Autobiografia Ludopédica

Crente leitora, cretino leitor, as fés são muitas neste mundo. Há, por exemplo, quem acredite em astrologia. Ou seja, que a vida caminha de acordo com as estrelas. Pois eu acredito em futebologia. Ou seja, que a vida caminha de acordo com seu time de futebol. Não, não é uma superstição. É uma ciência baseada em fatos. E tenho uma prova incontestável: eu.

As coincidências entre minha vida e a história do Santos são tantas que posso contar os 100 anos do time narrando meus quase 50. Para começar, meu avô nasceu em 1912, exatamente no ano de fundação do clube. E meu pai veio ao mundo em 1935, justo no ano em que o Santos ganhou seu primeiro campeonato paulista. Simples coincidência? Não seja cético. As conexões são tantas que mesmo um ateu convicto como eu tem de dar o braço a torcer.

Veja bem, obviamente não há fato mais importante na minha vida do que nascer, e não houve nada na vida do Santos que se compare a seus dois campeonatos mundiais. Pois nasci em 1963, quando os fogos de artifício iluminavam os céus de Santos por conta da conquista do bi. É pouco? Quereis mais provas? Vamos a elas.

Com 1 ano, aprendi a ficar em pé e o Santos não caía. Tanto que ganhou o Paulista (com uma vitória de 11 a 0 sobre o Botafogo de Ribeirão Preto, com oito gols de Pelé), o Rio-São Paulo e sua quarta Taça do Brasil, antigo nome do campeonato brasileiro. O time erguia taças com a mesma naturalidade com que eu segurava o seio de minha mãe.

Com 2 anos, eu morava numa casa de dois andares e minha principal diversão era sentar em um tapete e transformar a escada em tobogã. Como tudo é espelho, o Santos também descia escadas naquele tempo. Mas de aviões. Eram viagens pelo mundo todo do “maior espetáculo da Terra”, como estava escrito em um cartaz que anunciava um jogo do time na Bolívia.

Foto Claudinê Petroli/AE

Minha infância foi uma alegria só. E a vida do Santos naquele tempo, idem. De 1964 a 70, ganhamos dois Rio-São Paulo, cinco campeonatos paulistas, o torneio Amazônia, três torneios no Chile, o Torneio de Nova York, o Cidade de Buenos Aires, o Torneio de Caracas, o Quadrangular de Roma, mais dois campeonatos brasileiros, a Recopa Sul-americana e a Recopa Mundial. Eram os tempos de Pelé e cia. Tudo era sonho e fantasia.

Então, aos 7 anos, aprendi duas coisas muito importantes. A primeira foi ler. A segunda foi quando minha mãe me contou que o País não tinha um presidente, mas um ditador. Perguntei se era um cara que mandava a gente fazer ditado e ela respondeu que era mais ou menos isso. Não entendi direito, mas deu para ver que não era coisa boa.

Como todo garoto, tive meu ritual de iniciação logo depois dos 10 anos. Se eu fosse judeu, seria meu bar mitzvah. Se fosse católico, seria minha crisma. Se eu fosse um índio sateré-mawé, seria usar uma luva cheia de formigas. Mas foi outro tipo de ritual, mais solene que o bar mitzvah, mais emocionante que a crisma e mais doloroso que a luva de formigas. É que pela primeira vez fui à Vila Belmiro. E não era um jogo comum. Era a despedida de Pelé.

Creio que foi a única vez que vi meu pai, um mineiro de poucas palavras e vasto bigode, chorar. Aliás, todos os marmanjos à minha volta choravam. Até hoje me lembro das arquibancadas como uma cascata de lágrimas, mas talvez seja um exagero da memória.

Os anos seguintes foram de espinhas e espinhos. Eu não conquistava as senhoritas e o Santos não conquistava títulos. Mas o sol voltou a brilhar quando fiz 15 anos. Aí, conheci a primeira namorada e o primeiro time santista que me lembro de cor: Vítor, Nelsinho, Joãozinho, Neto e Gilberto Sorriso; Clodoaldo, Aílton Lira e Pita; Nilton Batata, Juary e João Paulo.

Depois de conquistar o Paulista de 1978, o time todo foi vendido e eu virei um adolescente comunista. Talvez em protesto pelos jogadores do meu time terem virado mercadoria.

Em 1982, quando entrei na faculdade, o Santos também começou a formar um belo time, com o goleiro uruguaio Rodolfo Rodriguez, Lino, Humberto, Paulo Isidoro, Zé Sérgio e Serginho Chulapa. No ano seguinte, o clube foi vice-campeão brasileiro. Mas o melhor foi no Paulista de 1984, conquistado em cima do Corinthians.

Por essa época, tive que, argh!, começar a trabalhar. E acabei me afastando do futebol. Não perdi grande coisa. Por dez anos, o Santos foi tão ruim quanto meu salário de jornalista. Porém, nova coincidência. Em 1995, eu tinha acabado de lançar meu primeiro livro, O Chalaça, e o Santos voltava a fazer chalaças em campo. Tanto que fomos vice-campeões. A taça só ficou com o Botafogo porque um juiz chamado Márcio Rezende de Freitas era mais míope que Mister Magoo.

Depois, nova estiagem. Não ganhávamos nada, nem o cara ou coroa para ver quem dava a saída. Mas em 2002, escrevi meu 1ivro que mais vendeu até hoje: Uma História de Futebol, que conta as peripécias de um time de meninos. E o Santos voltou a ser campeão com um time de garotos: Diego, Robinho, Elano, Renato e Paulo Almeida, o capitão do time, que tinha apenas 22 anos. Foi um título com gosto especial, pois veio mais uma vez contra nosso arqui-inimigo, o Corinthians. E com direito a sete pedaladas de Robinho.

Em 2004, fomos outra vez campeões, enquanto eu lançava meu primeiro e único longa-metragem: Como Fazer um Filme de Amor. Nova coincidência. Mas não é que o filme tenha tido sucesso como o clube. Pelo contrário. Fez apenas 32 mil espectadores. Mas 32 mil também foi o público do jogo final, contra o Vasco, quando ganhamos mais um Brasileiro.

Depois disso vieram anos tristes. Eu desisti de ser diretor de cinema, minha barriga cresceu, o programa de TV em que eu trabalhava acabou, meus livros pouco venderam, meu pai morreu e meus cabelos ficaram brancos. É claro que nesta época o Santos tropeçava mais que bêbado em fim de noite.

Mas aí tudo mudou. Neymar, um quase menino, chegou ao time de cima e eu comecei a escrever livros para crianças. Os livros foram um sucesso, casei com uma adorável senhora, voltei a correr e com isso um pouco da barriga se foi. Já o Santos ganhou a Copa do Brasil, dois Paulistas, e, depois de muito tempo, uma Libertadores. Finalmente deixava de ser um time do passado.

Eis minha biografia como prova de que as ligações cósmicas entre um torcedor e seu time são incontestáveis. Se você pensar um pouco, também vai encontrar paralelos incompreensíveis entre seu time e sua vida. Mas são incompreensíveis apenas para os que não acreditam na futebologia. Pois os que nela creem sabem que há mais mistérios entre os homens e seus times do que sonha nossa vã filosofia.


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