– Não quero comer, não quero.
– Come os legumes, eu espero. Olha só o aviãozinho. Anda, vai logo, come, se não, o aviãozinho some!
À noite a mãe conta história. A filha tem medo da bruxa.
– Que maldade, mamãe, puxa!
– Não tem de se preocupar! Branca de Neve caiu dura, mas chega o Príncipe e a coisa toda muda de figura!
Se a mãe sai, a filha lhe deixa bilhetes presos na parede e fica esperando a mãe, balançando-se na rede.
– Espera, não lê agora. Ainda não está na hora. Assim que a gente deitar, você pode começar.
Saem, riem, se completam. Não querem saber de ninguém. Ficam as duas muito bem.
A mãe veste a blusa da filha, a filha, a saia da mãe. Mães e filhas refletidas em uma inversão divertida.
Mas a filha vai crescendo e a mãe nem vai percebendo.
A mãe corta o cordão umbilical da filha quando nasce. A filha, quando adulta, corta os laços. A mãe, para existir, se dá à filha. A filha, para poder viver, a rejeita.
Em que momento da vida deixaram de ser cúmplices? Quando é que pararam de se divertir? Contar histórias? Trocar de roupa, rir? Desde quando que a mãe chora? Quando é que a filha foi embora?
Uma já viveu, a seu modo, o que a outra vive agora.
A filha é a criança da mãe. A mãe, o superego da filha.
A filha se enche de impaciência diante da mãe, a mãe, de dor pela filha. Ambos os sentimentos se extrapolam em ninharias ridículas. Uma fez isso, outra, aquilo. Uma agiu assim, outra assado.
– Olha, mãe, tudo acabado.
– Quem tem razão, as mães ou as filhas?
A filha não aguenta mais nada. A mãe sempre aguenta mais uma. As dores são ondas que oscilam de intensidade. Uma ou outra mais forte tira-lhe o fôlego, joga-a ao chão. Nada que não a faça voltar à tona, ver novamente a onda verde, retomar a respiração.
A filha nada contra a mesma maré que um dia embrulhou a mãe. A mãe lhe estende a mão, delicada.
A filha recusa, indignada.
– Me deixa nadar sozinha.
Sempre a mesma ladainha…
Quantas ondas grandes a mãe teve de furar? Quantas arrebentações driblar? Onde estará ela, a filha? Ali boiando, esquecida, e a mãe a se preocupar que se afogue, nas ondas verdes da vida.
– Me empresta o carro para eu ir à festa?
– Por que não põe uma roupa mais transada, uma blusa decotada, um vestido de outro tom? Minha filha, não acredito: você vai sair sem batom?
– Ai, meu saco, vou-me embora. Dá para me emprestar agora?
– Depois dorme aqui, vê se come…
– Esquece. Não quero ficar.
– Pena… Tinha tanta coisa pra contar…
– Ora, mãe, para de fazer drama. Você quer mesmo é cair na cama…
– Vai de novo viajar?
– E você, me controlar? Saco! Tá mais que na hora! Escuta, mãe, vou-me embora.
– Não se esquece de apagar a luz, fechar a porta… Cuidado com a violência…
– Ai, mãe, tenha paciência…
Em cima da mesa um bilhete: “Mãe, desculpe o mau humor, mas é que eu ando uma pilha!”
*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries. Também é cronista do Jornal do Brasil – onde ainda tem uma coluna na versão on line. Seus textos foram compilados em O Quebra-Cabeças, publicado pela Imprensa Oficial, em 2005.
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