Augusta em grande estilo

Fosse há 15 anos – época em que eu era mais fã do grupo de Massachusetts que do genial compositor do morro do Estácio -, jamais acreditaria se alguém me dissesse que na mesma semana veria um show de Luiz Melodia e outro do Dinosaur Jr., no mesmo espaço. Essa hipótese tresloucada tornou-se fato no sábado (25 de setembro), ocasião em que a casa Comitê Club recebeu o carioca e, na quarta-feira da semana seguinte, com a apresentação dos americanos.
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Um dos sócios do Comitê, o fotojornalista e documentarista italiano Maurizio Longobardi – que chegou ao Brasil, em 1990, para assumir a direção de fotografia do documentário Verde Verdade, acerca do julgamento dos assassinos de Chico Mendes – falou com nossa reportagem e reiterou a impressão de que esta década que se encerra trouxe à Rua Augusta outros predicados mais nobres que a reputação de zona de baixo meretrício.

“Hoje em dia, a Augusta, de fato, é mais plural. Tem a cara da Vila Madalena de uns 15 anos atrás. Acho que um dado que contribuiu é que há 15 anos não havia tanta oferta de diversão por aqui e as poucas opções eram muito segmentadas. Hoje, a Vila Madalena está mais com cara de Vila Olímpia que, por sua vez, sempre foi uma espécie de Vila Madalena mais comportadinha.” Longobardi tem muita propriedade em afirmar tais mudanças, pois logo após sua chegada ao País, iniciou uma bem-sucedida carreira de empresário da noite, ao dar à Vila Madalena novas opções, como as casas Brancaleone, Grazie a Dio! e Bop Bistrô. “Quando cheguei ao Brasil, fui morar na Vila Madalena e acabei estragando o lugar. Reconheço que a noite era bem mais sossegada até a minha chegada!”, diverte-se ele.

Samba atemporal

Programado para ter início à meia-noite, o show de Luiz Melodia só foi começar 1h40. O atraso foi justificado pela tímida presença de público no começo da noite. Como a casa foi aberta há apenas três meses, ainda carece do famigerado “boca a boca” e ajustes nas estratégias de divulgação. A imprensa talvez não tenha se dado conta de que um show com Luiz Melodia em um espaço tão intimista – o palco da casa deve ter algo em torno de 70 cm de altura! – merecesse maior destaque na programação semanal. Quando os sete músicos começaram a emitir os primeiros acordes, o público era um tanto maior e o que se seguiu foi uma apresentação memorável e contagiante.

Estação Melodia, último álbum lançado pelo cantor, com repertório pautado em sambas clássicos de compositores como Jamelão, Geraldo Pereira, Cartola e de seu próprio pai (o compositor Oswaldo Melodia), foi a base da apresentação. A despeito de sua importância como compositor para a moderna MPB, Melodia evidencia com tal repertório suas grandes qualidades de intérprete, mas seria algo inimaginável acreditar que o público deixaria o cantor abandonar o palco sem apresentar clássicos de sua autoria como Estácio, Holly, Estácio, Pérola Negra e Fadas. No final apoteótico – Melodia suando às bicas, de camisa aberta e sorriso extasiado – quase todos os integrantes da banda assumiram instrumentos de percussão e invadiram a plateia em uma batucada contagiante. No ano passado, estive em um show dedicado a Sergio Sampaio, cujo grande destaque entre os que prestaram homenagem ao compositor errante foi justamente Luiz Melodia, e a conclusão que fica é que estamos diante de um desses raros artistas que merecem ter os passos ostensivamente perseguidos.

Rock atemporal

Os anos 1990 foram indiscutivelmente marcados pelo fenômeno Nirvana. A banda debutou em 1989 pelo selo independente Sub-Pop, com o álbum Bleach, produzido com míseros US$ 600. Seu sucessor, Nevermind, foi lançado pela multinacional Geffen Records, no final de 1991. Em menos de um ano, já somava mais de cinco milhões de cópias vendidas, número que hoje está em impressionantes 26 milhões de cópias. Um dos fatores determinantes para a ascensão desses selos independentes foi a qualidade das bandas que abrigavam. Basta lembrar dos Pixies na 4AD, a britânica Creation que lançou o Jesus & Mary Chain e a SST Records, berço de bandas que criariam todo um referencial estético para o rock dos anos 1990, como o Sonic Youth e o Dinosaur Jr., trio americano baseado na pequena Amherst, em Massachusetts.

Formada pelo baterista Emmet Murphy, o baixista – e também compositor à frente de grupos de similar importância, como Sebadoh e Folk Implosion – Lou Barlow, e o exímio guitarrista J. Mascis, o Dinosaur Jr. lançou, em 1987, pela SST, You’re living all over me, segundo álbum da banda, que modernizou o rock vigoroso de grupos como o Crazy Horse de Neil Young e ditou regras para a geração seguinte. Reunido em 2005, depois de um hiato de oito anos, o trio que formou a banda em 1984 subiu ao palco do Comitê Club esbanjando energia. Mais de 25 anos de tradição no rock americano ensinam que um par de guitarras e um contrabaixo Fender, seis amplificadores Marshall e uma bateria são artefatos suficientes para produzir rock com “R” maiúsculo.

Repetindo o clichê usual dos críticos de rock, esse foi candidato sério a “show do ano”. A casa estava com lotação total – mais de 800 pagantes – e tanto o êxito de bilheteria quanto a recepção calorosa corroboram a tese de Longobardi de que vivemos um momento inédito na Rua Augusta: “O Brasil mudou, o mundo todo percebeu isso, e esse momento positivo influenciou muito o mercado internacional. Pode parecer um absurdo, mas muitas bandas tocam aqui com cachê muito superior aos que são pagos lá de fora. Até bem pouco tempo, havia o receio da violência, mas o maior medo era de vir, se apresentar e tomar calote. Prática que, de fato, era muito comum. Hoje, posso te dizer isso com toda a certeza pois, além das negociações, converso com muitas pessoas no exterior, o conceito do Brasil mudou radicalmente. Para você ter uma ideia, no final de outubro, vou para Copenhague, acompanhar uma feira mundial de música, apenas para comprar shows”. O bom momento também é festejado e visto como motivo para novos investimentos pelos vizinhos de Longobardi. “Em breve, teremos novos reforços, como a The Week e a The Clash, que abrirão novas filiais em nosso quarteirão. Esse nivelamento por cima, com casas que apresentam segurança e infraestrutura adequada, é superpositivo. Ganha com isso a rua Augusta e todos nós.”

Augusta, eu e você

Longe do estigma de rua do meretrício, a Augusta sofreu transformações radicais na última década

Por Marcelo Pinheiro

Para qualquer paulistano com mais de 30 anos, são evidentes as transformações sofridas pela Rua Augusta nessa primeira década de século XXI. Tradicional reduto da boemia desde os anos 1960, a rua perdeu um pouco dessa vocação durante os 90, quando havia poucas e célebres opções de diversão noturna como a extinta Der Tempel – que em uma de suas memoráveis noites chegou a receber o ex-líder do Nirvana, Kurt Cobain, sua então esposa Courtney Love, e o baixista Flea dos Red Hot Chilli Peppers, logo após a apresentação do trio de Aberdeen no Hollywood Rock de 1993.

A partir de 2000, com a chegada de novas casas voltadas para o rock e a música eletrônica, como os clubes Outs, Inferno e Vegas, a rua voltou a ser ponto de encontro de um crescente público jovem, que hoje apinha suas calçadas em uma fauna diversa. Se nos anos 1980 e 1990 havia casas específicas para cada gênero – como os mitológicos Madame Satã e Espaço Retrô, reduto de fãs de pós-punk, rock gótico e industrial -, a geração 2000 e a cultura de downloads de mp3 sem fronteiras, fez com que essas segmentações não mais fizessem sentido. Foi-se o tempo em que o jovem tinha posturas ortodoxas com relação à música. Ouvir rock, samba, jazz, reggae, MPB, bossa nova e até música erudita é, hoje, algo comum para essa nova e aberta geração.

Pioneiros da nova postura acentuada a partir dessa nova década, os clubes Jive e Sarajevo foram os primeiros a oferecer uma programação mais eclética, passando a dedicar noites à discotecagem de jazz-funk, soul e ritmos brasileiros, como o samba-rock e o samba-jazz. Esse mesmo ecletismo passou a vigorar pelos quarteirões e calçadas do Baixo Augusta e o convívio pacífico trouxe mais um lado positivo: a redução de brigas de gangues e a dispersão dos temidos skinheads.

As consequências positivas dessa nova Augusta têm resultado bem mais do que diversidade e alegria. É também evidente um novo grau de profissionalização nos novos negócios que começaram a proliferar por seus quarteirões. Músico amador que fui, durante os anos 1990, sofri na pele as consequências de tal precariedade e testemunhei o Deus nos acuda enfrentado pelos donos das poucas casas noturnas para abrir espaço aos novos artistas.

A infraestrutura que havia nesses locais, como os citados Der Tempel e o Urbania, era literalmente de lascar. Os músicos tinham de levar todos os instrumentos, incluindo-se aí amplificadores e bateria. Os cachês eram regularmente convertidos em garrafas de cerveja e, muitas vezes, pagava-se frete do próprio bolso para levar toda a aparelhagem de som. Retorno de palco para os músicos?! Algo inimaginável! Técnico de som, então, quando havia, era alguém da estirpe do saudoso Boba Lima, que comandava a mesa da Der Tempel, e até mapeava todas as equalizações durante a passagem de som, mas no momento do show estava tão alterado que, ou perdia o mapa, ou não conseguia reproduzi-lo na mesa. Tempos difíceis, mas de um romantismo inegável.

Iscas de polícia


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