“O mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu.” Assim Jorge Luis Borges descreveu a novela O Coração das Trevas, do escritor anglo-polonês Joseph Conrad. Publicada em 1902, e considerada uma das 100 maiores obras da literatura mundial, aporta novamente no Brasil, ancorada pela edição caprichada da Editora Landmark. Parte da coleção Grandes Clássicos, o relato sombrio de Conrad chega agora em versão bilíngue, com o texto original em inglês, nova tradução de Fábio Cyrino e nota do autor.
Inspiração para o roteiro de Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, O Coração das Trevas narra a saga do capitão Charles Marlow e sua busca pelo misterioso senhor Kurtz. Lobo do mar e aventureiro, Marlow se vê entediado após longo período sem trabalho. Para quem tem em um navio seu único lar e na vastidão do mar sua única pátria, nada pior que terra firme. Contratado por uma companhia inglesa de exploração de marfim, Marlow assume o comando de um barco a vapor. É enviado a uma colônia africana para, pelo rio, transportar de um posto a outro o produto extraído da selva. Antes, no entanto, é incumbido de resgatar o senhor Kurtz, funcionário que dirige o posto mais produtivo, localizado na parte mais alta e inóspita da rota. A busca por Kurtz mergulha Marlow em uma jornada sombria em direção às profundezas da selva e da alma humana.
Ao longo do livro, o misterioso Kurtz nos é apresentado por relatos de personagens coadjuvantes. Não é preciso avançar muito no texto para nos sentirmos tão obcecados por ele quanto Marlow, e aí reside a genialidade de Conrad. Uma leitura atenta mostra que, logo no início, fomos alertados para o que estava por vir pelas duas mulheres que recepcionam o marinheiro no escritório central da companhia. Ambas tricotam algo utilizando lã de cor negra. Uma mortalha? Aos poucos, o livro ganha tons mais sombrios e tensos e a mortalha começa a nos envolver. Quando nos damos conta, já estamos cativos e, como o capitão, não nos resta outra opção senão continuar seguindo rio acima e encarar o horror do desconhecido, o horror da solidão, o horror da ganância, o horror da loucura. O horror! O horror!
Desde que surgiu, O Coração das Trevas foi alvo de diversas interpretações. Pela forma como Marlow descreve os africanos, a obra foi acusada de preconceituosa e, em tempos de correção política extremada, até racista. Uma análise do contexto histórico em que foi escrita basta para entender que a verdadeira intenção de Conrad era denunciar a exploração imperialista e o colonialismo de fins do século XIX. Embora não deixe claro em que parte da África, ou mesmo o nome do rio onde a história se desenrola, o autor parece se referir ao Rio Congo, localizado no então Estado “Livre” do Congo. Na época, a região era colônia do rei Leopoldo II da Bélgica que conseguiu ser o “dono” do território onde hoje fica a República Democrática do Congo. Em uma jogada política, o monarca fez acordos com líderes tribais e associações filantrópicas de fachada, do tipo Amigos da África – todas presididas por ele -, convencendo os governos europeus a lhe passar a administração da colônia, que era arrendada a empresas exploradoras belgas e britânicas em busca de marfim e borracha.
Experiência pessoal teria inspirado o texto
É conhecido que Joseph Conrad seguiu a carreira de marinheiro por 16 anos, experiência que foi base para sua obra. Em um de seus últimos empregos marítimos, o autor trabalhou para uma empresa de exploração belga, justamente conduzindo um barco a vapor através do Rio Congo. O período de dominação de Leopoldo II durou quase 30 anos – caso isolado de uma colônia sendo administrada como propriedade pessoal – e foi marcado por tirania e extrema violência, resultando em mais de dez milhões de mortos. Conrad presenciou in loco os métodos dos agentes do Rei para manter a ordem por meio do medo. Alguns desses métodos, como o de espetar cabeças cortadas em estacas, podem ter influenciado os do megalomaníaco Kurtz. Outros, como a mutilação de membros, assombram a África ainda hoje. Vide o caso dos mutilados dos diamantes de sangue de Serra Leoa. O certo é que O Coração das Trevas foi a primeira obra literária a fazer a denúncia e pode-se dizer que, ao lado de artigos de jornalistas e intelectuais como Mark Twain, fez coro para acabar com a dominação de Leopoldo II no Congo. O lançamento oferece-nos nova oportunidade para acompanhar a jornada de Marlow/Conrad e, seguir com eles rio acima, para concluir que, ainda que sejam escuras as profundezas da selva, não há breu maior que as trevas do coração humano.
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