Maria de Medeiros fala fluentemente seis idiomas, entre eles o alemão, mas não se gaba: “Não há muito mérito nisso”. A observação faz sentido. Afinal, ela aprendeu os idiomas à medida que crescia e circulava pela Europa com os pais, o pianista e compositor Antonio Victorino D’Almeida e a jornalista Maria Armanda Esteves. Já o fato de Maria falar português com ou sem sotaque brasileiro, dependendo de estar ou não em um palco, revela bastante o seu lado profissional. As outras faces de Maria também têm muito a ver com talento e sabedoria ao aproveitar as oportunidades que a vida oferece. Com 48 anos recém-completados, ela já atuou como atriz em mais de 50 filmes. Entre eles estão Henry & June, de Philip Kaufman, em que interpretou a escritora francesa Anaïs Nin; e Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Atrás das câmeras, no papel de diretora, Maria soma nove filmes. Repare Bem, o mais recente, conta a saga de três gerações de mulheres de uma mesma família afetada pela ditadura brasileira. Além de Melhor Longa-metragem Estrangeiro, o filme ganhou dois outros prêmios no Festival de Cinema de Gramado. Maria comemorou com as mangas arregaçadas. É que ela também acaba de lançar seu terceiro CD e trabalha no roteiro do próximo filme brasileiro, a partir da peça Aos Nossos Filhos, que apresentou em Brasília, Rio de Janeiro, Lisboa, São Paulo e Porto Alegre.
Brasileiros – Repare Bem é um filme estrangeiro sobre o impacto da ditadura brasileira na vida de três mulheres – avó, mãe e filha.
Maria de Medeiros – Será que é mesmo um filme estrangeiro? Ele tem a participação de elementos estrangeiros, nomeadamente a diretora, que tem dupla nacionalidade. Também sou francesa, resido em Paris. Meu marido e eu investimos no filme. E tivemos ajuda de uma produtora italiana. Nesse sentido, é estrangeiro, mas eu o considero como um filme muito brasileiro. E o meu sonho é fazer cinema brasileiro também. Ao mesmo tempo, o filme tem uma dimensão de ser do Brasil e começar com as imagens de Ettore Scola, da viagem de Hitler à Roma. No fundo, essas correntes obscuras, fascistas, viajam pelo mundo. As correntes libertárias também. A constante luta entre esses dois pensamentos é uma temática universal. E é evidente que os fascismos das ditaduras da América do Sul vieram dos fascismos europeus.
Brasileiros – Como foi fazer esse filme?
Maria – Esse filme foi feito com poucos meios. Nasceu de uma proposta da Comissão de Anistia e Reparação e de seu presidente, Paulo Abrão, que está incentivando todo o tipo de criação artística sobre a ditadura. Ana Petta, a produtora do filme, nos colocou em contato com Paulo Abrão. Foi ele quem sugeriu a história da Denise Crispim, de sua mãe e de sua filha, além de, claro, sua relação com Eduardo Leite, o Bacuri. Talvez, porque essa é uma história de pontes entre a América do Sul e a Europa. A Encarnación, mãe da Denise e avó da Eduarda, era de origem espanhola. A ditadura fez com que as sobreviventes da família se exilassem durante 40 anos na Itália. Eduarda, a neta, é uma menina completamente italiana.
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Brasileiros – Uma menina italiana que mora na Holanda.
Maria – Isso é a Europa hoje em dia. Uma das coisas belas da Europa é essa circulação que começou a se criar entre os cidadãos de todos os países. E a proposta do filme tinha tudo para me interessar, porque sou uma apaixonada pelo Brasil e pela Europa também. Essa história reúne todos esses componentes. Fazer o filme foi, na verdade, uma aventura muito rápida nas filmagens, porque tempo é dinheiro. Trabalhamos muito tempo, mas só filmamos três dias em Roma, dois na Holanda e um em São Paulo. De alguma forma, isso contribuiu com a intensidade dos depoimentos.
Brasileiros – Bacuri, o pai de Eduarda, foi massacrado na tortura. Durante as filmagens, em algum momento você precisou parar para respirar?
Maria – Sim. Desde há muito faço filmes. Comecei como atriz aos 15 anos, mas realizo filmes desde os 19, 20 anos. Sempre foi uma atividade paralela. Os meus primeiros filmes tinham a ver com teatro, Samuel Beckett, Fernando Pessoa. Eram obras bastante experimentais. Depois, foi uma grande batalha fazer Capitães de Abril, a minha primeira ficção de longa-metragem. Vejo Repare Bem como uma sequência de Capitães de Abril.
Brasileiros – Ambos os filmes têm como pano de fundo um golpe militar.
Maria – É incrível, porque o golpe militar em Portugal foi democrático, sem derramamento de sangue. Colocou o ser humano como prioridade. Conseguiu instalar uma democracia civil. Os militares não ficaram no poder, foi um ato muito generoso. E, para mim, Repare Bem conta o reforçar de uma democracia no Brasil. Essa iniciativa de pedir desculpas às vítimas em nome do Estado, de oferecer às pessoas uma possibilidade de se reconstruírem, de resgatar a verdade histórica, é um ato democrático muito forte. Falei tudo isso só para explicar que eu só tinha feito antes um documentário, um longa-metragem muito relaxado sobre a relação entre artistas e críticos.
Brasileiros – Relaxado em que sentido?
Maria – Eu queria abranger todas as artes, mas filmei em Cannes. Voltei com 80 horas de material e decidi me servir do cinema como paradigma. A relação entre artistas e críticos é cheia de projeções psicanalíticas, mas houve muita risada, muita autoironia. Em Repare Bem, eu sabia que iria tratar de questões dolorosas, traumáticas, e me preparei para isso revendo as mais de nove horas de Shoah, de Claude Lanzmann, sobre o holocausto. Lanzmann fez uma opção muito forte, de não usar nenhuma imagem de arquivo, de dar todo o protagonismo à palavra. Há uma cena que me marcou muito, em que ele entrevista um senhor, um barbeiro, instalado agora em Israel. Esse senhor começa a chorar e não consegue mais falar. E ouve-se a voz muito dura de Lanzmann, atrás da câmera: “Você tem que contar, tem que contar”. E o senhor diz: “Por favor, vamos parar, eu não posso, eu não consigo”. E Lanzmann continua, com uma violência muito grande. Ao mesmo tempo, é um ato de liberar.
Brasileiros – Uma liberação forçada.
Maria – É um sofrimento para o público também. Ele não deixa o senhor respirar, chorar. Ele foi a minha referência no sentido de dar total protagonismo à palavra. Entrevistei primeiro a Eduarda, na Holanda, e depois a Denise, em Roma. Mas falei para elas o contrário do Claude Lanzmann: “Vocês falam só o que quiserem”. Sobretudo, porque Denise e a mãe dela tinham sido forçadas a falar, sofreram tortura para falar. Eu não queria de forma alguma me colocar nessa posição. Mas a primeira vez que a Eduarda rompeu a chorar, eu fiquei tão aflita que parei a câmera. E o incrível é que o cameraman, porque tínhamos sempre duas câmeras, também parou de filmar. Foi uma enorme bobagem. Fui lá abraçá-la e chorar com ela. Não competia a mim fazer isso. Ela estava me oferecendo não só a sua história pessoal, mas um depoimento de valor histórico. O meu lugar era atrás da câmera. E aprendi, realmente aprendi. Quando chegamos a Roma, houve momentos em que a Denise e toda a equipe estavam chorando. Enfim, estávamos chorando, mas fazendo força para não soluçar e não atrapalhar o depoimento. Nunca mais paramos as câmeras.
Brasileiros – Você também atuou como roteirista. A que fontes recorreu?
Maria – Há tempos eu queria tratar dessa época no Brasil, que está recheada de pessoas extraordinárias e de histórias humanas. Eu tinha visto um filme que me impactou muito, Calle Santa Fe, de Carmen Castillo. Ela era a companheira de Miguel Enriquez, um líder da resistência à ditadura no Chile. Carmen estava grávida dele, em um aparelho, quando a polícia entrou e metralhou os dois. Matou Miguel e ela foi deixada como morta. Perdeu o bebê, mas os vizinhos a salvaram. O curioso é que ambos tinham uma filha de quatro anos, de outros casamentos. Por sorte, essas crianças não estavam na casa no dia da tragédia. Quando Carmen fez o filme, essas meninas tinham 30 anos, mas não queriam saber nada dessa história.
Brasileiros – É o contrário do que está acontecendo com Eduarda. Ela quer saber quem era Bacuri, o pai dela.
Maria – Houve momentos em que ela quis ignorar. Agora, quer saber, mas a mudança está relacionada ao processo de anistia. Só depois do processo é que a relação dela com o Brasil mudou. No filme, ela diz claramente: “Eu nasci de novo”. O curioso é que, no Festival de Gramado, quando apresentamos o filme, verifiquei que muitas pessoas não conheciam esses processos. Eu pensava que todo mundo sabia o que está acontecendo no Brasil. Esses processos de anistia são muito válidos, muito democráticos. São motivo de orgulho para qualquer país e um exemplo para muitos países da Europa. Lá, muitos países não pediram desculpas pelos crimes do passado.
Brasileiros – As cenas iniciais de Repare Bem trazem Sophia Loren e Marcello Mastroianni. De onde surgiu essa ideia?
Maria – A gente faz roteiros antes de filmar um documentário, mas é falso. A graça do documentário é lidar com o que a gente encontra. Houve um grande trabalho de roteiro, mas pós-filmagens, para construir a história, organizar depoimentos e afetos. E começar por Ettore Scola foi por causa de uma coincidência incrível que encontrei ao filmar. Denise mora em uma casa mítica na história do cinema. É um apartamento, em um complexo de arquitetura mussoliniana, onde o Ettore Scola filmou Una Giornata Particolare (Um Dia Muito Especial). O filme mostra justamente a onda fascista que invade a Itália, o dia em que Hitler visita Mussolini em Roma. Toda mundo vai assistir ao desfile. No complexo, ficam praticamente sozinhas duas pessoas marginais, que de alguma forma resistem ao fascismo. Sophia Loren que é uma dona de casa, mãe de cinco filhos, totalmente oprimida pela família. Marcello Mastroianni é um homossexual que, claro, também será perseguido pelo fascismo.
Brasileiros – E Denise mora nesse prédio.
Maria – Não é uma coincidência extraordinária? E justamente um filme referência na temática da resistência ao fascismo e à ditadura? Foi por isso que fiz essa opção. Também gosto de brincar, gosto da ideia de o público chegar para ver um filme sobre o Brasil e aparecer Hitler e Mussolini na Europa. Depois, fiz a opção de não usar nenhuma imagem de arquivo brasileira.
Maria – São imagens muito conhecidas. Já vi em muitos filmes brasileiros. A gente também não tinha dinheiro para comprar essas imagens. Mas, realmente, foi uma opção estética de só usar arquivos da família. É um acervo carregado de histórias, de afetos, como os sapatos que pertenceram à Encarnación.
Brasileiros – As páginas datilografadas que aparecem no filme são uma espécie de diário da Encarnación?
Maria – Sim. É fascinante, porque Encarnación só fez quatro anos de escola primária e é um talento literário. Ela maneja as imagens e as palavras de forma extraordinária. Em uma cena sobre a polícia, ela escreve: “Se o meu olhar fosse uma arma, eu teria matado aquele homem”. Esse diário tem também valor histórico. Encarnación era mulher de José Maria Crispim, que foi deputado constituinte no Brasil. No mês passado, houve um ato em Brasília que devolveu de forma simbólica o mandato aos deputados cassados (em 1948). Entre eles, estava José Maria Crispim.
Brasileiros – Encarnación foi contemporânea da presidenta Dilma Rousseff no Presídio Tiradentes.
Maria – Encarnación conheceu efetivamente Dilma. Ela fala da Dilma no diário. Tem um episódio que eu quis integrar a Repare Bem, mas, como sempre acontece quando se faz filmes, muita coisa acaba ficando de fora. Encarnación fala de gestos de solidariedade, quando ela foi banida para o Chile no grupo dos 70 (o total de presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado pela guerrilha). E foi Dilma quem reuniu objetos, pediu roupas para as outras presas, para Encarnación sair bonita do presídio, bem arrumadinha, porque ela gostava de se vestir bem e iria reencontrar o marido. E Encarnación fala: “Essa mineira é fantástica”.
Brasileiros – Doze anos antes de Repare Bem, você fez Capitães de Abril, com uma multidão de figurantes nas ruas de Lisboa.
Maria – O máximo de figuração que tivemos foram 700 civis. Tivemos também algumas centenas de militares. Sem a ajuda do Exército português, a gente nunca teria conseguido. Cederam os militares de verdade e cederam os blindados.
Brasileiros – Como você conseguiu isso? Naquela época, você só era conhecida como atriz.
Maria – Comecei a trabalhar no Capitães de Abril aos 20, 21 anos. O Salgueiro Maia (um dos líderes da revolução de 25 de abril de 1974, que acabou com uma ditadura de 48 anos em Portugal) ainda estava vivo. Ele me transmitiu documentos inéditos, além de suas memórias da guerra colonial e da revolução. Também me deu folhas datilografadas, na mesma desordem do diário da Encarnación. Foram 13 anos de teimosia. As pessoas não entendiam o porquê de uma mulher de 20 anos querer contar essa história. Acho que, no fim, me deram o dinheiro porque já estavam fartos de mim.
Brasileiros – E o contato com os militares?
Maria – Ah, isso foi fantástico! Os militares foram os únicos que não questionaram a legitimidade do meu projeto. Acharam Ok que uma menina de 20 anos fosse ao quartel entrevistá-los e fazer pesquisas. Do início ao fim, foram impecáveis, porque me deparei com muito machismo fazendo esse filme, mas nunca da parte dos militares. Da parte da imprensa, muitíssimo.
Brasileiros – Como foi?
Maria – Fui insultadíssima pela imprensa, porque achavam ilegítimo. Com que direito eu me apropriava de uma história que era de outra geração? Diziam que eu não entendia nada, que era superficial porque era atriz. No entanto, o filme é muito fiel à realidade histórica. Foi estudado e apresentado, por exemplo, na SciencesPo., em Paris, por Yves Léonard, especialista em transições ibéricas. Ele sabe que o filme é muito fiel, mas na perspectiva dos militares. Fazendo esse filme me dei conta de que a história é subjetiva.
Brasileiros – Por quê?
Maria – Porque é sujeita à perspectiva de quem está contando. A sociedade civil e a imprensa dão versões muito diferentes da revolução. Tendem a se autoatribuir uma importância que não tiveram de fato ou que só tiveram mais tarde. Os militares portugueses eram muito novos quando fizeram a revolução. O Salgueiro Maia tinha 29 anos. De certa forma, os militares ofereceram o poder à sociedade civil em uma bandeja de prata. Muitos dos que assumiram o poder queriam ocultar como chegaram lá.
Brasileiros – Mas durante a ditadura em Portugal também houve resistência civil.
Maria – O papel dos militares não exclui o valor e a coragem dos resistentes civis, mas eles não conseguiram acabar com a ditadura. Quem fez isso foram os militares, que muitas vezes eram desprezados pela resistência civil. Eram considerados os cães do poder, que faziam a guerra colonial, que matavam gente na África. E foram esses meninos tão desprezados que derrubaram a ditadura em Portugal.
Brasileiros – Maria, nos anos 1990 você ganhou fama internacional como atriz, por causa de Henry & June e Pulp Fiction. O caminho natural não seria Hollywood?
Maria – Eu nunca tive o sonho americano. Fiz esses filmes americanos, que adoro, mas são filmes de autor, que me chegaram na Europa. Desde pequena, eu me destinava às Belas Artes, estava sempre desenhando. Ninguém pensava que eu seria atriz e eu muito menos. Foi uma coisa que apareceu na minha vida pelas mãos do João César Monteiro, um diretor português muito importante, muito louco, que me deu o meu primeiro papel. Ele mudou o rumo da minha vida, mas nunca pensei em me instalar em Hollywood. O cinema português é pobre, intelectual, literário, ousado e de criação. E foi esse o cinema que eu passei a gostar, a querer fazer.
Brasileiros – Como atriz, você está em cartaz em São Paulo com a peça Aos Nossos Filhos. É a história de uma ex-guerrilheira que tem dificuldade em lidar com o fato de a filha homossexual querer ter um filho com a parceira. Você faz essa peça por causa do filme?
Maria – Foi uma coincidência muito grande. Eu vinha trabalhando no filme havia mais de dois anos e, de repente, recebo em Paris essa peça da Laura Castro. Foi no final do ano passado. Às vezes, recebo peças e demoro meses para ler, pois é uma pilha. Mas li a peça imediatamente. Verifiquei as incríveis coincidências entre o filme e a peça, com um percurso muito parecido com o da Denise. Claro que fiquei interessada. Em homenagem a Denise e Eduarda, eu também gravei música.
Brasileiros – Que música?
Maria – É do meu novo disco, Pássaros Eternos. Eu compus quase todas as músicas. Só tem dois covers. Um deles é Aos Nossos Filhos, de Ivan Lins, em homenagem a Denise e a Eduarda. Então, em mais uma coincidência, aparece uma peça que tem a ver com o filme, com a história brasileira e também com todas aquelas passeatas contra o casamento gay que estavam acontecendo em Paris.
Brasileiros – E Little More Blue, seu primeiro disco? Você canta Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até Dolores Duran. Como a música brasileira entrou na sua vida?
Maria – A música brasileira chegou graças à revolução portuguesa. É estranho, mas é verdade. Eu cresci na Áustria. Nasci em Lisboa e com poucos dias de vida fui para Viena. A família não era exilada, mas preferia ficar longe da ditadura em Portugal. Meu pai é músico clássico. Tinha feito seus estudos na Academia de Viena e lá ficou. Então, cresci ouvindo música clássica todos os dias. Sabia quem era Mahler, Stravinsky, Schumann, mas não tinha a menor ideia de quem eram os Beatles ou os Rolling Stones. Então, foi uma infância muito fora do normal.
Brasileiros – Fora do normal para a Áustria?
Maria – Não. Na Áustria, todas as crianças estudam música clássica na escola. Mas aconteceu a revolução portuguesa e meus pais voltaram para Lisboa. Eu tinha uns 9 anos e meio. Nessa época, houve uma aproximação muito grande entre Portugal e Brasil. Chegaram todos os brasileiros, o Chico, o Caetano, o Gil. E chegaram as telenovelas. Houve uma invasão da cultura brasileira. Eu fiquei maravilhada com a música brasileira. Além de ser uma música fantástica, era na minha língua. Então, a música brasileira foi totalmente formadora para mim. Não só musicalmente, mas também filosoficamente. É evidente que autores como Chico, Caetano e Gil são filósofos, são pessoas que, por meio da música, estão pensando o mundo.
Brasileiros – Verdade que seu pai era amigo do maestro brasileiro John Neschling?
Maria – Superamigos. Inseparáveis. O John é uma pessoa muito engraçada, o meu pai também. Eles eram terríveis. Em Viena, viviam fazendo piadas. Faziam tudo para provocar a sociedade austríaca, que é bem conservadora.
Brasileiros – Como, por exemplo…
Maria – Viena é uma cidade continental. É muito fria no inverno, mas é muito quente no verão. Aí, eles saíam encasados em pleno verão. Fazia um calor horrível e eles diziam: “Nós somos tropicais. Estamos morrendo de frio”. Só para chocar aquela sociedade, que não entendia nada.
Brasileiros – Mais tarde, você foi para Paris. Para você, a União Europeia existia muito antes de sua criação formal, não?
Maria – Fui para Paris com 18 anos. Para estudar Filosofia, na Sorbonne. Depois, teatro. E sou muito grata a meus pais por terem me criado nessa perspectiva europeísta. Muitas vezes, atravessávamos a Europa para ir de férias a Portugal. Íamos de carro. A minha mãe conduzia e ela é uma espécie de gênio das línguas. Falava perfeitamente alemão. A gente cruzava a fronteira, passava para a Itália, e ela começava a falar italiano perfeitamente. Depois, francês. Depois, espanhol. E, até chegarmos a Portugal, íamos visitando as cidades, as catedrais. Levávamos muito tempo. Não existiam essas autoestradas de agora. Isso me deu um conhecimento e um grande amor pela Europa, por sua diversidade cultural, linguística.
Brasileiros – Você também tem muito talento para línguas. Fala alemão, inglês, francês, espanhol, italiano e português.
Maria – Fui aprendendo na infância. Então, não há muito mérito nisso. E defendo muito que as crianças comecem a aprender línguas antes dos 10 anos, porque é muito fácil. Fica difícil aos 10, quando as crianças começam a aprender idiomas na escola. Acho que está tudo errado.
Brasileiros – E como é essa história com o sotaque português? No palco, ele some. Depois, reaparece.
Maria – Ele reaparece com a Maria, é claro. Gosto muito da música das línguas e sempre adorei o sotaque brasileiro. Para mim, foi muito divertido entrar na personagem da mãe em Aos Nossos Filhos. Precisei fazer uma composição para ser bem mais velha, ter outro sotaque. O fascinante é que cada língua impõe uma certa atitude em relação ao mundo.
Brasileiros – Como é esse processo?
Maria – O francês leva a uma certa racionalidade. O alemão, por ser tão lógico, quase que obriga a olhar para um mundo como uma engenharia. O espanhol e o sotaque brasileiro me obrigam a uma exuberância que naturalmente eu nem teria. Os portugueses têm uma relação acanhada com o mundo.
Brasileiros – Você é casada com o produtor catalão Agustí Camps e tem duas filhas, de 15 e 9 anos. Como elas lidam com a mãe fora de casa, em trânsito?
Maria – Na verdade, nunca estive tanto em trânsito. Tenho meu lado austríaco. Uma das regras era nunca estar mais de um mês fora de casa. E, com idas e vindas, desde janeiro estou no Brasil. Então, esse ano tem sido um pouco extremo nesse estar fora de casa. Ao mesmo tempo, estou muito feliz que tenha coincidido a peça com o filme.
Brasileiros – Essa opção por estreitar as relações com o Brasil também foi influenciada pela crise econômica na Europa?
Maria – Sempre sonhei em estreitar o trabalho com o Brasil. Vim muitas vezes para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fiz dois curtas para a mostra. Mas é certo que a Europa está em um período muito crítico, com a cultura especialmente afetada. E não foi a cultura que arruinou esses países. Foi a irresponsabilidade dos bancos e da indústria. Não é o acabar com a cultura que vai endireitar as finanças. E hoje há no Brasil um dinamismo para os criadores que deixou de existir na Europa.
Brasileiros – Quais são seus próximos planos?
Maria – A ideia agora é adaptar a peça Aos Nossos Filhos para o cinema. Na verdade, a Laura Castro e eu já estamos escrevendo. Eu faria a direção. Não faria o papel de mãe, porque não seria credível no cinema. E já tenho uma banda paulistana para fazer shows. Ainda não tem nome, mas, enfim, tenho o meu grupo.
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