As vidas de Flávio Tavares no dia que durou 21 anos

O jornalista e escritor Flávio Tavares é parte da história contemporânea. Ressuscitou de atrocidades físicas e mentais praticadas por integrantes de ditaduras militares no Brasil e na América do Sul. Em 1969, após ser preso e barbaramente torturado pelos militares, fez parte do grupo de presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Foi para o México no avião Hércules 56, que levou, entre outros, José Dirceu, Luiz Travassos, Wladimir Palmeira, Gregório Bezerra, Maria Augusto Carneiro (a Guta) e Ricardo Zarattini. Viveu e trabalhou no México, na Argentina e em Portugal, até voltar ao Brasil, em 1979, após a anistia. Nesse intervalo, foi sequestrado pela ditadura uruguaia, e novamente torturado. E sobreviveu. “Sou muito calmo nas coisas grandes e muito intranquilo e ansioso nas coisas pequenas”, afirma.

Aos 76 anos, este gaúcho de Lajeado mantém a voz pausada, o olhar tranquilo e a serenidade daqueles que são capazes de vencer o ódio, a vingança, pelo amor. Pouco antes de conceder essa entrevista para Brasileiros, Tavares falou a um grupo de profissionais de comunicação e executivos de fundos de pensão, no Rio de Janeiro. À plateia, mais afeita às leis de mercado, avanços tecnológicos e gestão corporativa, ele falou em humanização e ensinou aos mais jovens que “Jornalismo é sacerdócio e o ser humano deve ser o principal beneficiário pelo nosso trabalho”. Autor de livros como Memórias do Esquecimento e O Dia em que Getúlio Matou Allende, Tavares tem fôlego de sobra para recomeçar sempre. Nesse momento, em parceria com o filho, Camilo, escreve o roteiro de um documentário sobre o golpe de 1964 que vai se chamar O Dia que Durou 21 Anos.

Brasileiros – Onde você nasceu Flávio?
Flávio Tavares –
Nasci em Lajeado, Rio Grande do Sul, em 1934, uma cidadezinha de colonização alemã, justamente em uma fase anterior ao início da Segunda Guerra Mundial. Numa região onde os descendentes alemães eram, naturalmente, simpatizantes ao Hitler, em função da intensa propaganda que era feita pelo consulado alemão. O povo na verdade nem sabia o que era nazismo. Nessa época, duas situações foram marcantes na minha vida e se estenderam da infância até início da adolescência. A primeira foi a Segunda Guerra Mundial, que eu acompanhei lendo os jornais da época. Aliás, inclusive me alfabetizei lendo as notícias da guerra. Eu acompanhava tudo, as batalhas, as lutas.
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Brasileiros – Qual era a sua idade?
F.T. –
Eu tinha cinco anos. Na minha casa, esse período foi muito marcante, pois eu tenho uma ascendência francesa por parte de pai. Assim, quando a França caiu, nós acompanhávamos todos os acontecimentos na Europa. Outro acontecimento que me marcou muito foi a disputa que havia na região entre católicos e protestantes, que se odiavam. Eu tenho uma mistura de português, índio e francês. Pelo lado paterno, sou português pelo meu avô e francês pela minha avó. Uma família que teve de fugir da França após a Revolução Francesa e a Comuna de Paris e se refugiou no Rio Grande do Sul. Minha família tinha título de nobreza, mas não eram nobres. Eram simplesmente proprietários de castelos, industriais de produção de vinho, mas na época eles eram considerados como senhores feudais. Meu pai era maçom e minha mãe uma piedosa senhora de missa dominical. Eu era católico, mas sem aquela visão religiosa da igreja. O meu Deus é o Deus cristão. Deus para mim é o amor. Agora, quanto ao Deus da criação, eu não sei. Esse é o grande mistério da vida, porque somos incapazes de discernir e saber onde tudo começa.

Brasileiros – Qual era profissão do seu pai e onde você começou os estudos?
F.T. –
Ele era funcionário público. Foi tipógrafo na juventude e, na época, só as pessoas letradas exerciam a profissão. Depois, escrivão e juiz municipal. Eu comecei o primário em colégio público e depois em um colégio marista, aliás, ao qual devo muito da minha formação. Eles eram muito abertos. No terceiro ano ginasial, com 13 ou 14 anos, tive um professor, Irmão Nilo, que teve uma influência enorme na minha vida. Até então, eu meus colegas éramos católicos pelos rituais, mas não conhecíamos nada do Cristianismo. E o Irmão Nilo nos fez ver isso. Lembro que uma de suas primeiras medidas foi abolir a obrigação para que rezássemos o rosário inteiro antes de começar as aulas. Nós simplesmente fazíamos o sinal da cruz e pronunciávamos: “Que Deus nos dê força para que amemos o nosso próximo”. Em 1950, com 16 anos, fui estudar em Porto Alegre no curso Clássico e morar sozinho na casa da Juventude Universitária Católica (JUC).

Brasileiros – Quando você despertou para política?
F.T. –
Ainda na casa dos meus pais, onde se vivia um ambiente socialista. Não no aspecto político, mas sim no aspecto social, do amor ao próximo. Eu me lembro de quando disse ao meu pai que queria ser advogado, ele tentou me influenciar para que fosse médico, porque assim eu poderia fazer caridade. Meu pai havia sido prefeito, nomeado pelo Estado Novo em um município próximo e teve certo envolvimento na Revolução de 1930, quando se alistou como voluntário. Embora getulista, minha família votou no brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN, para presidente da República, em 1945. Meu pai era antiditatorial, um homem de cabeça aberta. Em 1950, ele votou no Getúlio, mas mesmo assim dizia que o bom candidato era o João Mangabeira, do partido Socialista. Na casa da JUC, eu e um amigo escandalizávamos os demais porque líamos a Tribuna Gaúcha, um jornal comunista e o grupo político forte na JUC era formado pelos integralistas. Foi nessa época que tive contato com um grupo socialista judeu, o Movimento Socialista Sionista Dror, o que contribuiu para que viesse a me filiar, em 1951, no Partido Socialista. Nessa época, o Partido Socialista era uma espécie de clube, um local de encontro para as discussões e não propriamente um partido de massas.

Brasileiros – O que diferencia a juventude da sua época para a de hoje?
F.T. –
A grande diferença era que nós, tanto da direita, centro, como da esquerda, não tínhamos nenhum interesse subalterno, mas queríamos transformar o mundo, cada qual a sua maneira. Outro detalhe é que nos líamos muito nessa época. Eu aprendi a ler com meu irmão mais velho. Uma das coisas que ele me ensinou foi ler poesia, aliás, que faço muito até hoje. Lembro que o primeiro poema que li foi do Gabriel Garcia Lorca. Na verdade, em relação à leitura, as pessoas imaginam que eu seja um grande leitor e ao contrário, eu não sou. Gosto de fazer releituras, mas passo um bom tempo sem ler nada de novo. Acho até que o excesso torna-se um desperdício, pois, a leitura, tem de ser assimilada, entendida, caso contrário nada mais é do que decorar frases, situações ou até personagens. Eu medito muito sobre aquilo que leio. Às vezes, duas ou três páginas são suficientes para ficar uma semana pensando e analisando. Agora eu até não tenho tempo de ler nada porque estou fazendo um documentário com meu filho, que é cineasta, sobre 1964. Eu fiz o roteiro e ele dirige.

Brasileiros – Mas voltando aos anos 1950, como era a política no Rio Grande do Sul nessa época?
F.T. –
Bem, em 1950, Getúlio volta ao poder e no Rio Grande, com o término do governo de Walter Jobim – avô do ministro Nelson Jobim e que foi um governo discricionário, brutal, atrasado -, o PTB elege Ernesto Dornelles, primo de Getúlio. Foi justamente o começo da vida política do Jango, como secretário de Justiça e do Brizola, secretário de Obras Públicas. Nessa época, eu conheci o Jango e o Brizola. Dois anos depois, fui estudar no colégio Julio de Castilhos e eleito presidente do Grêmio Estudantil, um órgão de grande prestígio em Porto Alegre. Em 1953, entrei na faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica, a PUC. Nesse mesmo ano, fiz vestibular e fui aprovado no curso de História Natural, hoje chamado Biologia. Mas acabei desistindo e concluí apenas a faculdade de Direito. Aliás, eu só advoguei em Direito Canônico. Como estudei na PUC e lá fiz um curso de Direito Canônico, fui procurado para atuar nos tribunais eclesiásticos para anulação de casamentos. Mas nada mais do que isso.

Brasileiros – Na faculdade, como foi sua atividade política?
F.T. –
Intensa. Em 1954, fui eleito presidente da União Estadual de Estudante (UEE). Um detalhe importante é que nesse período as entidades estudantis eram muito politizadas, mas os partidos políticos da época não tinham influência como hoje. Nós debatíamos intensamente e tomávamos posições ideológicas, sem a atuação deles. A politização era tão intensa que eu fui à União Soviética participar de uma reunião do Conselho Internacional dos Estudantes, pela Universidade de Moscou e lá fui convidado para ir à China, uma viagem que também foi muito marcante na minha vida. Veja que nessa época os estudantes tinham um papel muito importante na vida política brasileira. Em julho de 1954, eu fui recebido no Palácio do Catete pelo presidente Getúlio Vargas e apresentei um Plano para Reforma Universitária, aprovado pelo Congresso dos Estudantes do Rio Grande do Sul, além de alguns pedidos. Ele se comprometeu a incluir no orçamento do próximo ano, mas infelizmente pouco de mais de um mês depois ele cometeu o suicídio. Quando aconteceu, eu estava chegando à União Soviética e fiquei sabendo pela leitura dos jornais de lá.

Brasileiros – Qual sua opinião sobre o Getúlio?
F.T. –
Nessa época, eu achava que o Getúlio não confiava no povo, não passava de um líder carismático, mas sem grandes propostas para o povo. Eu tinha ficado com aquela visão do ditador que governou de 1937 a 45. Só anos depois pude entender que o Getúlio foi muito mais do que aquilo. Esse período foi uma contingência nacional e internacional. Em 1935, os comunistas cometeram um erro brutal em pleno governo constitucional que foi a rebelião no Exército, sem sentido, liderada pelo Luís Carlos Prestes, que em 1930 tinha rejeitado o convite para ser o chefe do Estado Maior da Revolução, sob o argumento que essa não era uma revolução proletária. Prestes já estava muito imbuído pela ação sectária que dominava o stalinismo e, por sua vez, os partidos comunistas do mundo inteiro.

Brasileiros – Qual a visão que você teve da China comunista nessa época?
F.T. –
Eu estive lá quando os chineses comemoravam o quinto aniversário da Revolução e o país estava em grande ebulição. Era possível perceber que eles procuravam se organizar de forma disciplinada. Eu costumo citar uma cena que vi e foi marcante. Viajando por uma província, avistamos do trem uma fila imensa, quilométrica, algo como dez mil pessoas à beira de um rio, e cada uma delas ia passando a outra um regador com água. Sabe para que? Era assim a irrigação da agricultura local. Eles não tinham nenhum processo ou muito menos mangueiras para levar a água. Essa cena me deu a visão daquele povo, da paciência oriental, da capacidade de se unir para atingir seus objetivos.

Brasileiros – Nessa viagem, há uma passagem sua com o ex-presidente chileno, Salvador Allende…
F.T. –
Nós ficamos hospedados no mesmo hotel que ele, na época senador. Eu é que contei sobre o suicídio do Getúlio que ele nada sabia. Aliás, esse encontro eu relato com detalhes em um dos meus livros O Dia em que Getúlio Matou Allende. Quando contei a ele, tive a sensação de que seus olhos brilhavam com aquela história, que ele se deslumbrou com a ideia do sacrifício. No livro, eu faço uma metáfora desse episódio com seu suicídio, em 1973.

Brasileiros – Em sua opinião, Allende cometeu suicídio ou foi morto?
F.T. –
Eu acho que foi suicídio.

Brasileiros – Como começou o jornalismo na sua vida?
F.T. –
Eu comecei no jornalismo com oito anos de idade, em 1942, no grupo escolar em Lajeado. Tudo que eu lia no jornal ou ouvia no rádio na minha casa, eu contava à professora e ela pedia para que publicasse no mural. Lembro o dia que ouvi a notícia que os aliados tinham invadido a Itália. Ao chegar ao colégio, imediatamente publicamos no mural. Acho que foi aí que comecei a ser jornalista. Mas eu sempre gostei de comunicação e caí no jornalismo por acaso. Quando retornei da União Soviética e China, o editor de um semanário de Porto Alegre chamado Hoje me convidou para escrever uma série de artigos sobre a União Soviética. O título era “Eu fui hóspede do Kremlin”. Fiquei no jornal até 1956, quando fui trabalhar em outro chamado A Hora, onde fiquei pouco tempo. Foi quando o Samuel Wainer, no final de 1959, resolveu criar A Última Hora, no Rio Grande do Sul. Como em todo o País foi um jornal inovador, um marco na imprensa brasileira. Nessa época, eu fiz uma reportagem em Punta Del Este, no Uruguai, que para mim foi marcante: cobrir uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde o representante de Cuba era o Che Guevara. Uma figura marcante, despojada, um homem que costumava dizer que não queria nada para ele, mas sim mudar o homem. Para ele, o importante era que o ser humano fosse diferente em seu pensamento. Mas um fato importante que vivi na Última Hora foi quando Jânio Quadros renunciou e o jornal, no dia 27 de agosto, em edição extraordinária lançou a Campanha da Legalidade pela posse do então vice-presidente, João Goulart. Nessa edição, aconteceu um fato inédito. Pela primeira vez um jornal foi distribuído pelas ruas sob a proteção da polícia, temendo que as Forças Armadas pudessem proibir sua circulação. Em 1962, comecei a viajar com frequência a Brasília, já no governo Jango, até que em janeiro de 1963 fui definitivamente para ser colunista político da rede da Última Hora, onde permaneci até 1967 quando fui preso.

Brasileiros – Nessa época, você já era um ativista político?
F.T. –
Não, não… A minha atividade política era o jornalismo. Mesmo na Universidade de Brasília, onde fui professor, nunca tive qualquer atividade política. Era só o jornalismo mesmo.

Brasileiros – Em que momento entrou para a resistência?
F.T. –
Eu costumo dizer que o golpe de 64 foi uma bofetada na minha geração, que havia se preparado para a política. Aos poucos, eu comecei a entrar para a resistência armada. Primeiro, com o Brizola no Movimento Nacionalista Revolucionário, em que tentamos implantar um foco revolucionário no norte de Goiás, onde hoje é Tocantins, e no Maranhão. A seguir, em 1967, eu fui preso em Brasília por uma delação inexistente, onde fiquei detido por seis meses e um mês em Juiz de Fora (MG). Quando saí da prisão, resolvi deixar Brasília e vim para o Rio de Janeiro onde retornei ao jornalismo na Última Hora. Até que, no dia da promulgação do AI-5, o Samuel Wainer, dono do jornal, e eu fomos obrigados a deixar a redação para não sermos presos. Aí sim, a partir de janeiro de 1969, eu passei a me integrar diretamente na luta armada. Nesse mesmo ano, em agosto, eu fui preso em uma cilada aqui no Rio de Janeiro.

Brasileiros – Como foi a cilada?
F.T. –
Fui preso ao chegar ao meu apartamento, delatado pelo porteiro do meu prédio. E, aí, eu conheci algo que eu desconfiava, mas não conhecia: a tortura. Na verdade, comecei a ser torturado logo que entrei no táxi que me conduziu da Rua Paissandu, no Flamengo, até o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita. Eu fui colocado no banco de trás do carro, sentado entre dois policiais que fumavam e após tragarem apagavam o cigarro no meu peito. Quando desci do carro, fui recepcionado por um corredor polonês, onde os soldados me davam pontapés e batiam com cassetete nas costas. Daí, fui direto para o choque elétrico.

Brasileiros – Quantos dias durou essa tortura?
F.T. –
Eu fiquei três dias sem dormir, tomando choque por todo o corpo, sem dormir e tomando apenas alguns copos de água. Só consegui dormir na quarta noite após a chegada do coronel Elber de Melo Henriques, que havia sido nomeado para comandante do Inquérito Policial Militar (IPM). Um sujeito correto que quando me viu naquelas condições, dormindo em uma cela imunda, suja, toda molhada por urina, mandou suspender a tortura. Só que ele saía no final da tarde e de madrugada éramos todos novamente torturados.

Brasileiros – Durante a sessão de torturas, o que eles queriam saber?
F.T. –
Queriam saber nomes, situações e principalmente insistiam em fatos, na maioria das vezes inexistentes, como planos, organizações…

Brasileiros – Você chegou a revelar alguma coisa?
F.T. –
Ah sim… Sob tortura, todo mundo revela alguma coisa. Mas o importante é saber o que revelar. Eu, por exemplo, revelei esconderijos de armas que não existiam mais ou aparelhos onde todos os integrantes já não estavam mais lá, estavam presos. Com isso, eu dava credibilidade a eles e daí podia sonegar outros tipos de informações. Eu revelei um esconderijo em Copacabana e outro em Mesquita, subúrbio do Rio. Eram verdadeiros, existiam, algumas armas ainda estavam lá, mas não tinha mais ninguém.

Brasileiros – Quanto tempo você ficou preso?
F.T. –
Os policiais diziam que iria ficar 30 anos preso, mas fiquei mesmo 30 dias, até ser trocado no sequestro do embaixador americano. Aliás, quando cheguei ao México eu tinha perdido o movimento da mão direita, porque os choques são dados sempre do lado direito para que o torturado não corra o risco de morrer do coração. O choque na verdade não é para matar, mas para humilhar, desmantelar a pessoa. Eu não conseguia nem escrever com a mão direita, era preciso a ajuda da esquerda.

Brasileiros – A que você atribui o fato do seu nome estar na lista dos presos políticos trocados pelo embaixador?
F.T. –
A lista procurou ser ecumênica, escolher pessoas das várias correntes. Quem escolheu meu nome foi o pessoal do Marighela, da Aliança Libertadora Nacional (ALN).

Brasileiros – Flávio, como foi aquela história da sua mãe na igreja poucos dias antes de sua libertação?
F.T. –
De fato, essa é uma história marcante. Minha mãe, muito católica e já idosa, foi com minha filhinha de quatro anos à Igreja da Glória, no Largo do Machado, aqui no Rio, rezar pela minha liberdade. Minha filha, muito pequena, ficou brincando ao seu lado. Antes de ir embora, ela entregou um dinheiro para minha filha depositar em uma caixinha onde se deixavam as ofertas. Casualmente, no dia seguinte é nessa mesma caixa que foi deixada a lista com o nome dos 15 prisioneiros que deveriam ser trocados pelo embaixador. E o meu nome era um deles.

Brasileiros – A que você atribui isso?
F.T. –
Não sei, mas posso dizer que sempre tive muita sorte na adversidade. Além dessa prisão, outra foi no Uruguai em 1976. Logo após o sequestro, fiquei morando no México por quase seis anos e depois, em 1974, fui para Buenos Aires, como correspondente do jornal Excelsior. Na mesma época, fui correspondente do jornal O Estado de S. Paulo onde assinava com o pseudônimo de Júlio Delgado. Eram dois jornalistas distintos, que diariamente escreviam textos completamente diferentes no conteúdo e mesmo na forma. O Flávio Tavares escrevia em espanhol para o Excelsior e o Júlio Delgado em português para o Estadão. Comecei a escrever para o Estadão no mês de julho, daí o Júlio e também por uma homenagem ao Júlio de Mesquita, que teve a coragem de colocar como correspondente na Argentina uma pessoa que tinha sido trocada por um embaixador americano; e Delgado porque eu estava muito delgado, ou seja, magro em espanhol.

Brasileiros – Mas fale sobre sua prisão no Uruguai.
F.T. –
Um dia, foi preso um jornalista free lancer do Excelsior em Montevidéu e o jornal pediu para que eu fosse até lá contratar um advogado para tirá-lo da prisão. E assim fiz. No dia seguinte, 14 de julho de 1975, o colega já solto foi me levar ao aeroporto. Eu senti alguma coisa estranha no aeroporto e isso já eram quase 21 horas. Passei pela migração e, quando começava a subir a escada do avião, um cidadão me chamou e perguntou se eu era Flávio Tavares. Disse que sim e ele pediu que o acompanhasse, pois tinha esquecido de “preencher minha ficha de saída do País”. Retornei e eles começaram a fazer muitas perguntas e sempre alegavam que meus documentos eram falsos. Pedi que se certificassem com a polícia argentina, mas que fizessem rápido porque senão perderia o avião. Quando disseram que o voo já havia partido há 15 minutos, me dei conta de que estava sendo sequestrado. Fui levado para uma casa onde permaneci por cerca de sete dias e depois transferido a outra. Lá, eles ameaçavam me matar. Pediam para que eu caminhasse e atiravam para os lados. Isso se repetiu outras vezes.

Brasileiros – Mas o que eles queriam saber?
F.T. –
No início, perguntavam sobre brasileiros que viviam no Uruguai. Fiquei preso 28 dias, comendo muito mal, sem tomar banho, em uma espécie de solitária, sem ver o sol. Eles me transferiam de uma casa a outra para confundir. Recordo que a primeira era de madeira; a segunda, uma casa imensa onde inclusive jogavam futebol, era de ladrilho. Na primeira noite, me interrogaram durante toda a madrugada e continuaram no dia seguinte. Meu infortúnio foi que na segunda noite eles resolveram revistar o sobretudo que eu estava trajando e encontraram escondido algumas anotações que eu havia feito, em francês, onde descrevia dois centros de tortura no Uruguai. Aliás, acho até que uma dessas casas era justamente onde eu estava. Daí, eles queriam saber sobre essas descrições. Eu não conhecia nada. Tudo o que anotei foi dito por um cidadão, integrante do partido comunista uruguaio que conheci em um jantar na casa do secretário da embaixada americana, e que se dizia chamar Oscar. Na verdade, eu logo percebi que o nome dele não era esse. Com a demora, minha mulher comunicou aos jornais Excelsior e Estadão sobre a minha ausência e no dia seguinte ambos denunciaram meu desaparecimento em manchete.

Brasileiros – Você chegou a ser torturado?
F.T. –
Como eu não falei nada sobre o tal Oscar, no décimo segundo ou décimo terceiro dia eles fizeram algo que chamam de “colgamiento”, ou seja, “penduração”. Eles vedaram meus olhos, amarraram as mãos para trás e me deixaram só de camisa pendurado por uma roldana. Mas graças a uma campanha mundial da imprensa, eles acabaram me libertando.

Brasileiros – Você comentou que rezava para não ser torturado com choque.
F.T. –
É verdade, é verdade. Após a segunda noite, eu rezava para não levar choque elétrico. O choque é terrível, ele destrói qualquer pessoa. E eu, aqui no Brasil, levei pouco choque na boca. Foram muitos nos pés, no pênis e ainda passavam de forma muito rápida pelos olhos. Uma coisa terrível, brutal. O irônico é que na máquina de choque estava o símbolo do programa Aliança para o Progresso, patrocinado pelos Estados Unidos.

Brasileiros – Qual a reação de uma pessoa que de repente se vê sozinha, presa, sequestrada em um país estranho? O que passou pela sua cabeça naquele instante?
F.T. –
Eu imaginei que fosse apenas um susto que eles queriam me dar, até mesmo porque eu tinha escrito algumas matérias para o Estadão criticando o governo militar de lá. Mas quando vi que estava preso, fiquei obviamente preocupado. Mas eu tenho uma característica: sou muito calmo nas coisas grandes e muito intranquilo e ansioso nas coisas pequenas. Mas depois do 28o dia, eles legalizaram a minha prisão e fui levado para o Cárcere Central de Montevidéu. Eu deixava a condição de desaparecido para me tornar preso político.

Brasileiros – Qual o argumento para prendê-lo?
F.T. –
Espionagem. Daí, eu passei a ter direito a uma visita semanal. Um dia, minha ex-mulher foi ao presídio e me avisou que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso tinha alguns contatos no Uruguai e conseguiu que o cônsul brasileiro fosse me visitar. Eu não acreditei. Mas a trama foi a seguinte: o Fernando Henrique era amigo do ex-ministro Severo Gomes, que por sua vez era amigo do general Golbery do Couto e Silva, na época chefe da Casa Civil do governo Geisel. A partir daí, a campanha internacional se intensificou com declarações do presidente Jimmy Carter, dos EUA, e uma carta da Santa Sé. A minha mãe escreveu uma carta ao papa encaminhada ao Vaticano por D. Paulo Evaristo Arns. O secretário geral da Santa Sé respondeu que, por se tratar de uma questão de Estado, o papa não poderia interceder. Mas o importante é que a carta foi divulgada pela imprensa de todo o mundo. O desfecho se deu quando o Geisel visitou o México e a imprensa perguntou a ele sobre a minha situação. Em seguida, ele (Geisel) viajou a Montevidéu e no dia anterior a sua chegada, eu fui oficialmente expulso do país. De lá, segui para Portugal onde fui recepcionado no aeroporto por Miguel Arraes e Brizola. Também me aguardava o chefe de gabinete do primeiro ministro Mário Soares. Embarquei numa Mercedes e fui para o hotel, antes de seguir para o Palácio São Bento, sede do governo. Que ironia, hein! Saí da prisão no Uruguai e em Portugal embarquei em uma Mercedes para ser recebido em um Palácio.

Brasileiros – A prisão deixou em você algum trauma?
F.T. –
Olha, o grande trauma que senti foi quando fui levado para uma cela no Quartel do Exército no Rio de Janeiro, no dia 4 de setembro de 1969, e encontrei uma pessoa estendida no chão. As luzes estavam apagadas, mas com o passar do tempo eu identifiquei que era um companheiro de luta chamado Roberto Cieto. A princípio, pensei que estivesse dormindo, mas depois pude constatar que estava morto. Percebi que ele tinha sido torturado e estrangulado. Ainda recordo de sua camisa xadrez. Esse foi meu trauma fisiológico, pois psicológico foram muitos. Durante muitos anos, não podia ouvir sirene de polícia. Eu recordo, ainda, uma vez que a polícia veio atrás de nós e atirou em nosso carro. Só fui salvo porque outro companheiro que vinha atrás, um exímio atirador, conseguiu acertar o carro da polícia.

Brasileiros – Após a anistia, você chegou a encontrar alguém que o tenha torturado?
F.T. –
Não. Nunca encontrei. Um dia após a eleição do Tancredo Neves, em 1985, quando retornava de Brasília encontrei um coronel, Epitácio, que havia me prendido em 1967. Ele foi muito duro na ocasião, mas se portou com toda dignidade.

Brasileiros – Qual sua opinião sobre a figura do torturador?
F.T. –
Em minha opinião, o torturador obedece a dois sintomas. Um é um caso patológico, neurótico e demente que serve a uma visão de mundo também demente. Eu costumo fazer uma analogia e dizer que o provador de perfume francês só pode ser alguém com bom olfato. Assim como uma pessoa normal, sem desvio patológico não pode ser um torturador. Além de ser cruel e desumano, o outro sintoma é o de obedecer a uma patologia política, por usar a tortura como método de interrogatório.

Brasileiros – Em seu livro Memória do Esquecimento, no qual conta essa sua sina, em nenhum momento você demonstra rancor, ressentimento ou mesmo ódio. Em algum momento você sentiu ódio daqueles que o torturaram?
F.T. –
Senti durante muito tempo. Veja, logo que chegamos ao México, em 1969, ainda prisioneiros de nós mesmos, eu sentia muito ódio. Talvez mais que isso: era o desejo de vingança. Mas aos poucos fui vencendo esse sentimento. Costumo dizer que o marco foi o nascimento do meu filho no exílio. Ele me libertou do ódio e pude então sentir a vida se prolongar. Mas o que me aplacou foi justamente o fato de ter escrito o livro Memórias do Esquecimento. Ele foi meu divã. Eu escrevi em Búzios e lá, durante o inverno, faz frio. Pois eu transpirava enquanto escrevia, suava, sentia calafrios, a ponto de ter que trocar de camisa.

Brasileiros – Alguma passagem marcou mais você?
F.T. –
A reconstituição da cena da minha prisão, uma verdadeira cilada em que o porteiro do prédio me entregou para a polícia. Isso me marcou muito.

Brasileiros – Na prisão, você pensava nesses acontecimentos?
F.T. –
Não, porque eu não cheguei a ter tempo para pensar. Fiquei preso apenas 30 dias e nesse período fui muito torturado. Mas no México, eu pensava sim.

Brasileiros – Você desenvolveu algum método para poder suportar a tortura ou nessa situação a pessoa perde a noção dos fatos?
F.T. –
Você não perde a noção do todo, mas perde a capacidade de racionar os detalhes. Nas sessões de tortura, os militares queriam saber nomes de pessoas e pontos de encontros. Acontece que essa tortura do choque não deixa você pensar. O que eu fiz foi aplicar uma técnica de sempre dizer aos militares algo verdadeiro, mas que necessitava de ser verificado.

Brasileiros – Como você ficou sabendo que ia para o México?
F.T. –
Foi um fato até engraçado. Estávamos sendo levados para o Galeão para embarcar, eu o Ricardo Zaratini, sentados, algemados no banco de trás da viatura e, na frente, um coronel que me torturou dirigia o carro; ao seu lado um cabo do Exército, que lutava boxe e esfrangalhou os meus rins como treinamento. Em determinado momento, ele diz: “Ah! Vocês que são uns sortudos, pois vão poder assistir à Copa do Mundo no México”. Foi aí que eu soube para onde estava indo.

Brasileiros – O que é o ódio para você?
F.T. –
O ódio mata a quem odeia. O ódio é um instrumento de perversidade. O ódio estraçalha a quem odeia e não a quem é odiado. Hoje, eu diria que posso ficar irritado com pessoas, mas não odeio ninguém.

Brasileiros – Que pessoas dessa época deixaram você irritado?
F.T. –
Olha, eu fiquei com bronca de muitos que estavam do nosso lado e acabaram sendo subsidiados pela ditadura. Até hoje, tem políticos, como o senador Pedro Simon do Rio Grande do Sul, que serviram de biombo para a ditadura. Com isso, os militares diziam que o Brasil não era uma ditadura, afinal tinha Congresso, deputado e senadores.

Brasileiros – Você conviveu com o Gregório Bezerra no exílio?
F.T. –
Sim, convivi e por sinal era uma figura humana fantástica. Logo que chegamos ao México, fomos participar de uma reunião na Associação dos Jornalistas, um órgão muito poderoso na época, e sentamos à mesa principal o Gregório Bezerra, o Zé Dirceu e eu. O engraçado é que ele, Gregório, falando apenas o “pernambuquês” com um sotaque carregado se fez entender de maneira natural, tamanha era a força de sua fala.

Brasileiros – Como vocês conseguiam os passaportes para saírem do Brasil?
F.T. –
Nessa época, para qualquer um de nós fazer uma viagem ao exterior era preciso às vezes utilizar três ou quatro passaportes até chegar ao final. Então, esse era um documento muito valioso. Nós estávamos sempre tentando encontrar pessoas que nos dessem seu passaporte ou conseguissem junto aos amigos e depois fossem à polícia para comunicar que o documento havia sido extraviado. Até porque o uso do documento era feito no exterior e não para sair do Brasil. Pessoas como a Ruth Cardoso, esposa do ex-presidente Fernando Henrique, e o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano nos ajudaram muito nesta questão. Ele, aliás, emprestou o próprio passaporte para mim, pois eu me parecia com ele na fisionomia. Uma atitude de muita coragem numa época como aquela.

Brasileiros – Quando você retornou do exílio?
F.T. –
Voltei após a anistia, mas confesso que tinha certo receio nesse retorno, porque achei que aqueles que participaram da luta armada não teriam condições de viver aqui. O Brizola inclusive me convidou para viajarmos juntos, mas preferi vir sozinho, exatamente pela minha condição de “terrorista”. Mas quando soube, em Lisboa, que o Luís Carlos Prestes estava voltando, apressei meu retorno e cheguei um dia antes dele. A recepção foi muito bonita, com muitos amigos esperando. Quem estava lá novamente a me aguardar era o Brizola e sua esposa, Neusa. Era uma quinta-feira. No dia seguinte, fui para São Paulo onde tive outra recepção. No sábado, cheguei a Porto Alegre, meu estado natal. Lá, havia muita gente me aguardando, inclusive a minha mãe.

Brasileiros – Você faria tudo isso outra vez?
F.T. –
Faria tudo outra vez, desde que não conhecesse as circunstâncias e a realidade. Mas no sentido da doação, do idealismo, da luta, eu faria tudo novamente. Faria porque o legado deixado pela ditadura foi a degradação ética. Aliás, a reação de toda minha geração foi muito mais de natureza moral que política.

Brasileiros – Qual foi a grande lição que o exílio deixou para você?
F.T. –
A perda da soberba. Tentar ser humilde. Aprendi a observar, a ouvir mais. Posso até não conseguir tudo isso, mas foi um grande aprendizado.

Depois da tempestade


Comentários

3 respostas para “As vidas de Flávio Tavares no dia que durou 21 anos”

  1. Avatar de Quixote Verde
    Quixote Verde

    Comentarista do ZH era espião comunista e traiu o Brasil. O site do serviço secreto theco (STB), então a serviço da KGB, lista Flávio Teixeira (comentarista do ZH) como um de seus colaboradores com nome código LENCO (http://www.abscr.cz/en/searching-in-the-archival-finding-aids – após acessar ao site entre com registration number 44396 e arquive number 12698, tique “I am cognizant of this” e clique Search ). A STB foi reponsável pela “operação TORO” que através de documentos forjados implantou a idéia de um falso envolvimento americano no contra-golpe de 1964 conforme confessado por Ladislav Bittman, então chefe de operações da STB no Brasil, em seu livro The KGB and Soviet Disinformation. Curiosamente o filho de Flávio Teixeira realiza em 2013 um documentário panfletário (O dia que durou 21 anos) que tenta empurrar o mesmo engodo.

  2. […] Leia aqui a íntegra do texto da Revista Brasileiros publicado em 26 de janeiro de 2011. […]

  3. Avatar de Mário Oliveira Reis Neto
    Mário Oliveira Reis Neto

    Prezado senhor
    Estou preparando um pós-doc sob a memoria do Golpe de 64.

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