Há algo em comum entre Buda e Borges. Assim como o pai de Siddhartha Gautama buscou protegê-lo de todo e qualquer sofrimento, mantendo-o em seu castelo, o escritor argentino também teve uma infância marcada pelo isolamento imposto pelo próprio pai – não cercado pelos muros de um palácio, mas pelas estantes de uma grande biblioteca.
Ao saber que, para além do palácio onde vivia, existia o sofrimento e a morte, Buda deixa a ordem ilusória definida por seu pai para encontrar-se com o mundo e transcendê-lo ao atingir a iluminação. Borges devora a biblioteca de seu pai e cria com suas estantes um labirinto interior de uma das subjetividades literárias mais fascinantes do século XX. Para ambos, o mundo converte-se em ilusão. Buda cria sua doutrina sobre o Nirvana, o fim do sofrimento que advém da ruptura com os ciclos do nascer-sofrer-morrer-renascer. Borges se multiplica em seus duplos e se torna uma esfinge literária que assombra com seus enigmas os universos da crítica e do público.
[nggallery id=14932]
É de um outro argentino, contemporâneo e herdeiro do legado de Borges, a síntese que sela essa aproximação entre o iluminado e o escritor – Ricardo Piglia compara a condição do escritor com a das mariposas, uma obsessão que se choca contra a luz. Iluminar a obra de um autor pelo foco de sua vida é uma empreitada que implica riscos. Pode levar ao beco sem saída das trajetórias, leitura que impõe um reducionismo mecânico e simplista à indomável potência criativa que se materializa na obra. Borges – uma Vida, do historiador inglês Edwin Williamson, que a Companhia das Letras acaba de lançar, é uma excelente biografia do escritor argentino, exatamente porque não cai nas armadilhas de nenhum determinismo. Williamson respeita o intervalo do mistério e da sombra que envolve vida e obra como espelhos paralelos. A replicação dos duplos se insinua na obra, a partir da vida e vice-versa. Reflexos. Incorporais. Assimétricos. Mapa e labirinto das várias vidas de Borges que se bifurcam em seus personagens e obsessões. A evocação, que certos temas da obra de Borges estabelecem com momentos vividos pelo autor, é tratada com um cuidado que renova as possibilidades de leitura da obra em contraponto com a vida.
Borges – uma Vida consegue articular outras possibilidades de leitura, pois ousa desconstruir o mito de um Borges solipsista e submerso no oceano do fantástico, refratário a uma abordagem que não essencialmente literária. Williamson estabelece uma interlocução com dois outros perfis biográficos do autor argentino: aquele que o próprio Borges escreveu como um autorretrato literário e o ensaio escrito por Adolfo Bioy Casares, amigo com quem viria a romper por divergências políticas.
Edwin Williamson é professor de literatura espanhola na Universidade de Cambridge e publicou seu trabalho sobre Borges em 2004. A tradução que agora chega aos leitores brasileiros é assinada por Pedro Maria Soares. É um denso convite para quem deseja mergulhar em uma incursão pelo universo labiríntico das ficções de Borges, assim como um documento fundamental para quem toma sua obra como objeto de pesquisa. Williamson se pauta por encontrar um elemento de amarra entre a obra e a vida do escritor argentino. Assim como o “Rosebud” de Cidadão Kane no cinema, é o “Aleph” de Borges que constitui o grande enigma que se desenvolve sobre uma trama de biografemas – conceito de Roland Barthes que diz respeito aos afetos que se incorporam nos signos da memória, as “pontes entre a realidade e a ficção” que se estabelecem em uma biografia, como protocolos para propiciar uma compreensão de ordem subjetiva do biografado. Biografemas são signos pelos quais se assinala a imaginação impregnada nos objetos do cotidiano de uma vida.
O enigma de Borges se compõe com vários signos dessa espécie. Williamson faz o recenseamento deles: punhal, espada, espelhos e tigres. Seu pai, Jorge Guillermo Borges incorporou desde cedo na infância do escritor argentino a imagem do ímpeto crioulo dos gaúchos que matavam onças com o fio de suas lâminas, uma identidade argentina forjada na imagem de um punhal que seu pai guardava com zelo. Depois de uma briga na escola, seu pai lhe presenteou com o punhal, em um rito de passagem familiar: “Que alguém saiba que és um homem” (extraído do trecho que descreve o incidente em O Fazedor).
Ao contrário do punhal, a espada remete à sua mãe, Leonor Acevedo, que cultuava de forma ostensiva os antepassados da família que lutaram em conflitos históricos. Essa obsessão da mãe causava constrangimento no escritor argentino quando ainda era criança. Borges sentia-se não merecedor de qualquer presente ou honra já que não havia feito nada extraordinário ou heroico como seu avô, que havia morrido em combate. Os espelhos o assustavam. Tinha sonhos recorrentes com duplos. Borges sonhava que seu rosto era uma máscara que recobria outro rosto igual ao seu. Desse medo infantil, decantaram os espelhos que assinalam na obra sua obsessão pelos duplos. O fascínio pela imagem do tigre vem de uma de suas leituras de quando ainda menino: O Livro da Selva, de Rudyard Kipling. O animal de sua fixação na infância vai reaparecer depois em vários de seus escritos, como símbolo de um poder misterioso “que somente homens aguerridos poderiam enfrentar”.
Privado do contato com as amizades da escola, Borges foi educado praticamente até os 15 anos de idade por tutores em casa – período que foi pontuado por uma tentativa frustrada de levá-lo a conviver com uma realidade de disparidades de classe no ambiente da escola – as brigas e desentendimentos eram constantes. Sua família morou durante um período na Suíça e lá Borges teve de aprender alemão e francês. Como sua avó paterna, Fanny Haslam, era inglesa, muito cedo o escritor argentino fora alfabetizado tendo o inglês como sua segunda língua.
Outro aspecto da vida de Borges sobre o qual Williamson se dedica com minúcia é o tortuoso percurso das escolhas políticas do escritor argentino. A contradição entre a juventude militante no Partido Radical e o pacifismo de seus últimos anos de vida, ambos extremos tendo como abscissa seu apoio às ditaduras militares na América Latina. Impossível é sintetizar todas as facetas que as mais de 600 páginas cobrem com depoimentos e documentação reunidas em um trabalho de pesquisa que levou Williamson várias vezes a Buenos Aires, durante um período de dez anos. Seu empenho e dedicação renderam um denso retrato no qual quem ama a potência criadora da prosa e da poesia de Borges pode encontrar referências biográficas que dão suporte aos temas e ao estilo do universo do escritor. O livro explora com brilhantismo uma complexa trama de relações que retiram o escritor argentino de uma condição fechada sobre seu próprio mito literário para devolvê-lo ao mundo e à história. É magistral.
*Doutor em Comunicação pela ECA-USP e professor da Universidade Estadual de Londrina (PR).
Deixe um comentário